quarta-feira, 25 de março de 2009

O legado de Chico Mendes

Reserva Extrativista Corumbau, no sul da Bahia, onde vivem 260 moradores que obedecem regras para evitar a pesca predatória
Texto: Sérgio Adeodato
Criadas após a morte do líder seringueiro, as reservas extrativistas brasileiras ainda engatinham como modelo de exploração sustentável da natureza

Município de Xapuri, Acre, 22 de dezembro de 1988. O seringueiro e sindicalista Francisco Alves Mendes Filho, ou simplesmente Chico Mendes, jogava dominó na cozinha de casa com dois policiais militares, que faziam a sua segurança, quando a mulher o chamou para tomar banho e jantar. Ao sair para pegar a toalha no varal, acendeu a luz que naquele dia estava misteriosamente apagada e recebeu um tiro de espingarda calibre 12 no peito, disparado por um pistoleiro em tocaia – o peão Darcy Alves, que agiu a mando do pai, o fazendeiro Darly Alves. Na época, os seringueiros lutavam para permanecer na floresta exercendo a atividade extrativista contra o desmatamento para a criação de gado, retirada de madeira, mineração e implantação de projetos agroflorestais.

O tiro causou repercussão internacional e chamou a atenção do mundo para a floresta amazônica e o quadro de violentos conflitos provocados pela posse da terra na região. Serviu de estopim também para o surgimento de um novo modelo de uso dos recursos naturais: as reservas extrativistas (Resex), destinadas a legitimar a posse, reconhecendo os direitos à terra daqueles que nela trabalhavam e viviam há muitos anos. Hoje, o modelo se expandiu. Existem no território nacional 56 áreas desse tipo, totalizando 12 milhões de hectares, inclusive nas zonas costeiras.

São frutos de experiências que reuniram movimentos populares, ambientalistas, além de biólogos e outros cientistas. Segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação, as Resex são áreas nas quais o uso econômico é uma alternativa para proteger a biodiversidade. Outro tipo de reserva, chamada de desenvolvimento sustentável, nascida também nessa época, pode abrigar populações não tradicionais e permite atividades não extrativistas, como a agricultura. “Nos dois casos, as reservas são criadas a partir da reivindicação das comunidades e não por iniciativa do poder público”, explica Érika Pinto, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, órgão do governo federal responsável pelas áreas.

Percorremos 178 km da rodovia Chico Mendes e AC 040, saindo de Rio Branco com destino a Xapuri, próximo à fronteira do Acre com a Bolívia, para conhecer o que mudou na floresta 20 anos após a morte do seringueiro que se tornou símbolo da luta pela preservação da Amazônia. Há boas e más notícias. Às margens da estrada, vêem-se extensas pastagens pontilhadas por castanheiras solitárias, que retratam a força do gado que substituiu grande parte da mata tropical. Mas, apesar desses impactos, longe das estradas principais, generosos pedaços de floresta protegem a biodiversidade e o sustento das comunidades.

Onde tudo começou

Após Xapuri, rodamos mais 30 km até o ponto em que atravessamos o rio Acre sobre balsa para chegar ao local de origem dessas unidades de conservação: a Reserva Extrativista Chico Mendes, que hoje se impõe como a maior do Brasil. Destaca-se pela sua importância histórica, pois se trata da principal das quatro primeiras Resex criadas em 1990, dois anos após a morte de Chico Mendes. Além dela, as resex de Alto Juruá (AC), Rio Cajari (AM) e Rio Ouro Preto (RO) inauguraram um novo modo de exploração sustentável da floresta numa época em que o movimento ambientalista dava seus primeiros passos.

Com 980 mil hectares, área superior a da região metropolitana de São Paulo, a Resex Chico Mendes ocupa seis municípios acreanos – além de Xapuri, Rio Branco, Sena Madureira, Brasiléia, Capixaba e Assis Brasil – e abriga quase 2 mil famílias. Em sua maior parte, a região está conservada, mas as comunidades florestais enfrentam problemas para manter a floresta original e colocar em prática os ideais do seringueiro que inspirou a sua criação e lhe deu o nome. Próximo a Xapuri, dentro da área protegida por lei, avistamos fumaça de queimada e troncos caídos no chão. A pressão da pecuária aumenta no entorno e avança para dentro da reserva.

As ameaças também vêm de dentro. Em vez de extrair produtos florestais sustentáveis, como castanha e borracha, uma parte dos moradores deixou de lado as práticas tradicionais e derrubou árvores para criar gado em parceria com fazendeiros da região. Alguns chegam a ter 600 cabeças, o que não é permitido numa unidade de preservação. A questão é de sobrevivência. “Faltam políticas e projetos para contrapor ao gado e, sem isso, a tendência é a devastação aumentar”, constata o engenheiro florestal Domingos Magalhães, da Secretaria de Florestas do Estado do Acre.

Segundo Magalhães, há projetos de uso econômico e sustentável propostos para a Resex Chico Mendes que aguardam autorização dos órgãos ambientais há mais de dois anos. Outras barreiras dificultam a comercialização de mercadorias. Uma delas, diz o engenheiro florestal, é o isolamento das comunidades. “Em muitos lugares, no verão, quando os rios estão secos, os moradores precisam caminhar três dias para chegar à cidade mais próxima”, comenta. “No inverno, com as chuvas, a demora é de três dias de barco.”

Saímos dos limites da Resex Chico Mendes, no município de Xapuri, e percorremos 25 quilômetros de estradas de terra cheias de curva para chegar a um lugar que parece um museu vivo destinado a preservar e divulgar as práticas defendidas por Chico Mendes. Trata-se do Seringal Cachoeira que, na década de 1980, foi palco dos famosos embates, em que seringueiros e castanheiros resistiam de forma organizada e pacífica para impedir a derrubada das árvores. Em 1988, quando Chico Mendes ainda vivia, o local foi considerado assentamento extrativista por decreto do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). O conceito se ampliou e hoje se estende a outras áreas, passando a compor o Projeto Agroextrativista Chico Mendes.
Lá encontramos Antônio Teixeira Mendes, o Duda, de 48 anos, primo e companheiro de luta de Chico Mendes. Os laços de parentesco com o seringueiro que ganhou prestígio mundial são motivo de orgulho e sua memória está viva na comunidade onde moram outros familiares e amigos. “Ele falava que preferia morrer a ver a floresta derrubada”, conta Duda. “Certamente ficaria feliz se pudesse ver o que existe agora.”

Exemplos de sucesso

Com 24 mil hectares, o assentamento abriga 45 famílias e desenvolve um modelo pioneiro de uso comunitário e sustentável de floresta. Para aliar ganho econômico e preservação ambiental, o caminho foi explorar a madeira mediante manejo florestal, ou um plano de regras e métodos rígidos destinado a reduzir ao mínimo os impactos ambientais causados pelo corte das árvores. Apesar da resistência inicial, o modelo resultou em aprendizados. Como diz Duda, “nasci na floresta, mas só a conheci de verdade de oito anos para cá, quando comecei a trabalhar com manejo”.

Para que o projeto desse certo, o Seringal Cachoeira montou uma cooperativa destinada à comercialização das toras, implantou procedimentos para planejar e controlar a produção e se tornou, em 2002, a primeira comunidade tradicional da floresta a obter o certificado FSC (Forest Stewardship Council). Trata-se de um selo internacional que comprova a origem do produto extraído da floresta com critérios ambientais, sociais e economicamente sustentáveis. Para alcançar esse padrão, a comunidade fez um inventário das espécies madeireiras, obteve orientação técnica para o corte adequado das árvores e se submeteu a uma série de regras, verificadas periodicamente pelo Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola), instituição que representa o FSC no Brasil.

Com o carimbo da certificação, o assentamento abriu as portas para a exportação da madeira. O valor do produto aumentou cinco vezes e hoje é o principal meio de sustento da comunidade, além da castanha e da borracha. “Temos madeira, peixe, caça e tudo o que precisamos para sobreviver na floresta sem precisar derrubar ou vender para gente de fora”, afirma Sebastião Teixeira Mendes, de 62 anos, outro primo de Chico Mendes, encarregado de explicar o trabalho de manejo florestal comunitário. Uma pousada de alto padrão, construída pelo governo acreano em meio à mata do seringal, acolhe visitantes que chegam do Brasil e de várias partes do mundo para conhecer de perto o modo de vida dos seringueiros e as técnicas de exploração sustentável da floresta. Trata-se do primeiro passo para um projeto de ecoturismo que começa a se desenvolver na região.

Na estrada de acesso a Xapuri, encontramos marcos do modelo de desenvolvimento sustentado. Um pólo industrial foi formado na região para absorver a produção extrativista. Como destaque, a fábrica de preservativos Natex, construída com subsídios do governo, compra toda a borracha extraída dos seringais. As camisinhas são vendidas para os programas de prevenção contra Aids do Ministério da Saúde. Dessa forma, o valor do produto triplicou, contribuindo para a retomada de uma atividade que estava em decadência. Ao lado da fábrica encontra-se uma indústria de pisos para a construção civil, que usa a madeira cortada pelos extrativistas. Além disso, ali funciona uma usina de beneficiamento de castanha e um pólo moveleiro com escola de marcenaria, fornecedora de redes de lojas dos grandes centros.

A criação de novas áreas

Como no caso da Chico Mendes, as reservas extrativistas são comandadas por um conselho deliberativo da própria comunidade que, a exemplo de outras áreas de uso sustentável, precisam ter um plano de manejo para definir as diretrizes básicas de uso, ocupação e gestão da terra. Na prática, a maioria não conta com esse plano, o que transforma a criação das reservas às vezes apenas em um ato administrativo, com pouco efeito prático para garantir a conservação.

No Acre, apenas a Chico Mendes e a Cazumbá-Iracema, nos municípios de Sena Madureira e Manuel Urbano, têm o plano aprovado. Outras resex estão com o processo em andamento e, com o apoio de organizações não-governamentais e empresas, buscam seguir adiante montando unidades de beneficiamento de produtos da floresta. “A lógica do comércio justo e solidário é o caminho para valorizar e aumentar a escala dos produtos extrativistas”, constata Érika Pinto, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, do governo federal.

A tendência é a ampliação do sistema à medida que o mercado consumidor se torna mais exigente. Até o fim de 2008, nove processos já concluídos para a ampliação e criação de novas reservas aguardavam aprovação na Casa Civil da Presidência da República. Entre eles, os projetos da resex Montanha Mangabal (PA), do Baixo Rio Branco-Jauaperi, na divisa do Amazonas com Roraima, localizadas em região de alto potencial hidrelétrico; e do Rio Ituxi (AM) e Ciriaco (MA), em áreas de interesse para exploração de petróleo. O assunto mobiliza agricultores familiares, extrativistas, ribeirinhos e pescadores, que participaram de audiência pública na Câmara dos Deputados, em Brasília, convocada pelo Ministério Público Federal e pela Frente Parlamentar Ambientalista.

Além dessas, a Resex do Médio Xingu espera aprovação. Trata-se de uma área estratégica. “É a última peça que falta para preencher o mosaico de áreas protegidas da Terra do Meio, zona de conflito fundiário na qual a missionária Dorothy Stang atuou e foi assassinada em 2005”, afirma Cláudio Maretti, do WWF-Brasil.

O mosaico é composto de terras indígenas e unidades de conservação onde vive uma população de 12 mil pessoas, ameaçadas pela pressão de grileiros e madeireiros ilegais. A proposta é desenvolver em todas as reservas extrativistas projetos de exploração sustentável. É uma forma de ajudar a completar o modelo de conservação da natureza que nasceu a partir dos ideais de Chico Mendes há 20 anos e, ainda hoje, enfrenta problemas para se manter.

O símbolo Chico Mendes

O movimento de seringueiros e familiares que se insurgiu na década de 1980 contra a ocupação da floresta amazônica e a expulsão de seus moradores teve entre suas lideranças o sindicalista de Xapuri Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes, nascido no seringal Porto Rico, em 15 de dezembro de 1944. Foi um dos fundadores do Conselho Nacional dos Seringueiros e articulador dos “empates”, a estratégia de formar uma barreira humana protetora para impedir o corte das árvores na floresta. Chico Mendes levou a questão a debate nacional e defendeu a proposta das reservas extrativistas e a exploração comunitária da biodiversidade. Ao ameaçar o interesse dos fazendeiros e poderosos da região, teve a sua morte decretada.

Hoje, a história do seringueiro e seu legado estão preservados na cidade de Xapuri. A modesta casa de madeira onde morou (foto), aberta à visitação, mantém os cômodos e os móveis do jeito que estavam no dia do assassinato. Ao lado da casa, a Fundação Chico Mendes guarda seus objetos de uso pessoal, como a toalha manchada de sangue pelo tiro que o matou, passaporte, agenda e vários documentos que contam os capítulos dessa luta. No Museu de Xapuri, pode se conhecer a história da cidade, fundada em 1883, que mescla os ciclos do apogeu e da decadência da borracha e da castanha e suas relações com as guerras mundiais.

Resex até no litoral brasileiro

As reservas extrativistas não existem apenas em lugares distantes e isolados da Floresta Amazônica. Elas protegem também áreas estratégicas do cerrado e do litoral brasileiro, onde vivem comunidades tradicionais, como as que reúnem caiçaras e pescadores, ameaçadas pela destruição do hábitat e das espécies da biodiversidade que garantem o sustento das famílias. Entre essas áreas, também fruto do movimento liderado por Chico Mendes, está a Reserva Extrativista Corumbau (foto), no sul da Bahia, onde vivem 260 moradores que obedecem regras para evitar a pesca predatória. Como resultado, a quantidade e o tamanho dos peixes comercialmente importantes aumentaram nos últimos anos. A poluição, a especulação imobiliária e a instalação de viveiros de camarão nos manguezais são as principais ameaças a essas unidades de conservação, como é o caso da Reserva Extrativista Cassurubá, que pretege o banco de recifes de Abrolhos e aguarda aprovação do governo federal.

O símbolo da floresta

Chico Mendes nasceu em 15 de dezembro de 1944 no seringal Porto Rico, em Xapuri, no Acre. Sua história de vida é simples e comum à maioria dos seringueiros do período. Neto de um nordestino que chegou à região para tentar a vida na saga da borracha, ele estava destinado a continuar a herança familiar de extrair o látex numa estratégia de subsistência. Na época, os seringais estavam em decadência e, para tentar integrar a Amazônia ao resto do país, o governo militar implantou na região diversos projetos destinados a atrair migrantes do Sul e Sudeste. A floresta foi desmatada para se transformar em pasto e começaram a surgir tensões sociais entre os novos e antigos ocupantes.

Chico Mendes tinha 18 anos quando foi alfabetizado e começou a despontar como uma liderança entre os seringueiros. Mas só em 1975, tornou-se secretário-geral do recém-fundado Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia. A partir daí, pôs em ação uma nova estratégia política que batizou de “empates”, ou manifestações pacíficas em que os seringueiros protegiam as árvores com seus próprios corpos. No início, essa estratégia era apenas em defesa da posse da terra pelos habitantes nativos contra os fazendeiros, pecuaristas e grandes proprietários. Só depois, surgiu o seu envolvimento com a defesa do meio ambiente, nos anos 80. Sua proposta de União dos Povos da Floresta ganhou repercussão internacional, ao reunir os interesses dos seringueiros, castanheiros, pequenos pescadores, populações ribeirinhas e dos índios em defesa da Floresta Amazônica.

Naqueles tempos, criou o Conselho Nacional de Seringalistas, que foi um dos primeiros passos de sua história no Acre. Em 1977 foi eleito vereador para a Câmara Municipal de Xapuri, onde realizava debates com lideranças locais. Criou o Partido dos Trabalhadores no Acre, tornou-se presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, mas foi somente ao organizar o primeiro Encontro Nacional dos Seringueiros em 1985 que seus esforços começaram a dar resultados. Acusado de incitar posseiros à violência, foi torturado, julgado pelo Tribunal Militar de Manaus e absolvido por falta de provas em 1984. Foi também enquadrado na Lei de Segurança Nacional, que vigorava durante o governo militar.

Em 1987, recebeu a visita de representantes da ONU, em Xapuri, que puderam ver de perto a devastação da Amazônia e a expulsão dos seringueiros causada por projetos financiados por bancos internacionais. Levou essas denúncias ao Senado norte-americano e à reunião do BID e os financiamentos foram suspensos. Na ocasião, foi acusado por fazendeiros e políticos locais de “prejudicar o progresso”, o que aparentemente não convenceu a opinião pública internacional. Por causa de sua defesa da floresta, recebeu o Prêmio Global 500, oferecido pela ONU.

Ao longo de 1988, Chico Mendes participou da implantação das primeiras reservas extrativistas criadas no Estado do Acre. As reservas são áreas pertencentes à União com usufruto dos seringueiros e sem títulos de propriedade. Além de uma forma eficaz de preservação da natureza, as reservas garantem o sustento de milhares de famílias.

Algum tempo depois, começou a receber ameaças de morte. O seringueiro relatou às autoridades o que estava acontecendo, citou nomes e pediu proteção policial para si e sua família, a esposa Ilzamar e os filhos Sandino e Elenira. Porém em 22 de dezembro de 1988 foi assassinado na porta de sua casa, aos 44 anos. O fazendeiro Darly Alves da Silva e seu filho, Darci (proprietários de um seringal desapropriado) foram julgados e condenados pelo assassinato. Hoje, Chico Mendes tem seu nome registrado no Livro dos Heróis da Pátria por um decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e é considerado um símbolo da luta pela preservação ambiental no Acre.

Revista Horizonte Geográfico

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