Texto: Ivaci Matias
Passar a noite na selva amazônica é uma experiência inesquecível. Vivi essa situação pela primeira vez no verão de 1984, acompanhando uma expedição científica integrada por pesquisadores da Universidade Federal do Acre. O destino era o Seringal Cachoeira, situado a dois dias de viagem subindo o Rio Xapuri, a partir da cidade homônima no estado do Acre. Tínhamos como objetivo a coleta de sementes de frutas nativas da região de Xapuri, como a fruta massa, o bacuri e muitas outras que, por causa do desmatamento, estavam ameaçadas de extinção. Depois de coletadas, as sementes iriam formar um viveiro de mudanças para multiplicar as árvores e possível utilização comercial. Nossa primeira pousada era no rancho de um seringueiro às margens do rio, na região do médio Xapuri.
Depois de nove horas navegando em uma voadeira, desembarcamos na casa de José Vitor da Silva pouco antes do pôr-do-sol. Seu Vitor já estava acostumado a abrigar viajantes em sua casa simples, mas com espaço suficiente para acomodar umas 30 pessoas sob seu teto. Era um barracão de madeira, com apenas dois cômodos – a cozinha e um grande salão para armar as redes – e telhado formado por folhas de paxiúba, uma palmeira comum no Acre.
Mas houve pouca chance de conversa. Os seringueiros dormem com o cair da noite e por volta das 19 horas, sua mulher e cinco filhos armaram, sem cerimônia, as redes no meio dos estranhos. Era hora de dormir e descansar o corpo depois da longa viagem. Protegidos dentro do rancho, em pouco tempo, veio o sono, ao mesmo tempo em que o barulho da mata pôde ser ouvido com maior intensidade. No final da tarde e começo da noite, os macacos fazem uma verdadeira farra. O bugio é o maior e o mais barulhento de todos, enquanto os pássaros formam uma sinfonia curiosa e uma mistura fantástica de sons. Impossível, mesmo para os mais familiarizados com o lugar, identificar o canto de um deles no meio daquele festival. Isso se sucedeu até às 19 horas. Depois veio o silêncio... e um frio na espinha inevitável, acompanhados das lembranças dos cenários que envolviam o lugar; as horas de navegação pelas curvas intermináveis do Xapuri; a samaúva gigante, uma das maiores árvores da região, com quase 40 metros de altura, fincada à beira-rio, a imagem de um seringueiro que passa em uma pequena canoa levando o produto de seu trabalho para o patrão distante.
A sinfonia da mata
Dormir após às 6 horas da manhã é uma missão muito difícil. A sinfonia da mata volta à carga, agora para despertar a todos. É assim que e acorda na selva, com o mesmo som do dia anterior. Mas, como chegou, o medo foi embora. Soube por Élcio, filho de seringueiro do Acre e guia do grupo, que perder o medo da noite no mato é algo que leva tempo. “Mas não é sempre que se tem uma pousada tão boa como essa”, salientou. “Estamos subindo o rio em direção a uma região pouco habitada. Vamos ter que nos ajeitar num seringal qualquer no final da tarde”.
Seu Vitor, seringueiro do Xapuri, tinha o mesmo perfil de boa parte dos habitantes do Acre, veio do Ceará. Chegou em 1950 e encontrou muitos conterrâneos e dependentes, entre cearenses, rio grandenses do norte e paraibanos que migraram para a Amazônia, na época da Segunda Guerra, quando a borracha ficou valorizada no mundo todo.
Nesta hora, entrou no barracão o próprio Vitor, um homem de 51 anos, analfabeto, como a maioria dos seringueiros, e desde os 11 coletor de látex. Vinha da estrada da seringa e de sua rotina diária, igual aos outros 70 mil seringueiros (dados do recenseamento do IBGE, de 1980) da Amazônia Legal. Às duas horas da manhã, quando a selva é um silêncio só e todos dormiam, engoliu um pouco de café doce, vestiu a camiseta manchada de leite, calçou um sapato feito com borracha natural fundido por ele, pegou a espingarda, uma sacola e saiu pela picada aberta na floresta para a coleta do látex e uma jornada, com uma duração mínima de quatro horas.
“É a melhor hora para cortar a madeira”, disse o coletor depois de sorver um copo de café e sentar-se na rede. Contou que para obter 500 quilômetros de borracha por ano, precisa percorrer, em média de 100 a 150 árvores dispersas na mata por dia. Explicou também que a extração das árvores não pode ser feita todos os dias, mas de modo intercalado. “Cada seringueiro necessita de, pelo menos, 200 ou 300 árvores para atingir a renda estabelecida pelo patrão”, esclareceu. Para cumprir sua cota mensal de coleta, seu Vitor, como milhares de outros extratores de látex espalhados pelas florestas tropicais da Amazônia, cobre grandes distâncias e trabalha solitariamente em grandes áreas, de 540 hectares. O produto de seu esforço resulta em uma troca simples – da borracha por mercadorias e artigos de consumo. “No seringal, não circula dinheiro. Todos os mantimentos são lançados pelo patrão na caderneta. No final da safra, entre dezembro e março, é puxado o saldo de um ano de coleta. Como as mercadorias sempre valem mais, a divida nunca termina”, queixou-se.
Isolados de tudo
Às oito horas, voltamos ao rio para seguir viagem. Mais de dez horas de navegação nos esperavam. Para nosso anfitrião, era momento de iniciar o trabalho de defumação do látex colhido na madrugada até a hora do almoço – em geral, arroz, feijão, farinha, macarrão e carne de caça -, para descansar um pouco aquele corpo magro.
À medida que subíamos o Xapuri, aumentava a solidão do lugar. Agora quase não se via moradias nas margens. A mata inundada impedia as construções. Ao meio dia, começávamos a penetrar em uma região de confrontos entre seringueiros e criadores de boi. Naquela época, o Xapuri vivia dias agitados e o objetivo final da viagem era investigar a extensão do conflito e desmatamento. Em muitos trechos, a derrubada avançava até a margem do rio. Do próprio barco, podia-se ouvir o ronco das moto-serras e estrondo das árvores caindo. Segundo Élcio, os confrontos na área chegaram a uma situação insustentável com a derrubada de centenas de hectares de selva por grileiros e projetos agropecuários. No dia seguinte, um grupo de aproximadamente 20 seringueiros iria empatar um grande e ilegal desmatamento em um seringal nativo.
Os empates
A palavra empatar significa impedir alguma coisa e o termo, muito usado na região, ganhou fama depois que passou a servir de sinônimo do enfrentamento entre seringueiros e homens contratados para a derrubada da mata. A primeira idéia que vem à cabeça é a de uma guerrilha na selva. Homens armados de espingarda, enfrentando o inimigo com moto-serras. Mas, antes de acompanhar o empate, mais uma surpresa estava reservada para a segunda noite. Desta vez, conforme previu o guia, o pouso na casa de um seringueiro local foi bem menos confortável.
O rancho no Seringal Cachoeira era pequeno para acolher tanta gente – 15 pessoas no total. O seringueiro Manoel Assis teve que tocar um grupo de animais – porcos, vacas e galinhas -, a noite presos em um curral coberto com folhas de palmeiras para oferecer pousada para todos. No roçado próximo, havia plantações de feijão e mandioca, tocadas pela mulher e filhos do seringueiro. “Comida não chega a ser um problema”, apontou Élcio, “principalmente pela fartura da caça. O seringueiro não leva espingarda nas costas por medo ou esporte, mas sim por necessidade de complementar a alimentação com carne”. Na dieta alimentar da família dos coletores de látex é muito comum encontrar carne de mutum, jacumi, jacu e nambu (aves), e de cotia, paca, caititu e veado, além de peixes, fisgados em rios e lagoas. Mas havia um problema. Soube depois, pelo próprio Manoel Assis, da dificuldade atual de caçar. A principal razão, segundo o seringueiro, referia-se à introdução do cachorro nos seringais. “A caça com cachorro precisa acabar. Eles afugentam os bichos”, reclamou.
Estória de cordel
Após a sinfonia dos bichos, a luz de uma lamparina no interior do barracão convidava os poucos que ainda não se acomodaram nas redes a entrar e conversar com os donos do lugar, mesmo que um convite não tenha sido feito. Ao redor da luz, estavam dois homens – o dono da casa e um vizinho, seu Tributino, de outro seringal distante três horas de caminhada. Na cozinha, a mulher ultimava os últimos afazeres domésticos. Os outros quatro filhos já haviam se recolhido. Entramos na casa, eu e Élcio, o clima praticamente não mudou com a nossa presença. Todos estavam calados e assim permaneceram. Num canto do cômodo, notei a presença se um rádio a pilha, que estava desligado. Tentei trocar algumas palavras, saber a situação do desmatamento, do empate do dia seguinte e nada. O máximo que consegui foram respostas curtas, quase incompreensíveis. E, de novo, o silêncio.
De repente, seu Tributino tira do bolso um livrinho surrado e começa a ler uma estória de cordel. O drama passava-se no sertão do Ceará e era de lugar comum. Um coronel planejava vingança por um motivo qualquer e contratou pistoleiros para executar o serviço. Fitei a família ali reunida, que impassível ouvia em silêncio. A estória não acabava mais. Quando o vizinho terminou, colocou o livro no bolso, despediu-se rapidamente e foi embora. Imediatamente, todos se encaminharam para dormir.
Já fora, perguntei ao Élcio o que significava a falta de interesse dee todos em falar conosco e o teatro do vizinho. Élcio disse então que aquele era um lugar tão isolado, que as pessoas pouco se interessavam pelas novidades de fora. “Raramente saem daqui”, explicou. “O patrão, que compra a borracha, fornece os mantimentos, remédios e querosene é, muitas vezes, o único contato com o mundo. Na falta de uma referência para surgir o diálogo, o cordel foi o que aquele homem encontrou para estabelecer uma relação conosco”.
As lendas locais
No dia seguinte, ao encontrar com o dono da casa, resolvi iniciar uma conversa, perguntando sobre as lendas dos seringais. Ele abriu um sorriso e contou a estória do caboclinho da mata. “Quando os seringueiros caçam sem precisão, o negrinho aparece para espantar os bichos. Ele é o protetor da caça”, resumiu. A lenda da mãe da seringueira também foi citada. “O vulto dela só aparece à noite e para seringueiro que golpeia o tronco com um corte profundo. É uma mulher velha, com uma saiona, que vigia a natureza”. Negou já ter visto alguns desses personagens da floresta e a conversa abriu caminho para a medicina popular. Falou que seus pais ao chegarem naquela região do acre no começo do século, aprenderam com os índios a utilizar centenas de raízes e folhas para aliviar dores e disfunções orgânicas. “A orelha da onça”, disse, mostrando uma ramagem próxima, “é um santo remédio para ânsia de dores de estômago”. Também analfabetos, seu Manoel e a esposa orgulhavam-se da filha – a “única que sabia ler e escrever da família”. Com apenas o quarto ano do curso do primeiro grau, a adolescente freqüentou a escola pública em Xapuri, onde morou na casa de um parente. Hoje é ela que inicia os irmãos mais novos – João de 13 anos, Lino de 12, Otacília de 10 e José Luiz de oito, na leitura e escrita.
A partir daí, o papo desembocou no drama ali vivido. Os capatazes dos fazendeiros do sul do país, que implantavam fazendas de gado na região já tinham derrubado aquele barraco algumas vezes. “Os homens das moto-serras vão chegando e colocando tudo abaixo. Não respeitam nada. Nem a seringueira a castanheira, árvores protegidas por lei”, lamentou. Foi por essa razão, para garantir seu ganha-pão, que os seringueiros da região resolveram agir e os homens daquele lugar iam se juntar rio acima para empatar o desmatamento.
Cenário triste
Seguimos o grupo pelo interior da floresta de um calor sufocante. Caminhamos mais de quatro horas e nada de desmatamento. Nas paradas, observei as árvores mais altas. As castanheiras se destacavam entre todas, não só pela altura, mas também pelo tamanho da copa. Havia ainda muita árvore fininha e pequena. Já as seringueiras variavam. As mais velhas tinham troncos grossos e caule comprido. A copa não era tão grande e as folhas ficavam na extremidade da árvore. As canequinhas de aparar o látex, fincadas nos troncos, tinham alturas diversas e o desenho do corte da casca apresentava formatos curiosos. “A maioria daqui já era trabalhada por meu pai”, disse-me Manoel Assis. Afirmou ainda que uma seringueira pode durar mais de 300 anos, “desde que não se queira tirar borracha por ganância. Rasgos profundos na madeira, fazem a árvore morrer em dois oi três anos”, acrescentou.
De repente, o grupo pára no meio de uma clareira. O cenário era triste. O fogo tinha invadido a mata e deixado um rastro negro. Castanheiras e seringueiras estavam tostadas pelo fogo e Élcio informou que aquele seringal estava condenado. “A mata aqui já morreu”, sentenciou. Mais adiante, seu Manoel chamou minha atenção para o chão onde um capim colonião brotava no meio dos arbustos que resistiram ao fogo. “Isso veio do céu, de avião de fazendeiro. Primeiro eles derrubam e depois ateiam fogo para o avião espalhar herbicida. Aí jogam as sementes”, explicou. O grupo voltou a caminhar e, depois de mais uma hora, um clarão pôde ser visto ao longe. Era o local da derrubada. Quando chegamos, não dava para acreditar. Um amontoado de paus instransponíveis. O emaranhado era tão grande que só podíamos caminhar sobre o tronco das árvores derrubadas. Só depois de duas horas, andando sobre a floresta morta, que se ouviu o ronco das moto-serras e o estrondo das árvores caindo. Foi gasto ainda mais uma hora para se alcançar o local do desmate, onde três moto-serras trabalhavam em pontos diferentes. Quando nos aproximamos, a surpresa de um dos homens que cortava uma árvore foi tamanha, que deixou cair a moto-serra.
A ação das moto-serras
“Nós viemos aqui para empatar essa derrubada”, disse com voz firme, “e é para parar já”. O peão obedeceu e falou que estava ali cumprindo ordens do patrão. Reunido, o grupo colocou os três homens com suas moto-serras na frente, para seguir em direção ao acampamento montado no meio do mato, próximo ao Rio Xapuri. Já encontramos um grupo maior de trabalhadores, contratados pelos fazendeiros e o diálogo foi forte. Alguns seringueiros queriam colocar tudo abaixo com golpes de facão. Depois de muita conversa, resolveram dar um dia de prazo para que todos abandonassem a área.
As histórias dos empates nem sempre acabam em diálogo e entendimentos. Muitos destes encontros, travados em outros seringais, acabaram em mortes de ambos os lados. Os seringueiros, muitos nascidos na mata, se apóiam no direito de posse de área, e querem a todo custo defender e preservar a floresta de onde tiram o sustento. Os fazendeiros, com títulos de validade duvidosa, tentam expulsar os posseiros e quando não conseguem acordo, iniciam a derrubada. Por defender a causa dos seringueiros, muitos líderes foram mortos. O mais conhecido de todos é Chico Mendes.
Sem acordo
E foi o próprio Chico que acompanhou o grupo de seringueiros do seringal Cachoeira até o escritório do Incra de Xapuri, que na época era o órgão encarregado de mediar questões de desmatamento. Lá na cidade se encontraram os seringueiros e os responsáveis pelo desmatamento. A proposta feita pelos fazendeiros era a de distribuir lotes de terra para os seringueiros em troca da retirada deles das áreas dos seringais. Representando o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Chico Mendes ficou ouvindo e depois concordou com a posição dos seringueiros que não aceitaram trocar as colocações de seringa por lotes de terra destinados à agricultura. “Os seringueiros – disse ele – preferem continuar vivendo do látex e da castanha dentro das áreas que ocupam e não aceitam a derrubada da floresta. A vocação desta região é o extrativismo e não a pecuária, ou a agricultura extensivas”. As reuniões, desse tipo, na maioria das vezes, terminavam assim, sem acordo.
O dialeto dos seringueiros
Os seringueiros possuem um vocabulário próprio, que traduz seu dia-a-dia no trabalho e na floresta. Aqui estão algumas das palavras e expressões mais usadas:
Aviamento: Forma histórica de organização das relações comerciais e sociais do seringal tradicional. As mercadorias são vendidas a crédito e pagas com o produto final da safra.
Barraca: casa do seringueiro, feita de troncos de paxiúba, uma espécie de palmeira. O terreno em volta é sempre limpo, sem vegetação, com algumas árvores frutíferas, e abriga a criação doméstica.
Barracão: casa grande com portas largas, onde o trabalhador se abastece de mercadorias com preços estipulados pelo patrão.
Cativeiro: relação de trabalho nos seringais tradicionais.
Cativo/freguês: seringueiro diarista que trabalha em um seringal tradicional.
Colocação: unidade básica da exploração produtiva dos seringais, com cerca de 500 hectares.
Corte: pequena incisão no caule da árvore por onde escorre o látex.
Estrada da seringa: área da floresta, em formato circular, onde cada seringueiro utiliza cerca de 200 a 300 árvores para a extração média anual de 500 quilos de borracha.
Fabrico: safra de borracha.
Igarapé: pequeno riacho.
Liberto: seringueiro autônomo que utiliza a floresta e comercializa borracha e castanha por conta própria.
Mariscar: pescar como divertimento ou trabalho. Patrão: dono, arrendatário ou gerente de um seringal tradicional.
Péla: bola de borracha.
Poronga: lamparina que o seringueiro usa para andar na floresta.
Regatão: comerciante dos rios.
Seringalista: patrão, dono do seringal.
Varação: caminho na floresta que liga as casas dos seringueiros.
Reservas extrativistas: um modelo para a Amazônia
A criação de reservas extrativistas na Amazônia, iniciada no governo Sarney, não é uma novidade. Já em 1911, o então presidente Hermes da Fonseca, com o intuito de evitar o desmatamento do ex-território do Acre, decretou a formação de reservas abrangendo as bacias dos Rios Acre, Purus e Alto Juruá Hoje sabe-se, porém, que a necessidade das reservas vai além de se evitar pura e simplesmente o desmatamento: está diretamente ligada à sobrevivência daqueles que dependem da floresta para viver, calculados em 1,5 milhão de pessoas, número equivalente a 32% da população rural da região.
A idéia de estabelecer reservas extrativistas na Amazônia começou a brotar entre os habitantes da floresta – seringueiros, castanheiros, ribeirinhos – a partir da década de 70, quando a derrubada das árvores se intensificou, em resposta aos incentivos fiscais governamentais oferecidos às empresas para desenvolver projetos agropecuários na região. Nessa época também começam a surgir os empates, tentativas de sustar a derrubada de árvores através de ações pacíficas, baseadas no diálogo com os peões contratados pelos fazendeiros para o serviço. Grandes projetos agropecuários e o pipocar de empates marcados pela violência tiveram como conseqüência o desequilíbrio da estrutura social da região e o êxodo de muitos seringueiros para as cidades, acabando por fazer crescer a miséria urbana regional.
A teia da dependência
Ao mesmo tempo, a necessidade de solidariedade para o combate ao desmatamento da floresta fez crescer, entre os seringueiros, a reflexão acerca do sistema de trabalho semi-escravo, no qual muitos deles ainda vivem. Tradicionalmente extrativista, a população rural da Amazônia realiza uma exploração econômica ecologicamente sustentada da floresta, com atividades que necessitam de grandes extensões de terra. Um seringueiro, por exemplo, precisa de, no mínimo, 200 a 300 árvores (o equivalente a uma estrada de seringa) para trabalhar, mas é hábito que cada um disponha de três estradas por safra, área correspondente a 540 hectares.
A necessidade de grandes extensões de floresta, sobre as quais os seringueiros não têm posse documentada (eles são posseiros), tem favorecido, desde que se começou a extrair borracha na Amazônia, no final do século passado, o estabelecimento de uma relação nada capitalista de trabalho. O analfabetismo e o isolamento do seringueiro, acostumado a passar longas temporadas dentro da floresta, colaboram para que ela permaneça em pleno fim do século XX, estruturada na extrema dependência dos coletores de látex em relação aos seringalistas (que se intitulam os donos dos seringais) e aos regatões. Através dela o seringueiro se associa ao dono do seringal e, a partir desse primeiro laço inicial, estabelece uma completa rede de dependência, na qual ele é obrigado a fornecer a borracha coletada somente ao seringalista com quem se aliou. Em troca, recebe mantimentos e artigos necessários à sua sobrevivência, com preços estipulados livremente pelo seringalista e acrescidos de juros e correção monetária. Se, por acaso, vender o produto para outro interessado, fica sujeito a ameaças e cortes no fornecimento de alimentos. Além de ter todos os produtos cobrados livremente, em muitos casos também é requerido do seringueiro o pagamento da chamada “renda da borracha”, uma taxa equivalente a 10% do volume de borracha coletado.
Vantagens das reservas
Não obstante as dificuldades, esse tipo de relação trabalhista tende a desaparecer na Amazônia com a criação das reservas extrativistas, cuja implantação prevê a união como proprietária da terra. Desde que o ex-presidente José Sarney decretou, em janeiro de 1990, que uma área de 506.186 hectares do Alto Juruá (AC) fosse transformada em reserva extrativista, três outras já foram implantadas: a de Chico Mendes, no Acre; a do Rio Cajari, no Amapá; e a do Rio Ouro Preto, em Rondônia.
Hoje, as quatro reservas já criadas totalizam 2.162.989 hectares e beneficiam 6.250 famílias. Outras dez, espalhadas pelos Estados do Acre, Amapá e Amazonas, num total de 889.548 hectares, estão em processo de implantação. O surgimento das reservas extrativistas na Amazônia tem sido acompanhado pela fundação de escolas de 1° grau, voltadas para a alfabetização de adultos; postos de saúde e cooperativas. São estas últimas que, cada vez mais, vêm se consolidando como a base para o sucesso da iniciativa, pois os preços de compra e venda oferecidos são os mais vantajoso para o seringueiro.
Os nomes de Mary Helena Allegretti e de Chico Mendes (Francisco Alves Mendes Filho), líder seringueiro assassinado em dezembro de 1988, estão diretamente relacionados com o surgimento das reservas extrativistas e das escolas de 1 grau na floresta amazônica. Natural de Xapuri (AC), Chico Mendes havia adquirido ainda muito jovem um dom que o diferenciava de seus colegas de trabalho: sabia ler. Filho de pai nordestino que, como muitos outros, tinha migrado para o Acre na década de 40 em busca de trabalho, com apenas nove anos já trabalhava como seringueiro – sempre de forma autônoma.
Sua trajetória política se iniciou quando, em 1975, junto com outros seringueiros, participou da fundação do sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia, do qual é escolhido secretário-geral. A partir daí, começou a tomar parte dos empates e organizou várias ações para defender a posse da terra dos seringueiros. Em 1977, fundou o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri e foi eleito vereador pelo extinto MDB. Em 1981, assumiu a direção do sindicato de Xapuri, cargo que exerceu até a morte. A partir de 1985, seu nome começou a ganhar repercussão internacional com o 1° Encontro Nacional dos seringueiros, reunião que marca a formalização da proposta da criação da “União dos Povos da Floresta”. È também nesse encontro que sugestão de formação de reservas extrativistas na Amazônia tomou forma e começou a ganhar adeptos. Em 1989, já conhecido no Brasil e no exterior, assumiu a presidência do Conselho Nacional dos Seringueiros.
Prêmio e morte
No entanto, o nome de Chico Mendes só consolidou-se internacionalmente quando o líder seringueiro, após uma denúncia comprovada de que os bancos internacionais estavam financiando o desmatamento da Amazônia, recebeu, em 1987, o Prêmio Global 500, da organização das Nações Unidas (ONU). Após a denúncia, efetuada em uma reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em março de 1987, o banco suspendeu o asfaltamento da BR-364 e o assunto começou a ganhar as páginas dos jornais de todo o mundo. Sua morte, apesar de revestida por um tom inegavelmente trágico, difere de muitas outras ocorridas na região somente pelo fato de ter sido divulgada.
Presume-se que o assassinato de Chico Mendes, ocorrido em 22 de dezembro de 1988, tenha sido praticado a mando do fazendeiro Darli Alves. O fazendeiro havia comprado a posse de um seringueiro no seringal cachoeira – onde Chico e sua família moravam e trabalhavam – mas foi impedido de ocupar a área e expulso do local. Chico Mendes apresentou então à Polícia federal do Acre um mandado de prisão expedido contra o fazendeiro por envolvimento em assassinato no Paraná. Ao invés de prender o acusado, a Polícia federal acreana advertiu-o do fato e propiciou assim o início das ameaças de morte ao líder seringueiro, concretizadas em fins de 1988. O julgamento dos acusados da morte de Chico Mendes está ocorrendo este mês no Acre.
Hoje, a figura de Chico Mendes encontra-se perpetuada na fundação que leva o seu nome, uma entidade sem fins lucrativos nascida cinco dias após a sua morte, com o objetivo de continuar seu trabalho em defesa da Amazônia. A fundação destina 70% dos recursos financeiros que recebe aos interesses dos povos da floresta e, 30%, às famílias dos seringueiros assassinados.
Revista Horizonte Geográfico
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