Texto: Peter Milko
No início dos anos 80, um bem-humorado biólogo, nascido em Belém, desembarcou no médio rio Solimões, a 500 quilômetros ao norte de Manaus, para desenvolver uma pesquisa para tese de doutoramento sobre os uacaris-brancos (Cacajau calvus calvus), um primata de pelagem esbranquiçada e rosto vermelho até então praticamente desconhecido da ciência. Dotado de muita energia, o biólogo logo percebeu que o local – de floresta inundada, conhecida como várzea – era alvo de séria ameaça ambiental. Resolveu arregaçar as mangas e articular com o governo do Estado do Amazonas a criação de uma reserva ecológica para salvar a espécie.
Percebendo o grande número de ribeirinhos já instalados na área proposta para a reserva, José Márcio Ayres arquitetou uma nova modalidade de unidade de conservação aliando a preservação da natureza com a permanência dos moradores e dando condições para a exploração dos recursos de forma não predatória. Assim nasceu, em 1996, a Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, a primeira do gênero. Com 1,1 milhão de hectares (correspondendo à metade do Estado de Sergipe), é também a maior área de conservação formada por florestas alagáveis do mundo.
O apoio da população
A porta de entrada de Mamirauá é a cidade de Tefé, na margem direita do Amazonas, rio que ali tem o nome do Solimões. Chegamos à região em um avião pequeno de companhia regional, o que deu a oportunidade de olhar do alto o imenso tapete verde cortado por rios que formam a reserva. A cidade de 70 mil habitantes, fundada nos tempos coloniais como um aldeamento jesuítico, conta hoje com um campus avançado da Universidade Estadual do Amazonas. Todo o transporte é feito por via fluvial ou aérea. A imponente sede nova do Instituto Mamirauá, que administra a reserva e os projetos de pesquisa e educação ali realizados, fica em um dos extremos da cidade. Ali, um simpático memorial dedicado à obra de Márcio Ayres, morto em 2003, mostra o histórico das transformações que o biólogo conseguiu implantar nessa região longínqua da Amazônia. “Quando iniciamos o programa de educação ambiental com palestras, ninguém das comunidades do entorno sabia o que acontecia na reserva”, comenta Edila Moura, coordenadora dos projetos de educação ambiental do instituto, que nos acompanhou por todo o percurso. “Quem andava com o Márcio era chamado de macaqueiro.”
Hoje, boa parte da população de Tefé percebe a importância e os benefícios da reserva, o que constitui um importante fator para mantê-la protegida. Fomos conferir o resultado do trabalho de sensibilização em três escolas da cidade. Todas estavam envolvidas em uma gincana que propunha, entre outras atividades, o recolhimento de pilhas para reciclagem e a realização de redações. O objetivo foi envolver os alunos na discussão de temas ambientais locais. O diretor da Nossa Senhora das Graças, uma das escolas envolvidas na gincana, Iane Jorge, estudante de pós-graduação em gestão escolar, fez questão de nos mostrar o equipamento destinado a fornecer eletricidade para o estabelecimento por meio de energia solar. “Por enquanto, só temos luz à noite, pois estamos muito afastados do centro de Tefé”, conta. “Mas estamos testando a energia solar para ver se conseguimos usar ar-condicionado e assim melhorar o rendimento em sala de aula.”
O programa de educação ambiental com as escolas da região de Mamirauá recebeu em 2003 o apoio da Esso, numa das últimas parcerias que Márcio Ayres fechou antes de sua morte. Assim, o instituto pôde estender suas atividades, criando o projeto Arte Educação, no qual dezenas de jovens preparam a montagem de peças de teatro. Os ensaios e a vivência ocorrem numa balsa flutuante, instalada no lago Tefé, a poucos minutos de voadeira da cidade. Percebi claramente a satisfação dos jovens participantes quando conversamos sobre o impacto desse aprendizado em suas vidas na visita à balsa. Aqueles que continuaram os estudos chegaram ao ensino superior, inclusive na recém-criada filial da universidade, conseguindo vencer a timidez e a inibição com a convivência proporcionada pelo projeto.
“Bocas de ferro” na várzea
A bordo do barco do instituto, percorremos um pedaço da gigantesca reserva e fomos conhecer como o conceito de desenvolvimento sustentável está sendo aplicado nessa região distante. Paramos na pequena e acolhedora cidade de Uarini, a poucos quilômetros da reserva. Nossa primeira tarefa foi ajudar a escolher a redação vendedora do concurso do projeto de educação ambiental da Escola Estadual Hermano Stradelli. Em meio ao aroma do sopão dos alunos, que estava prestes a ser servido, Edila e a representante da Esso, Maria Luiza Soares, examinavam as redações da quinta série. Os 180 alunos da escola também foram envolvidos na gincana ambiental, e a festa foi grande quando anunciaram os vencedores.
Mais de oito horas de navegação rio acima nos levou a Porto Braga, uma vila de 27 famílias. Sandro Regatieri, estudante de geografia em Tefé e um dos educadores ambientais que nos acompanhava, foi cumprimentado calorosamente na nossa chegada. Com a familiaridade de quem já circulava na região havia seis anos como missionário, ele explicou os princípios que regem o local: “Aqui só pode morar quem é parente. No total, a reserva já abriga uma população de 11 mil pessoas, cujo desafio é tirar sustento da natureza sem destruí-la”.
Entre as casas que vimos desfilar ao longo do rio, uma parecia mais nova, com uma antena e duas “bocas de ferro” (como chamam na região os auto-falantes). Alçada acima do solo para não ser invadida pelas águas na estação das chuvas, era a sede da rádio comunitária, a “menina dos olhos” do projeto de educação ambiental. Dois jovens, Vanildo e Cleidivane, se apresentaram como os programadores e operadores da rádio. Tinham acabado de transmitir as notícias do dia para um público estimado em 200 moradores. Entre músicas e recados, a experiência da rádio comunitária foi aprovada com entusiasmo pelos moradores em Porto Braga e nas outras duas vilas onde foi instalada.
A única escola dessa comunidade é dirigida por Folhinha Servalio Chaves, também professora de português. Ela explicou que o principal problema ali não é a falta de recursos. “Sinto mesmo é o carapanã e as mutucas, que, quando invadem a escola, impedem de dar aula”, conta preocupada. Tive de concordar com a professora. Os carapanãs (pernilongos) resolveram mostrar sua força quando seguimos para a comunidade seguinte de Boca de Mamirauá. Qualquer vacilo na entrada ou saída da cabine dava oportunidade a um enxame desses insetos se instalar dentro do barco.
Em Boca do Mamirauá, uma comunidade formada por 15 famílias, fomos recebidos com um churrasco de tambaqui e bodó, dois saborosos peixes amazônicos. As famílias investiram no manejo de madeira, retirando árvores de forma seletiva, seguindo o plano desenvolvido com auxílio do Instituto Mamirauá. São tiradas apenas algumas árvores de cada lote, três ou quatro por hectare. Parte-se, então, para outro lote, voltando-se a cortar no primeiro só depois de 25 anos. Do alto da árvore que serve como abrigo do sol escaldante do almoço, o som da “boca de ferro” anuncia os recados de domingo e o resultado do jogo de futebol do Brasil na Olimpíada de Pequim: mais uma rádio comunitária funcionando!
Durante o churrasco, sou apresentado a Hosana, líder da Pastoral da Criança e agente de saúde, que fornece os primeiros cuidados à comunidade e tenta prevenir o aparecimento de doenças, já que o médico mais próximo está a cinco horas de distância de barco. Seu pai, Joaquim, cultiva um roçado de banana e mandioca, além de criar alguns bois para subsistência. “A vida aqui só complica quando a água sobe”, conta ele. “Daí só sobra a maromba (jangada com cerca) para os bois, e a criançada reclama que não dá para correr nem jogar futebol.”
Experiências originais
Perto da Boca foi erguida, sobre enormes toras flutuantes, a pousada Mamirauá, outra fonte de renda importante para as comunidades locais. Administrada pelos ribeirinhos, os lucros são repartidos proporcionalmente entre os que se envolvem no trabalho. A pousada emprega todos os cuidados visando o mínimo impacto ambiental e, por causa de sua localização inédita – é a única acomodação de ecoturismo num raio de centenas de quilômetros –, é considerada hoje um modelo de ecoturismo de base comunitária que gera renda e melhoria da qualidade de vida. Trilhas na mata com guias bem treinados permitem descobrir a floresta amazônica e, com sorte, ver os uacaris. Pássaros e insetos de uma infinidade de espécies são fáceis de observar e os jacarés, que rondam a pousada, embora visualmente bonitos, desestimulam o banho no rio.
Na recepção flutuante da pousada, vimos um evento cultural realizado anualmente, quando a comunidade expõe e vende seus produtos para os visitantes. Conversei com Mariles Oliveira, que vende farinha, doce de banana e goiaba, além de outros alimentos da terra. Nascida na reserva, ela só reclama da dificuldade de encontrar potes para os doces e assim conseguir que durem mais tempo. Nos fins de semana, ela e a família vão à feira de Alvarães, um dos municípios a caminho de Tefé. “Conseguimos dobrar nossa renda familiar depois da orientação do pessoal do instituto”, diz. “Antes, era só monocultura de mandioca. Há 12 anos fazemos o plantio consorciado, que está dando certo. E muitas famílias já estão nos copiando.”
A bordo de duas lanchas rápidas, fomos conhecer a principal área de proteção integral de Mamirauá, onde estão localizados os lagos, na verdade um braço de rio que penetra na floresta e não tem saída nos tempos de água baixa. No caminho, cruzamos com flutuantes que abrigam projetos de pesquisa do instituto, como o que estuda os botos-vermelhos (ou cor-de-rosa, como passaram a ser conhecidos depois de filmados pelo francês Jacques Costeau). No lago de Mamirauá concentram-se os pirarucus, peixes enormes com detalhes em vermelho na cauda, que quase foram dizimados por pescadores clandestinos. Hoje, a pesca planejada é a maior fonte de renda das comunidades locais.
Ao cair da tarde os tons amarelos invadiam a paisagem antes só verde e azul, com espaço para o branco de milhares de garças e outras aves que fazem da região, agora protegida, um imenso berçário. O cenário paradisíaco me fez lembrar do biólogo visionário que adorava ser chamado de macaqueiro. Provavelmente muito pouco disso existiria se ele não tivesse se empenhado tanto para a sua preservação.
O legado de José Márcio Ayres
Preocupado em não deixar apenas no papel a criação da reserva, o biólogo José Márcio Ayres articulou um inovador sistema de gestão participativa, que incluiu a população no manejo dos recursos naturais da região. A área da reserva hoje pertence ao governo do Estado do Amazonas e o Instituto Mamirauá é co-gestor, por meio de convênio com a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável/Centro Estadual de Unidades de Conservação. Além de receber verba do ministério, o instituto tem liberdade para buscar recursos de empresas e outras instituições, como a Esso, que patrocina há vários anos o programa de educação ambiental, e a Wildlife Conservation Society, uma organização não-governamental americana que apóia financeiramente o projeto desde o início. A morte precoce de Ayres, aos 49 anos, deixou um vazio entre seus colaboradores, porém há um claro comprometimento, de pesquisadores e técnicos que trabalham na região, em dar continuidade aos seus ideais e levar adiante a valiosa experiência de conservação
na Amazônia.
Revista Horizonte Geografico
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