domingo, 1 de março de 2009

Poluição compromete saúde de crianças na China

Epidemiologistas demonstram indícios moleculares relacionando impacto da poluição do ar com crescimento e desenvolvimento infantil
por Dan Fagin
PETER PARKS AFP/Getty Images

VENTO NOCIVO: Garoto usa máscara para se proteger da poluição em Linfen, China. Resultados preliminares de um estudo conduzido em Tongliang, China, revelou que crianças expostas ao ar poluído durante a gestação estão mais sujeitas a mutações de DNA -- e mais suscetíveis a problemas de desenvolvimento -- que aquelas cuja mãe respira ar mais puro durante a gravidez.

Umas poucas pilhas de sucata de metal e um barracão depósito de carvão enferrujado é tudo o que sobrou de uma usina que até recentemente dominava a paisagem de Tongliang -- cidade cinzenta de 100 mil habitantes no centro-sul da China -- como um imenso dragão lançando fumaça. Conforme caminhamos até o depósito um pastor-belga começa a latir furiosamente, sacudindo sua corrente de ferro e exibindo os dentes afiados. Um par de olhos castanhos nos esgueira pela porta entreaberta -- são de uma garota vestindo uma camisa manchada, segurando um gato rajado que, ao nos aproximarmos, pula para longe e vai se esconder sob uma laje de concreto. A garota não tem mais que seis ou sete anos de idade e, aparentemente, vive no depósito com o pai, que nos observa desconfiado do seu interior.

A delegação de autoridades locais que nos acompanha na visita ao lugar parece constrangida e se apressa em nos conduzir até o escritório mais próximo, para nos mostrar a maquete de um extravagante -- para os padrões de Tongliang -- condomínio residencial de 900 unidades planejado para a propriedade. Mas Frederica Perera está intrigada. Ela caminha decidida até a garota e a cumprimenta com um amistoso e sorridente “ni hao”. A menina retribui o sorriso, antes de se juntar ao pai, na sombra. Afinal, as crianças eram o motivo da ida de Frederica até lá, na busca por indícios da correlação entre poluição do ar e doença -- em especial crianças expostas a poluentes durante a gestação. Como diretora do Centro para a Saúde Ambiental Infantil da Columbia University, Frederica ajudou a fundamentar o campo da epidemiologia molecular, com uso de ferramentas da análise molecular para identificar fatores ambientais e genéticos que contribuam para doenças.


ALISON FRANKELL (Fagin) JUSTIN WEINSTEIN (Frederica e Tang)

EPIDEMIOLOGISTAS MOLECULARES Frederica P. Perera e Deliang Tang examinaram 12 locais na China antes de se decidir por Tongliang, para conduzir sua pesquisa sobre adutores HAP-DNA.

Ela e outros epidemiologistas moleculares que estudam implicações ambientais em doenças cada vez mais desenvolvem parte de seu trabalho no Terceiro Mundo, onde a poluição é tão terrível que suas complexas implicações na saúde podem ser medidas até mesmo em estudos com pequenas amostras de população. E suas conclusões devem ser aplicadas em lugares como os Estados Unidos, Europa e Japão, onde as exposições ambientais são mais sutis e seus efeitos mais difíceis de medir em estudos de menor escala. Onde quer que trabalhem, o que distingue a abordagem dos epidemiologistas moleculares é a busca por indicadores biológicos diretamente ligados à exposição tóxica e às enfermidades. Com freqüência esses marcadores assumem a forma de substâncias químicas ligadas ao DNA, na alterações na estrutura genética ou na atividade que coincide com determinados tipos de contaminantes e de doenças. Agora que os microarranjos de DNA e outras tecnologias de escaneamento tornaram mais fácil avaliar muitos desses biomarcadores, o uso rotineiro das ferramentas pode, ao menos em teoria, salvar vidas identificando populações ameaçadas por poluentes específicos.

Mas a ciência ainda provoca controvérsia. Como relativamente poucos biomarcadores moleculares candidatos de susceptibilidade, exposição ou doenças anteriores foram validados -- ou seja, são indicação comprovada de uma doença futura -- e como é muito difícil excluir variáveis confusas como dieta e predisposição genética, isso tudo pode ser tão importante quanto a exposição a poluentes como causa de diversas enfermidades. E o que tem se revelado ainda mais difícil é precisar como a interação desses riscos distintos afeta a saúde.

Em decorrência disso, mais de 25 anos após a primeira tese de Frederica sobre o assunto, a epidemiologia molecular progrediu mais lentamente que seus arquitetos inicialmente esperavam e o consenso entre os pesquisadores, por mais tentadora que pareça ser a teoria, é que as complexidades do mundo real limita sua utilidade. O entusiasmo inicial pela idéia que colocava alguns biomarcadores específicos -- a proteína p53 supressora de tumor é um exemplo de destaque -- como possíveis indicadores confiáveis de doenças antigas perdeu seu brilho, à medida que pesquisadores identificaram etiologias muito mais complexas, envolvendo cascatas de alterações bioquímicas para muitas doenças. “Pode-se dizer que a recepção, no início, foi um pouco festejada demais. Algumas alegações foram prematuras”, reconhece Frederica. “A promessa de usar os biomarcadores para a detecção precoce e para um tratamento individualizado tornou-se mais um desafio”. Mas agora, em Tongliang, ela acredita ter encontrado o melhor caso teste para a epidemiologia ambiental em termos moleculares. E ela e seu colega da Columbia University, Deliang Tang, estão obtendo resultados que justificam seu otimismo. A maneira como realizam suas descobertas é quase tão interessante quanto o que encontram.


GREG BAKER AP Photo


ORIGEM NEBULOSA: A poluição, tabagismo, dieta e predisposição genética podem ser decisivos em desencadear diversas doenças, dificultando o reconhecimento do papel da poluição. Mas, na pesquisa em Tongliang, a equipe encontrou correlações entre a contagem de adutores e o atraso no desenvolvimento, mesmo depois de descartadas as influências alternativas -- um claro sinal do envolvimento do ar contaminado.

Um “Doador Biológico”
Desde que começou a estudar os biomarcadores em 1979, o que mais despertou o interesse de Frederica foram os adutores de HAP-DNA, que ela e Tang vêm controlando nos leucócitos das crianças foram expostas a emissões de gases da usina de Tongliang. Os HAPs, ou hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, são uma grande família de compostos formados pela combustão incompleta de material orgânico -- especialmente carvão, mas também outros combustíveis fósseis, cigarros e até mesmo carne para churrasco.Eles estão entre os mais espalhados e danosos poluentes aéreo do mundo. O que mais interessa a Frederica sobre os HAPs é sua estrutura molecular. Muitos deles formam ligações covalentes com o DNA. Esses complexos poluente-DNA combinados, ou adutores, pode comprometer a replicação do genoma durante a divisão celular, alterando as funções dos genes que promovem ou suprimem as doenças.

A usina movida a carvão que acinzentava Tongliang era um verdadeiro Vesúvio de HAPs e seu fechamento em 2004 transformou as condições ambientais na cidade, quase do dia para a noite. E isso tornou Tongliang um fato raro na epidemiologia: um a laboratório de verdade para avaliar os impactos na saúde anteriores e posteriores a exposição aos poluentes. A cidade ainda está longe de impecável, mas os carros já não transitam pelas ruas expelindo nuvens de fumaça e as camisas brancas secando em varais ao ar-livre, já não se ficam cinzentas com tanta rapidez. Os medidores da poluição do ar que a equipe da Columbia instalou por Tongliang confirmam a melhora: as concentrações no ar de um dos mais importantes HAPs, o benzopireno, ou BaP, caiu cerca de 30%, entre 2002 e 2005. Outros HAPs tiveram redução ainda maior.


DAN FAGIN

As mudanças que mais interessam a Frederica, entretanto, estão ocorrendo no organismo dos residentes mais jovens da cidade. Desde 2002 ela e Tang, em conjunto com Tin-yu Li do Hospital Infantil Chongqing, observam, desde o nascimento, 450 crianças que vivem num raio de 2 km do local da usina, por meio de testes de DNA e do acompanhamento de seu desenvolvimento físico e mental. As análises preliminares dos pesquisadores mostram que as crianças nascidas em 2002, quando a usina ainda operava, têm a cabeça menor e um pior desempenho nos testes de desenvolvimento que as nascidas em 2005, um ano após o fechamento da usina. Há ainda uma discrepância no nível molecular: as concentrações de adutores de BaP-DNA eram cerca de 40% mais altas nos leucócitos de recém-nascidos de Tongliang em 2002 que em bebês nascidos três anos depois. E talvez o mais importante seja que, nas crianças nascidas em 2002, o nível de concentração desses adutores BaP-DNA está diretamente relacionado com a circunferência da cabeça e os resultados no teste de desenvolvimento. Em outras palavras, quanto maior o dano no DNA da criança ocorrido durante sua gestação, maior a propensão a ter uma cabeça menor, um pior desempenho motor e um pior desenvolvimento nos primeiros anos de vida. Essas correlações foram menores entre os bebês nascidos em 2005, indicando que conforme a concentração de poluição do ar no geral diminui, diminuem também seus riscos. Crianças nascidas em 2005 possivelmente serão menos propensas ao câncer, segundo Frederica, cujos estudos anteriores indicam que a contagem dos adutores está relacionada ao risco de desenvolvimento de tumores.

Frederica Perera explica que os dados de Tongliang, combinados aos resultados de estudos prévios, conduzidos por ela na Polônia e na cidade de Nova York, demonstram que a contagem dos adutores nos leucócitos são “indicadores biológicos” confiáveis e permitem avaliar o impacto dos HAPs sobre o desenvolvimento neurológico. Na avaliação dela, um dia os exames de adutores poderão integrar o arsenal pediátrico para identificar crianças com elevada propensão para desenvolver problemas mentais e que necessitam de intervenção precoce.

A comparação 2002/2005 é uma descoberta de “grande potencial” observa o epidemiologista molecular John D. Groopman da Johns Hopkins University: “Uma das etapas cruciais na validação dos biomarcadores é demonstrar que, ao fazer sua modulação, conseguimos reverter os resultados para a saúde”. “Estou extasiado com as conquistas da Dra. Perera”, acrescenta John F. Rosen do Hospital Infantil em Montefiore, de Nova York, um experiente pesquisador sobre o envenenamento por chumbo, que também já trabalhou na China. “A tradução dos resultados clínicos será um avanço para a saúde infantil para a China e para o resto do mundo”, avalia ele.

Descobrindo Tongliang
Caía uma fina garoa na manhã em que cheguei em Tongliang com Frederica e Tang. As montanhas que rodeavam a cidade tinham três de seus lados totalmente encobertos como acontecia nos dias em que a usina de carvão estava em atividade. Grande parte da eletricidade nesta parte da China provém de hidroelétricas, mas como o derretimento do gelo só enche o rio Yangtze depois da primavera, para suprir a demanda durante o inverno muitas das cidadezinhas conta com antigas usinas movidas a carvão, desprovidas até mesmo de controles básicos de poluição.

A usina de Tongliang consumia mais de 4 mil toneladas de carvão por mês, de novembro a maio. E o carvão era particularmente problemático pois como contém elevada concentração de enxofre, não queima por completo. As cinzas carregadas de HAP e a emissão de gases liberadas pela chaminé de 85 metros caiam cobrindo a cidade baixa como um grosso cobertor. Em 2000 Frederica estava à procura de um lugar assim para aplicar suas duas décadas de pesquisa sobre o papel dos adutores HAP-DNA como indicadores do risco de doenças. Sua pesquisa inicial -- a primeira conduzida com humanos -- havia medido a presença de adutores no tecido pulmonar de pacientes adultos com câncer]; na etapa seguinte ela os mediu em mães e crianças que viviam em diferentes regiões da cidade de Nova York e na cidade industrial de Cracóvia, na Polônia. Ela descobriu que pessoas expostas à poluição do ar apresentavam concentrações mais elevadas de adutores no sangue que os níveis elevados em decorrência da presença de mutações genéticas, conhecidos fatores de risco de câncer e de problemas de desenvolvimento em crianças. Crianças de cidades com ar mais puro, segundo apurou Frederica, apresentavam menos adutores e menor propensão a sofrer de déficit de crescimento.

Ainda assim, sua pesquisa era restrita e não lhe permitia excluir a possibilidade de que diferenças no estilo de vida -- e não a poluição -- pudessem explicar as disparidades que havia encontrado quanto a saúde e nível dos adutores entre mães e crianças em cidades poluídas e não poluídas. Dessa vez, Frederica pretendia dar um passo adiante, identificando uma cidade onde as emissões de HAPs tivessem sido bruscamente reduzidas, permitindo a ela realizar comparações anteriores e posteriores numa única e localizada população. A China -- com graves problemas ambientais e um governo autoritário capaz de fechar sem aviso prévio uma fonte poluidora massiva -- pareceu o local indicado a procurar. E Tang era a pessoa certa para coordenar o estudo pretendido por Frederica. Médico natural de Shanghai, Tang, que havia feito residência em saúde pública no laboratório de Frederica, era agora seu freqüente colaborador de pesquisa. Para o estudo ele deveria treinar uma pequena equipe de médicos e enfermeiras chineses para recolher amostras de sangue da placenta e do cordão umbilical das mães recrutadas para a pesquisa, e aplicar testes cognitivos às crianças durante seu crescimento. Ele ainda deveria lidar com uma ampla gama de oficiais do governo, desde burocratas de Pequim a políticos locais, para garantir a cooperação de hospitais, conseguir espaço de trabalho em laboratórios, importar equipamentos de controle da poluição e exportar amostras de sangue -- tarefas que representavam um desafio político.

Frederica Perera e Tang investigaram 12 outros possíveis localidades antes de escolher Tongliang, onde o fechamento da única usina havia sido programado como parte de um programa de governo para substituir usinas à carvão obsoletas. Tongliang era a escolha ideal não apenas pela desativação da unidade, mas também pelo fato de a cidade contar com poucas outras fontes importantes de poluição do ar além do tráfego de veículos. O gás natural já havia substituído fogões à lenha e a carvão na cidade, que não tem fábricas de grande porte. Os quatro hospitais locais que concordaram em participar eram grandes o bastante para gerar em conjunto os casos necessários para satisfazer as exigências estatísticas do estudo como planejado por Frederica e Tang: 150 mulheres não fumantes, cuja gestação coincidia com os meses de operação da usina. Outras mães e recém-nascidos seriam testados nos anos seguintes ao do fechamento da usina.

Mas quando Frederica e Tang chegaram a Tongliang, em meados de 2002, para iniciar o recrutamento de gestantes descobriram-se envolvidos em uma controvérsia. A questão do desativamento ou não da usina havia mobilizado Tongliang por anos. Algumas mães tinham feito protestos de silêncio contra a continuidade das operações durante encontros oficiais -- um avanço impressionante na China. Na ocasião, preocupados com o impacto econômico, os oficiais da cidade consideravam instalar filtros na usina ou transferir a unidade para os limites da cidade, em vez de fechá-la. Os pesquisadores da Columbia University foram obrigados a esperar meses pela decisão. Por fim, a publicidade sobre o estudo planejado por eles pesou na balança a favor do fechamento e a velha chaminé expeliu sua última golfada de fumaça cinzenta em maio de 2004.

Complicações Persistentes
Três jovens futuros pais, todos fumando, esperavam sentados no corredor central apinhado do Hospital Maternidade Municipal de Tongliang, ao lado de dois aviso de “Não fumar”. O cigarro é um vício endêmico entre os homens chineses -- metade da população masculina e dois terços dos homens adultos com menos de 25 anos fuma regularmente -- e, ao que parecia, enfermeiras e médicos desistiram de impor a restrição.

Em uma sala no final do corredor, uma equipe médica se dedica a atender um garotinho chamado Junshan Li, nascido no segundo trimestre de 2002, quando a usina funcionava normalmente. Li é um das 150 pessoas estudadas em Tongliang, e agora, aos 5 anos de idade, aparenta ser perfeitamente saudável e ativo -- tanto que quebrara a clavícula num acidente no playground na semana anterior. Li estava no hospital não por causa do acidente mas para fazer sua avaliação anual do estudo de Frederica e Tang; no momento, estava sentado na ponta da cadeira, proferindo com entusiasmo os números em chinês -- “ba!” ... “san!” ... “qi!”-- respondendo a questões simples de aritmética feitas por uma jovem pediatra chamada Xu Tan, cujo objetivo é avaliar o desenvolvimento físico e cognitivo de Li. Como parte da avaliação, o garoto será pesado e terá a estatura e a circunferência da cabeça medidas.

A cena no hospital ilustra o desafio principal da epidemiologia molecular. Os déficits no crescimento e desenvolvimento que Frederica e Tang estão levantando, para relacionar à exposição prenatal à poluição com HAP, são sutis e apresentam causas variadas -- incluindo o fumo passivo, a fumaça do cigarro dos pais fumantes na outra ponta do corredor.

Os pesquisadores tentaram contornar o problema das causas alternativas selecionando somente mães não-fumantes com gestação de baixo risco e, considerando seu nível cultural, presença de fumantes na família e exposição aos HAPs por carnes grelhadas e outros alimentos, além de outros fatores pouco esclarecidos. O estudo ainda incluía medições da quantidade de metais e antioxidantes presentes no sangue que, igualmente, podem comprometer o desenvolvimento da criança. Assim, os pesquisadores estavam confiantes de que as correlações estabelecidas por eles entre a contagem de adutores nas crianças em Tongliang e diversas medidas importantes de crescimento e aprendizagem são devidos principalmente à exposição a poluição do ar.

Embora significativas estatisticamente as diferenças entre as crianças de Tongliang nascidas em 2002, quando a usina ainda estava aberta, e as nascidas em 2005, depois do fechamento, são discretas: uns poucos milímetros na circunferência da cabeça e na altura, umas poucas gramas no peso corporal, um ponto ou dois no teste de desenvolvimento. Segundo Frederica os resultados indicam que, em relação às nascidas em 2005, as crianças de 2002 precisarão de mais tempo para desenvolver a coordenação motora e processo de aprendizagem, e exigirão ajuda extra na escola. Esse tipo de efeito sutil na saúde costuma ser motivo de discussão na pesquisa com biomarcadores. Nas décadas de 1970 e 1980, Herbert L. Needleman, atualmente na University of Pittsburgh, foi pioneiro na pesquisa dos níveis de chumbo em populações examinando traços de metais em dentes de bebê e estabelecendo correlações com a diminuição na capacidade de aprendizagem e o comportamento delinqüente. Mas a natureza indistinta dos problemas neurológicos identificada por Needleman, e os níveis de chumbo muito baixos encontrados por ele, expuseram sua pesquisa a duras críticas da indústria do chumbo. Por fim, suas descobertas foram replicadas e atualmente têm aceitação total como justificativa principal para a remoção do chumbo da gasolina e das tintas. Da mesma forma, campanhas para eliminar o fumo passivo citam pesquisas sobre exames para medir os níveis de cotinina, o principal derivado da nicotina, na urina e no sangue. O nível de cotinina em gestantes e em recém-nascidos passou a ser amplamente usado como marcador em pesquisas sobre ligações entre a fumaça do cigarro no ambiente e uma gama variada de problemas de desenvolvimento mental em crianças.

Há uma complicação extra ao usar biomarcadores para formular opinião sobre efeitos na saúde. Como as concentrações de chumbo, cotinina e adutores de HAP-DNA são relativamente fáceis de se medir na corrente sangüínea, não significa que uma mesma dose vá atingir o cérebro ou outros órgãos sujeitos a danos severos. Estudos anteriores sobre adutores, alguns conduzidos por Frederica, mostraram que os leucócitos são um substituto razoável para órgãos-alvo como o cérebro e os pulmões; mas, os contaminantes raramente se distribuem de modo uniforme pelo organismo e diferenças metabólicas podem levar a variações significativas entre pessoas, mesmo que elas integrem uma população coesa que respira o mesmo ar ou bebe a mesma água.

Os adutores têm mesmo uma vantagem importante sobre a contagem de chumbo e cotinina no sangue: eles são indicação não só da presença de um contaminante no organismo, mas também de seu efeito destacado, neste caso, alterando as moléculas de DNA. Ainda assim, aqui também pairam incertezas, pois não há consenso sobre como a formação dos adutores consegue acarretar problemas de desenvolvimento em crianças. Na pesquisa oncológica, em que Frederica trabalhou pela primeira vez com os adutores, a relação era de alguma forma mais evidente, pois a capacidade dos adutores de comprometer a precisa impressão genômica durante a divisão celular, pode provocar mutações e outras alterações genéticas que produzem células malignas. Mas, para o déficit de desenvolvimento em crianças, as teorias são mais nebulosas.

Um dos conceitos chave sobre como as HAPs podem afetar o cérebro envolve a “poda neural”, ou morte controlada dos neurônios, que ocorre naturalmente conforme o cérebro em desenvolvimento se ajusta ao seu meio e aumenta sua eficiência, descartando as sinapses desnecessárias. A presença das HAPs pode alterar o funcionamento do cérebro e estender esse processo, conhecido por apoptose, também para sinapses essenciais -- tanto no útero como na fase inicial da vida da criança. Outra teoria sugere que as HAPs comprometem a capacidade de o feto obter nutrientes e oxigênio, tomando o lugar de receptores moleculares na placenta. Os poluentes também podem ativar a liberação de enzimas que alteram o metabolismo em fetos e crianças pequenas e, ainda, alterar os níveis de hormônios reguladores do crescimento. A resposta mais provável, sugerem alguns especialistas, é que a maioria, ou talvez, todos esses mecanismos, prejudiquem o cérebro de crianças expostas a índices elevados de poluição do ar.

“Uma das coisas que aprendemos nos últimos dez anos é a quantidade de caminhos que existem em muitas doenças comuns”, comenta Groopman, cujos estudos na China e em outros lugares se concentraram na interação das aflatoxinas com o vírus da hepatite B humana, na indução do câncer hepático. As aflatoxinas, produzidas pelo microorganismo Aspergillus fungi, com freqüência são responsáveis pela contaminação de alimentos na China e na África. “Com a aflatoxina e o câncer de fígado lidamos com apenas um composto e uma doença específica muito comum em países como a China. Não existem outras fontes complicadoras”, ele observa. “Os HAPs e o desenvolvimento infantil são uma história muito mais complicada”, completa o pesquisador.

Próximos Passos
Frederica e Groopman concordam que os próximos passos serão aumentar a escala e mergulhar mais fundo no trabalho. Pesquisas de porte maior, com maior poder estatístico, envolvendo milhares de crianças, talvez permitam encontrar correlações mais fortes entre a exposição aos PAHs e problemas de desenvolvimento específicos. Enquanto isso os pesquisadores também aprofundarão os meandros da neuroquímica, buscando novos biomarcadores que permitam medir de forma mais apurada as alterações específicas no cérebro, que desencadeiam as deficiências de crescimento e aprendizagem.

Essa busca já tem levado cientistas ao campo da epigenética, o estudo das mudanças herdáveis induzidas pelo meio-ambiente, que alteram as funções dos gene sem alterar a seqüência subjacente dos códigos de DNA, da mesma forma que os adutores. Segundo Frederica, já há evidências de que HAPs desencadeiam alterações epigenéticas na atividade do gene que não podem ser identificadas examinando-se as quebras ou danos no próprio código. Como os adutores não são substitutos para essas alterações epigenéticas Frederica e outros epidemiologistas moleculares começam a recorrer a outros biomarcadores como a metilação de DNA, associação de grupos metil (CH3) ao material genético. A metilação normalmente silencia os genes, e há indícios de que seja maior com a exposição ao HAP e impeça os genes de produzir as proteínas que atuam na supressão de algumas doenças, inclusive o câncer.

Se as alterações epigenéticas se revelaram vitais ao alterar a capacidade de crescimento e aprendizagem da criança, então a contagem dos grupos de metil poderá acabar sendo um dosador ainda melhor para o impacto da poluição no cérebro, que contar os adutores de HAP-DNA. O estudo de Tongliang também pode ajudar a dirimir essa questão.

Um dia, médicos poderão realizar testes com uma bateria de biomarcadores -- genéticos e epigenéticos -- para avaliar a propensão geral da criança a uma variedade enorme de problemas de saúde e desenvolvimento. Por enquanto, no entanto, crianças como a garotinha no depósito de carvão abandonado, em Tongliang, terão que confiar na eficiência de seu governo para protegê-las dos HAPs e de outros poluentes do ar nocivos e Frederica não perde a chance de estimular as autoridades chinesas a cumprir seu papel. “A importância de Tongliang é mostrar que os governos podem tomar determinadas providências para reduzir a exposição”, avalia ela. “Em lugar de tentar adivinhar, podemos avaliar os avanços”. A capacidade de avaliar causa e efeito é especialmente importante para a China e outros países em franco crescimento que devem fazer a dura escolha entre continuar a apostar tudo no carvão ou mudar para fontes de energias mais limpas, ainda que mais caras.

Frederica explica que as complexidades e incertezas da epidemiologia molecular não devem ofuscar a mensagem mais ampla revelada pelos dados que ela levou 29 anos para acumular, estudando efeitos da poluição do ar na saúde em países como Finlândia, Polônia, China e em sua própria vizinhança, perto da Columbia University, em Nova York. Essa mensagem é tão relevante para países desenvolvidos, como nações altamente poluídas, como a China, explica ela, porque os HAPs são poluentes que estão por toda parte e podem afetar as crianças mesmo em concentrações relativamente baixas. Na cidade de Nova York, onde os índices de HAP transportados pelo ar são dez vezes menor que em Tongliang, “temos conseguido medir os efeitos na redução do crescimento fetal e nos impactos neurodesenvolvimentais”, assegura Frederica. “Não se trata de uma vaga ameaça teórica que pode ou não ser validada por novas pesquisas. Temos evidências suficientes de que é preciso reduzir a exposição a eles imediatamente.”

Enquanto Frederica e Tang continuam a análise dos dados de Tongliang, esperam pela oportunidades de iniciar uma pesquisa ainda mais compreensiva baseada no mesma premissa do antes-e-depois do estudo atual. “Precisamos de uma mágica para encontrar o local ideal, com as condições ideais”, diz ela para ponderar: “mas estamos de olhos bem abertos”.

CONCEITOS-CHAVE
-O objetivo máximo da epidemiologia molecular é relacionar fatores ambientais às alterações genéticas, associadas a manifestações de doenças.

- Alguns biólogos questionam a abordagem, pois poucos marcadores moleculares candidatos de suscetibilidade, exposição ou doenças prévias são comprovadamente capazes de prever enfermidades futuras.

-Agora, no entanto, pesquisadores podem ter encontrado o caso teste ideal para a epidemiologia molecular ambiental: uma cidade na China que teve sua única usina movida a carvão desativada em 2004.

-Estudos preliminares revelam que crianças nascidas em 2002, quando a usina ainda operava, apresentam cabeças menores e resultados inferiores em testes de desenvolvimento, se comparadas outras nascidas um ano depois do fechamento da usina. Essas crianças nascidas antes do fechamento da usina apresentam também maior incidência de anormalidades genéticas ligadas à poluição. —Os Editores

CURIOSIDADES
-O carvão fornece cerca de 70% da energia na China.

- A China abriga 2 dos 10 locaiss mais poluídos do planeta, Linfen e Tianying, como avaliado pelo Blacksmith Institute.

-Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde, doenças provocadas pela poluição do ar matam 656 mil chineses por ano - o índice mais elevado no mundo.


O QUE VEM A SEGUIR
- Continuar acompanhando as crianças de Tongliang por ao menos outros quatro anos, para avaliar seu desenvolvimento e saúde respiratória até os 10 anos de idade. Os biomarcadores medidos incluirão adutores de HAP-DNA, alterações epigenéticas, chumbo e mercúrio.

- Avaliar se algumas das crianças pequenas de Tongliang têm maior propensão para doenças que outras devido a interações entre a exposição pré-natal à poluentes e predisposição genética e nutricional que variam de criança para criança.

- Conduzir uma análise combinada dos dados dos estudos paralelos em andamento com 1.500 pares de mães e crianças nos EUA, Polônia e China. O objetivo é especificar os riscos da exposição pré-natal à poluição do ar e estudar as interações das suscetibilidades à exposição em diferentes grupos étnicos e em diferentes graus de exposição.

PARA CONHECER MAIS
Molecular Epidemiology: On the Path to Prevention? Frederica P. Perera em Journal of the National Cancer Institute, Vol. 92, no. 8, págs. 602–612; 19 de abril de 2000.

Effect of Prenatal Exposure to Airborne Polycyclic Aromatic Hydrocarbons on Neurodevelopment in the First 3 Years of Life Among Inner-City Children. Frederica P. Perera, Virginia Rauh, Robin M. Whyatt, Wei-Yann Tsai, Deliang
Tang, Diurka Diaz, Lori Hoepner, Dana Barr, Yi-Hsuan Tu, David Camann e Patrick Kinney em Environmental Health Perspectives, Vol. 114, no. 8, págs. 1287–1292; agosto de 2006.

Developmental Neurotoxicity of Industrial Chemicals. Philippe Grandjean e Philip J. Landrigan em Lancet, Vol. 368, págs. 2167–2178; 16 de dezembro de 2006.

Molecular Epidemiology and Biomarkers in Etiologic Cancer Research: The New in Light of the Old. Paolo Vineis e Frederica Perera em Cancer Epidemiology Biomarkers & Prevention, Vol. 16, no. 10, págs. 1954–1965; outubro de 2007.

Dan Fagin é professor adjunto de jornalismo e diretor do Science, Health and Environmental Reporting Program da New York University. Está escrevendo um livro sobre interações entre gene e meio-ambiente e agrupamentos de casos de câncer infantil em Toms River, Nova Jersey. Este é o seu segundo artigo para Scientific American. O primeiro, na edição de fevereiro de 2008, tratava dos riscos do excesso de fluoreto na água potável.

Scientific American Brasil

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