por Ulisses Capozzoli
Nasa
Teoria Gaia enxerga a Terra como um imenso organismo vivo
O último relatório sobre mudanças climáticas, atribuindo às atividades humanas o processo de aquecimento planetário, sugere que tanto a ciência quanto a história se expressam como rios sinuosos.
No primeiro caso, as razões que levaram à exploração de recursos energéticos, especialmente fósseis e que estão na base do aquecimento da atmosfera são de natureza científica. Mais especificamente da revolução científica do século XVII que, com a termodinâmica, permitiu a substituição de músculos humanos e animais pela força das máquinas.
Francis Bacon (1561-1626), pai da ciência moderna, certamente deu sinal de partida na corrida que culmina no aquecimento da atmosfera, quando expressou a pretensão humana de "dominar a Natureza".
A revolução científica, no entanto, dependeu da Revolução Industrial, que veio a seguir para materializar suas descobertas teóricas. A Revolução Industrial consagrou a mecanização e marcou o fim do longo reinado dos artesãos, com enorme esvaziamento da criatividade do trabalho. Num processo que tem sido discutido desde então, da história à literatura, passando pelo cinema (Tempos modernos), os homens acabaram subjugados pelas máquinas.
Condenar tanto a Revolução Científica quanto a Industrial pela dominação a que os humanos foram submetidos, no entanto, é algo sem sentido. Até porque ambas foram resultado de iniciativas humanas. E aqui faz todo sentido a leitura da mensagem que o cacique Seattle, dos Suquamish, enviou ao presidente americano, Franklin Pierce, em 1855, como resposta à oferta de compra de terras do seu antigo território.
Diálogos com a terra e o céu
Fala de cacique Seattle, há mais de 150 anos, convida a uma reflexão sobre as razões do aquecimento da atmosfera da Terra.
por Ulisses Capozzoli
Nasa
Teoria Gaia enxerga a Terra como um imenso organismo vivo
O último relatório sobre mudanças climáticas, atribuindo às atividades humanas o processo de aquecimento planetário, sugere que tanto a ciência quanto a história se expressam como rios sinuosos.
No primeiro caso, as razões que levaram à exploração de recursos energéticos, especialmente fósseis e que estão na base do aquecimento da atmosfera são de natureza científica. Mais especificamente da revolução científica do século XVII que, com a termodinâmica, permitiu a substituição de músculos humanos e animais pela força das máquinas.
Francis Bacon (1561-1626), pai da ciência moderna, certamente deu sinal de partida na corrida que culmina no aquecimento da atmosfera, quando expressou a pretensão humana de "dominar a Natureza".
A revolução científica, no entanto, dependeu da Revolução Industrial, que veio a seguir para materializar suas descobertas teóricas. A Revolução Industrial consagrou a mecanização e marcou o fim do longo reinado dos artesãos, com enorme esvaziamento da criatividade do trabalho. Num processo que tem sido discutido desde então, da história à literatura, passando pelo cinema (Tempos modernos), os homens acabaram subjugados pelas máquinas.
Condenar tanto a Revolução Científica quanto a Industrial pela dominação a que os humanos foram submetidos, no entanto, é algo sem sentido. Até porque ambas foram resultado de iniciativas humanas. E aqui faz todo sentido a leitura da mensagem que o cacique Seattle, dos Suquamish, enviou ao presidente americano, Franklin Pierce, em 1855, como resposta à oferta de compra de terras do seu antigo território.
Reproduzida e distribuída pela Organização das Nações Unidas (ONU) - que agora coordena as investigações sobre mudança climática -, a mensagem de Seattle ainda hoje comove pela beleza, lirismo e discernimento na relação entre homens e Natureza. Sem falar da influência que legou à literatura, expressa no discurso de autores como Loren Eiseley e Ralph Waldo Emerson.
Alguns, caso do filósofo da ciência inglês Ruppert Sheldrake-, localizam nas revoluções científica e industrial o que chamam de "dessacralização da Natureza". Para refletir sobre isso é interessante retomar trechos da mensagem de Seattle.
Questionando as pretensões de Pierce, Seattle adverte que "cada parte desta terra é sagrada para meu povo. Cada arbusto brilhante do pinheiro, cada porção da praia, cada bruma da floresta escura, cada campina, cada inseto que zune. Todos são sagrados na memória e experiência do meu povo".
Ao se referir à natureza dos rios e do ar que respira, Seattle questiona: "ensinarão vocês às suas crianças o que ensinamos às nossas? Que a terra é a nossa mãe? Que o que acontece à terra acontece a todos os filhos da terra?". Ele mesmo dá as respostas que fariam filósofos, cientistas e homens de letras de hoje invejar sua acuidade intelectual: "O que sabemos é isto. A terra não pertence ao homem, o homem é que pertence à terra. Todas as coisas estão ligadas, assim como o sangue nos une a todos. O homem não teceu a rede da vida, é apenas um dos fios dela e o que fizer à rede fará a si mesmo".
Numa metáfora do futuro, Seattle anuncia que "o destino de vocês é um mistério para nós. O que acontecerá quando os búfalos forem todos sacrificados? Os cavalos selvagens, todos domados? O que acontecerá quando os cantos secretos da floresta forem ocupados pelo odor de muitos homens e a vista dos montes floridos, bloqueada pelos fios que falam? Onde estarão as matas? Sumiram. Onde estará a águia? Desapareceu. E o que dizer do pônei branco arisco e da caça? Será o fim da vida e o início da sobrevivência".
Ao menos desde o vôo de Iuri Gagárin, em 1961, a terra a que se refere Seattle é o planeta inteiro. A terceira pedra de um sol de meia idade, flutuando como um aquário azulado, envolvida pelas estrelas de um dos braços da galáxia que chamamos de Via Láctea.
Uma releitura científica das palavras de Seattle foi feita pelo bioquímico inglês James Lovelock, que desenvolveu a teoria Gaia, idéia de que a Terra é um imenso organismo vivo capaz de ter sua própria homeostase. Assim, pode controlar suas reações como nossos corpos elevam a temperatura, sob a forma de febre, para reagir a uma infecção por organismos patogênicos.
Lovelock, consultor da Nasa para a exploração de Marte no projeto das naves gêmeas Viking, previne que a Terra pode livrar-se da humanidade como anticorpos repelem invasores indesejáveis.
Durante bilhões de anos a Terra abrigou outros organismos, na ausência completa dos humanos. Mas Charles Darwin nos revelou que mesmo essas criaturas recuadas no tempo, as mais simples e primitivas, de muitas maneiras integram o que somos hoje. Tudo deve ter começado com colônias celulares que desenvolveram especializações: grupos mais externos da colônia, por exemplo, se especializaram em detectar a luz e foram os proto-olhos, o desenho mais antigo dos olhos com que agora observamos o mundo.
Ciência e literatura - neste segundo caso a poética de Seattle - convergem então para um ponto comum, este de nosso parentesco com tudo o que vive ou abriga a vida, como os rios, o ar e a brisa a que o cacique Seattle se refere. Nossa pretensão, lastreada em uma leitura empobrecida do que verdadeiramente é a ciência - o encontro renovado com o grande desconhecido, sem as garantias absolutas de que andamos pelas trilhas da verdade - no entanto, nos coloca à parte da Natureza, em lugar de parte da Natureza.
Mas a verdade é que não somos nada de uma arte final, de uma obra acabada. Nossos cabeamentos internos ainda estão sendo estirados nesse movimento de reconfiguração, a partir das formas antigas que nos precederam. E se prescindirmos delas, o que será de nós? Isso, nem mesmo o cacique Seattle, em sua fala para o futuro, ousou desvendar. Tanto é que diz, referindo-se aos "homens brancos": "O destino de vocês é um mistério para nós".
No alvorecer da era espacial, quando engenhos humanos percorrem as estrelas, em noites cada vez menos escuras, alimentamos o sonho de conquistar outros mundos. Konstantin Tsiolkovski, pai da astronáutica, explicitou claramente essa nova era quando disse:"a Terra é o berço da humanidade, mas ninguém pode viver eternamente no berço".
Se não aprendermos a viver em nosso próprio mundo, no entanto, não haverá razão para pensar que qualquer outro possa sobreviver à nossa capacidade de destruição. Para amenizar a febre da Terra, certamente vale a pena, como recomenda Lovelock, ressuscitar a fonte mais poderosa de destruição que já desenvolvemos: a energia nuclear. Mas, em vez de bombas, ela alimentará a iluminação de escolas, ruas e bibliotecas, impulsionará metrôs e trens de longo percurso.
Como apenas isso não basta, podemos plantar novas árvores, evitar desmatamentos e queimadas e, além disso, recuperar enormes regiões devastadas. Tudo isso pode ser um longo e promissor aprendizado de reencontro com a Natureza. Compreender a dimensão do aquecimento do planeta certamente passa pelo esforço de conscientização de pelo menos parte dos 6,5 bilhões de moradores da Terra, para quem as palavras de Seattle serão surpreendentemente atuais. Assim como a história de outros nativos americanos cujo mundo foi engolido por ondas sucessivas de homens determinados a conquistar a Natureza, como descreve Dee Brown em Enterrem meu coração na curva do rio.
Reformular a visão da Terra e do Universo, inspirados pelas palavras de Seattle, não é tarefa só de cientistas. É um desafio para cada um que considera a si mesmo como criatura humana.
Íntegra da fala de Seattle está em
clique aqui
Ulisses Capozzoli Editor de Scientific American Brasil, é jornalista especializado em divulgação científica, mestre e doutor em ciências pela Universidade de São Paulo.
Scientific American Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário