quarta-feira, 25 de março de 2009

O povo de Chico Mendes


Texto: Regina Vasquez
Mais de 20 anos depois do assassinato de Chico Mendes, o líder seringueiro que virou herói ambientalista, seu sonho tornou-se realidade: a floresta se manteve em pé e virou motor de desenvolvimento do Acre. Hoje, o estado é referência em assuntos florestais. Mas ainda há muito a ser feito, como ganhar escala sem perder a sustentabilidade e reduzir o enorme peso do estado em todas as dimensões da vida acreana. A partir de janeiro, o Brasil vai estar de olho no Acre, cenário e objeto da minissérie Amazônia da Rede Globo. Será uma oportunidade para os brasileiros descobrirem o que de mais inovador o estado tem a contribuir para o País: um modelo de desenvolvimento baseado no uso sustentável dos recursos naturais – no caso, da Floresta Amazônica.

O modelo acreano lembra a “cuisine du terroir” (expressão francesa que designa a culinária que privilegia ingredientes locais). Utiliza-se recursos disponíveis na região – matéria-prima, mão-de-obra e cérebro –, acrescenta-se inovação tecnológica e criatividade, resgata-se a cultura e a história. O objetivo é buscar excelência sem perder autenticidade. Chega-se assim a uma síntese do ambientalismo moderno, que leva em conta os fatores ecológicos, sociais e econômicos na busca da melhor qualidade de vida para todos, com perspectiva duradoura. A receita acreana de desenvolvimento pode ser um modelo para toda a Amazônia e uma inspiração para o Brasil. Por isso faz sentido o que o acreano costuma dizer: o Acre não é onde o Brasil acaba, e sim onde o Brasil começa.

Sucessos e carências

São raras as populações dos estados brasileiros que, como os acreanos, têm tanto orgulho do que são e do que representam. A floresta para eles é presença forte e concreta. Em seu meio, índios, seringueiros e pescadores estão conectados à internet e usam telefone por satélite. Na cidade, a floresta permeia todas as artes. Um bom exemplo pode ser visto nas telas do pintor acreano Helio Melo, expostas na 27ª. Bienal Internacional de São Paulo.

“No Acre, mesmo quem nunca esteve fisicamente dentro da floresta traz consigo a memória desse convívio”, diz o economista, ambientalista e agitador cultural acreano Alberto Tavares, conhecido como Dande. A população urbana, principalmente nas classes média e baixa, é oriunda de famílias que saíram da floresta e seu entorno, nas pequenas aglomerações do interior. Assim, o vínculo com a floresta é natural. O que faz a diferença é a apropriação coletiva e a politização desse sentimento, que resultou na florestania (cidadania da floresta).

Mas o estado ainda tem carências graves. Faltam mais investimentos em regularização fundiária, estradas, energia elétrica, saneamento e educação. Para ter acesso a tratamento médico e hospitalar menos trivial, acreanos de todas as classes precisam viajar quase 3 mil quilômetros até Goiânia. Nas férias, o destino favorito é Fortaleza, a 5 mil quilômetros, em busca do mar, da cidade grande e das origens nordestinas. Outra opção é a Rota Inca, na qual se vai por terra até a beira da Cordilheira dos Andes, de onde um avião leva a Cuzco, no Peru, ou a Bogotá, na Bolívia.

O Acre aposta agora suas fichas na estrada para o Oceano Pacífico. A via, que pretende ligar Brasil, Bolívia e Peru e deve levar de dois a três anos para ficar pronta, dará acesso aos mercados asiáticos. Quando isso acontecer, com certeza vai melhorar também a deficiente ligação terrestre do Acre para o resto do Brasil.

Histórias de desbravadores

Zona de fronteira entre Brasil e Bolívia, o Acre era área de perambulação indígena de várias etnias e teve forte presença de portugueses e espanhóis, senhores das colônias, e de árabes – principalmente libaneses, que chegavam com passaporte turco (por causa do império otomano) e faziam comércio ao longo das rotas fluviais. Mas a ocupação do território se deu mesmo por nordestinos, sobretudo cearenses, durante os dois grandes ciclos da borracha.


A primeira leva de nordestinos, no fim do século 19, foi de desbravadores. Alguns tomaram posse das terras e exploraram a borracha e outros povoaram os seringais e foram tratados como escravos. Com a concorrência da Malásia, a partir de 1913, a borracha da Amazônia entrou em decadência e os seringalistas abandonaram os seringueiros à própria sorte. Três décadas depois, durante a Segunda Guerra Mundial, os japoneses ocuparam a Malásia e os países aliados voltaram a recorrer à Amazônia para o fornecimento de borracha. Foi instituído o serviço militar para trabalho nos seringais e os recrutas eram chamados de “soldados da borracha”. Com a vitória dos aliados, em 1945, o Japão teve de se retirar da Malásia e o Brasil voltou a perder o mercado da borracha.

A partir de 1970, o governo militar brasileiro decidiu ocupar a Amazônia como parte da estratégia de segurança nacional. A floresta foi cortada por grandes estradas e por ela chegaram fazendeiros do Sul e do Sudeste, chamados indistintamente de “paulistas”. A pecuária e a extração de madeira, ao lado da grilagem de terras, resultaram em desmatamento e a população florestal foi empurrada para a periferia miserável. Inconformado, um grupo de seringueiros decidiu reagir e deu início a um movimento que desembocou no estado da floresta e no conceito de florestania.


O símbolo deChico Mendes

Nos anos 80 surgiram os “empates”, em que seringueiros e familiares se davam as mãos para formar uma barreira protetora e impedir o corte das árvores. Era uma forma de assegurar o direito à terra e à vida. Entre as lideranças, logo despontou Francisco Alves Mendes Filho, o Chico Mendes. Seringueiro e sindicalista de Xapuri, ajudou a fundar o Conselho Nacional dos Seringueiros, colocou em pauta a proposta de reservas extrativistas e ganhou atenção internacional. Assassinado em 22 de dezembro de 1988, Chico Mendes virou símbolo e inspiração para o socioambientalismo e a defesa da floresta.

Ainda nos anos 80 outras forças se articulavam no movimento estudantil da Universidade Federal do Acre e nas pastorais da Igreja Católica. Da Alemanha vieram ecos do novo Partido Verde, que apostava numa terceira via para escapar da dicotomia esquerda/direita, que já mostrava os primeiros sinais de superação. Com a democratização do País, muitas dessas lideranças enveredaram pela política partidária.

Foi o caso do grupo do engenheiro florestal Jorge Viana, que venceu as eleições de 1992 para a prefeitura de Rio Branco, à frente de uma coligação de 11 partidos, no qual conviviam, de forma inédita, o PT e o PSDB. Viana depois foi governador por oito anos e ajudou a eleger o seu sucessor, Binho Marques de Almeida. Seu objetivo foi fazer do governo um agente provocador de mudanças em todas as esferas da vida acreana, tendo por norte a implantação de uma economia de base florestal sustentável.

Para isso, ancorou-se no reforço da identidade amazônida e na valorização da história, tradições e saber locais. A memória acreana foi ativada com festas populares para celebrar a castanha e o açaí, entre outros produtos regionais, os rituais religiosos da Igreja Católica e do Santo Daime, a cultura tribal, as lutas pela independência do Acre e em defesa da floresta. O belo prédio neoclássico do Palácio do Governo foi restaurado e abriga hoje o Museu de Paleontologia, Etnologia, Imigração e História. Foi construído também o Museu da Borracha. A cidade de Rio Branco ganhou planejamento urbano, parques, ciclovia, rodoanel, recuperação de prédios antigos. Shows de rock e ritmos populares, assim como outras manifestações culturais, também receberam apoio oficial.

Aliança entre Estado e Ongs

Em 1992 realizou-se no Rio de Janeiro a primeira conferência internacional de cúpula sobre temas ambientais, a Eco-92. Apareceram as ONGs, organizações privadas sem fins lucrativos e dedicadas a temas de interesse público, que trouxeram para o Acre conhecimento técnico, apoio financeiro e inserção internacional. Esses elementos foram essenciais para o sucesso do projeto acreano de desenvolvimento sustentável.

Na esfera local surgiu o Centro dos Trabalhadores da Amazônia (CTA), a Comissão Pró-Índio, a SOS Amazônia e o Pesacre - Grupo de Pesquisa e Extensão em Sistemas Agroflorestais do Acre, entre outras. Em 2000 o WWF-Brasil abriu um escritório em Rio Branco e promoveu forte aliança com o governo estadual, governos municipais, lideranças empresariais, associações comunitárias, instituições de ensino e pesquisa e ONGs locais. O resultado foi um impulso no manejo e certificação florestal, no Zoneamento Ecológico Econômico do estado e na criação e implementação de unidades de conservação.

Com isso, nos últimos oito anos mais de 85% da madeira usada no Acre tem origem legal. Além disso, 85% da cobertura original da floresta continua em pé e 70% estão protegidas (parques, reservas, estações ecológicas e terras indígenas). Se der certo, o modelo acreano poderá se estender a outros estados da floresta.

População aparece na TV

A minissérie Amazônia – de Galvez a Chico Mendes foi gravada no Acre e no Amazonas, em diversas locações, passando por florestas, rios e igarapés, praias, centros históricos e cidades cenográficas. Escrita pela acreana Glória Perez, tem data de estréia prevista para janeiro. O objetivo é contar 100 anos da história da Amazônia a partir da saga de duas famílias: uma de seringueiros e outra de seringalistas, que retratarão a conquista do Acre, a decadência da borracha e a transformação dos seringais em pastos. Segundo a autora, “a história do Acre põe em discussão a preservação da floresta e mostra como é antiga a disputa pela Amazônia”. A minissérie mudou a rotina de muitos moradores de Rio Branco, que foram selecionados como figurantes e, por causa das cenas, conheceram melhor a história do Acre. Para situar a minissérie, a TV Globo recriou a vila de Puerto Alonso, fundada pelos bolivianos para garantir a posse do território acreano.

A incorporação do estado

Até o início do século 20, o Acre pertencia à Bolívia. Apesar disso, grande parte de sua população era constituída de brasileiros fugidos da seca de 1877-1879 no Nordeste. Em 1882, esse grupo começou a trabalhar em um seringal, que mais tarde veio a ser a capital do Acre, rebatizada de Rio Branco. Era um período em que a borracha, que alimentava a revolução dos transportes no mundo, saía toda da Amazônia (60% do território acreano). Era importante para os bolivianos assegurar o domínio da área e, por causa disso, instituíram a cobrança de impostos e fundaram a cidade de Puerto Alonso, hoje Porto Acre, na região.

Os brasileiros revoltaram-se e iniciaram uma série de conflitos, alimentados pelo aventureiro Luís Galvez, apelidado “Imperador do Acre”, que decidiu proclamar ali um estado independente. Os bolivianos reagiram e abriram negociações para passar o controle do território para o Anglo-Bolivian Syndicate, de Nova York, para a exploração da borracha no território. A empresa não só teria o monopólio sobre a produção e exportação como também os direitos fiscais e as tarefas de polícia local. Assim, qualquer desavença entre os seringueiros e a empresa oporia o Brasil aos Estados Unidos.

Foi então que o gaúcho Plácido de Castro, ex-oficial das forças federalistas que lutara na revolução de 1893-1895 no Rio Grande do Sul, partiu para o norte e organizou a resistência contra os bolivianos, proclamando a segunda independência do Acre, anunciada em Xapuri em 1901. Dois anos depois, Puerto Alonso, a última resistência boliviana no Acre, rendeu-se aos brasileiros. O governo de La Paz revoltou-se e a guerra entre os dois países não ocorreu por pouco. Foi quando entrou em ação o Barão do Rio Branco. Por seu intermédio, o Brasil ofereceu uma compensação ao Bolivian Syndicate para desistir do negócio e indenizou a Bolívia com 2 milhões de libras esterlinas em troca do território do Acre. Além disso, comprometeu-se a entregar em permuta certas áreas da fronteira do Mato Grosso, bem como iniciar a construção da estrada de ferro Madeira Mamoré. As negociações foram encerradas com a assinatura do Tratado de Petrópolis em 17 de novembro de 1903. Os acreanos homenagearam o barão, batizando a Vila de Rio Branco com seu nome.

Os empresários da floresta

A grife da sustentabilidade ambiental e social e o apoio institucional têm atraído empresários para o Acre. Vários empreendimentos se originaram em projetos pilotos ou foram consolidados com o apoio de ONGs e do estado. O designer paulista George Dobre, por exemplo, mudou-se há dois anos para Rio Branco e abriu a Iiba Produtos Florestais de objetos de madeira com atributos de origem ecológica e comunitária. Outro empresário paulista, Fábio Dias, instalou-se em Cruzeiro do Sul e, há dez anos, criou a Tawaya, empresa que produz sabonetes de essências naturais, como murmuru, e objetos de madeira torneada. Os dois acreditam que o apoio das ONGs e do estado, a proximidade da floresta e o trabalho comunitário compensam os problemas. Entre eles, a sazonalidade imposta pelo ciclo das águas e a dificuldade de escoamento. A obtenção da matéria-prima tem de ser feita na seca, de maio a outubro. Na chuva os ramais (caminhos) para acessar a floresta ficam intransitáveis e o longo trajeto para os mercados fica ainda mais lento.

Sócia-proprietária da Acre Brasil Verde e da Nova Canaã, Adelaide Fátima de Oliveira, há 20 anos no Acre, entrou num consórcio com outras seis empresas e tornou-se fornecedora de uma fábrica de pisos que vai consumir 50 mil metros cúbicos de madeira ao ano nos próximos 15 anos. Paranaense de nascimento e paraguaia de criação, Fátima se considera acreana de coração. Ela recorda que, há dez anos, ser madeireira era papel de vilão, a ponto de sua filha Maiara, então com 8 anos, mentir sobre o trabalho da mãe. Mas Fátima não se intimidou e provou que é possível ser “madeireira do bem”. Fundou e preside a Associação das Indústrias de Madeira de Manejo do Estado do Acre, hoje com 20 membros. E diz que o Acre hoje “dá tratamento VIP” para quem quer trabalhar de forma sustentável no setor florestal.

Revista Horizonte Geográfico

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