Navios prontos para atracar em Salvador: a viagem pela história do Brasil começa pelo porto da capital baiana
Histórias dos antigos atracadouros, alguns nascidos no tempo da Colônia, mostram como nossos portos estão relacionados a episódios importantes da vida brasileira
“Primo: que sejam admissíveis nas alfândegas do Brasil todos e quaisquer gêneros, fazendas, e mercadorias transportadas, ou em navios estrangeiros das potências que se conservam em paz e harmonia com a minha Real Coroa, ou em navios dos meus vassalos ...”
Esta era a primeira disposição da carta régia de 28 de janeiro de 1808, pela qual o príncipe regente dom João decretava a Abertura dos Portos a nações outras além de Portugal e dava assim um passo que resultou fundamental para o processo que conduziu à independência política e econômica do Brasil. Trata-se de um marco que colocou fim a três séculos de Colônia, analisado de muitas maneiras por historiadores e economistas, e impulsionado pelas circunstâncias do momento: as guerras napoleônicas que expulsaram a corte portuguesa da Europa.
O decreto faz parte de um contexto que levou à decadência do sistema colonial mercantilista, provocado pelo advento da Revolução Industrial, queda dos regimes absolutistas europeus e reformulação de forças no velho continente. Decorridos 200 anos, comemorou-se em 2008 o grande acontecimento com o lançamento de livros, exposições, debates e restauração de construções históricas. A carta régia foi lembrada nas escolas e estudada nas salas de aula para servir de reflexão sobre os rumos do país e da cultura do brasileiro.
Não se deve esquecer, porém, que a história do Brasil é marcada pela história de seus portos desde muito tempo antes – na verdade, desde a chegada dos portugueses que aqui fundaram a vila de Salvador, o primeiro porto oficial da Colônia. Cidades como Salvador, Recife, Santos, Manaus, Belém e Rio de Janeiro, entre outras, nasceram em função de sua localização estratégica para receber navios e quantidades volumosas de mercadorias. Enfrentaram invasores, remodelaram-se, cresceram, entraram em decadência, modernizaram-se por causa dos portos.
Muitos dos antigos atracadouros fundados no início da colonização permaneceram, enquanto outros foram engolidos pelas marés bravias das épocas de crise. Serviram, no entanto, como ponto inicial, ou mesmo de motivação, para se erguer os atuais complexos portuários e os terminais especializados, mais afastados das cidades e distribuídos ao longo da extensa faixa litorânea e das redes fluviais brasileiras.
Os exemplos são muitos. O porto do Rio Grande, que protagonizou episódios da revolução farroupilha e do Paraguai, hoje se destaca como um dos principais centros portuários do Mercosul. Paranaguá, nascido por ser um ancoradouro seguro para as embarcações dos colonizadores portugueses que se aventuravam para o sul, começou a mudar com a construção da ferrovia, a mando de dom Pedro II, ligando a cidade a Curitiba. Atualmente é um porto estratégico para a exportação de grãos (café e soja) e produtos industrializados.
O porto de Santos, testemunha de epidemias avassaladoras no fim do século 19 e crises marcantes, como a da queda do café no século 20, se transformou no gigante do comércio marítimo da América do Sul. Este ano voltou a ser lembrado por seu papel como porta de entrada dos imigrantes europeus e japoneses, que aqui vieram para trabalhar nas plantações de café do interior paulista. Em 2008, comemorou-se o centenário da chegada do navio Kasato Maru, que, em 18 de junho de 1908, trouxe os primeiros trabalhadores japoneses ao Brasil.
Mais ao norte, a borracha exportada pelos portos fluviais de Belém e Manaus para o resto do mundo fez a região sonhar com tempos de fausto para logo se afundar em uma crise sem precedentes nos trópicos. Foram necessárias algumas décadas para que os dois principais portos da Amazônia retomassem sua notoriedade. Hoje, o de Manaus encabeça um estado em que 95% do transporte é feito pelos rios; já o porto paraense, considerado a porta de entrada da região amazônica, faz par com instalações do porte de Vila do Conde (exportador de alumínio, alumina e manganês) e de Miramar (por onde passa todo o combustível que abastece o Pará).
O que dizer do Rio de Janeiro, onde se estabeleceu a corte portuguesa, transformada de uma pacata e exótica cidade tropical na capital de um reino que abria suas portas para o mundo? Crescendo de forma caótica como a cidade, as instalações físicas do cais logo se mostraram inadequadas para o volume de cargas que movimentava. No passagem do século 19 para o 20, foi preciso reformar o espaço urbano fluminense, sanear o ambiente por meio de um projeto sanitário de emergência e ampliar o porto. Outro ancoradouro, inaugurado no município de Itaguaí, nasceu para receber navios de grande porte, que carregam grandes quantidades de contêineres e são responsáveis pela parcela mais significativa do comércio internacional. O complexo transformado no primeiro hub port do Atlântico Sul (concentrador de cargas para atender às rotas de longa distância), é hoje o porto do futuro.
Elos dos mais importantes da cadeia econômica, os portos refletem a dinâmica do comércio internacional, que deles exige transformações profundas. Ficaram para trás a movimentação de apenas uns poucos produtos provenientes da monocultura agrícola, como o açúcar, o algodão e o café. Mudaram as relações de trabalho, a legislação e as instalações acanhadas. Os grandes portos se adaptaram às novas exigências do comércio mundial, construindo terminais apropriados para operar os navios e suas cargas. Mas ainda há muito a ser feito. Passados dois séculos desde a liberação do país ao comércio marítimo, o Brasil chega à primeira década do século 21 com 37 portos públicos, contando marítimos e fluviais. Entre eles, 18 operando sob concessão ou com suas atividades controladas por administrações estaduais ou municipais.
A abertura dos portos às “nações amigas”
O mais importante documento do príncipe regente dom João no Brasil foi assinado em Salvador, quando o navio, no qual ele se dirigia ao Rio de Janeiro, desviou-se da rota por causa de uma tempestade e foi parar no porto da capital baiana. Quatro dias após a sua chegada, em 28 de janeiro de 1808, dom João promulgava o decreto que colocava um fim ao monopólio comercial da metrópole sobre a colônia. A partir daquela data, não só a entrada de produtos estrangeiros era permitida, como também a saída de mercadorias brasileiras para outras nações que não a portuguesa.
Embora a medida servisse na prática para beneficiar os ingleses que tiveram assim como escoar suas mercadorias para os até então fechados portos da colônia, a medida tirou o Brasil do isolamento a que estava confinado. A partir daquela data, quase todos os navios que partiam da Europa e dos Estados Unidos começaram a parar nos portos brasileiros antes de seguir para a Ásia, a África e as terras recém-descobertas do Pacífico Sul.
Revista Horizonte Geografico
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