terça-feira, 1 de setembro de 2009

A tentativa da Abkhazia, província separatista da Geórgia, de inventar a si mesma

Alexander Smoltczyk
A Rússia pode ter reconhecido oficialmente a Abkhazia, mas a província separatista georgiana ainda é ilegítima aos olhos do resto do mundo. A localização politicamente estratégica do Estado minúsculo o torna uma fonte potencial de conflito entre o Oriente e o Ocidente. O que acontece quando uma nação tenta inventar a si mesma?

"Você pode escrever o que quiser. Mas não ria de nós", diz o primeiro-ministro. Alexander Ankvab enche os copos de conhaque. "À liberdade!" ele diz, erguendo seu copo.

População festeja em Sukhumi, a capital de Abkhazia, o anúncio do presidente russo Dmitri Medvedev sobre o reconhecimento da independência do território separatista georgiano (2008)

Poucas semanas antes, uma bazuca foi disparada contra o carro oficial do líder abkhaziano. Ele provavelmente pisou no calo de alguém, diz Ankvab. "Foi o quarto ataque, mas ainda estou vivo. E a Abkhazia ainda está viva, não é?"

Ankvab é o primeiro-ministro de um país onde as cidades têm nomes como Pzyb, Gwylrypzh e Gyazhrypzh, e que - "até o momento!", como ele nota - mantém relações diplomáticas apenas com a Rússia e Nicarágua. E com a Faixa de Gaza, apesar disso não contar no momento.

A única organização internacional na qual este país está representado é na Organização das Nações e Povos Não Representados (Unpo, na sigla em inglês), uma associação global de repúblicas idealizadas e zonas liberadas, minorias étnicas e Estados fantasmas.

Os membros do gabinete de Ankvab se referem a ele como "Anthony Hopkins", devido à sua semelhança com o ator britânico. Mas ele não representa quando se trata de administrar a Abkhazia. Ele fala sério quando diz: "A Abkhazia poderia se tornar uma espécie de Mônaco em 10 anos. Nenhum investidor está preocupado com nosso status. Cingapura quis recentemente comprar tudo, hotéis, o aeroporto, as praias. Foi um pouco rápido demais para nós".

A tentativa de um país de inventar a si mesmo
A Abkhazia está na região do Cáucaso, onde a Europa gradualmente dá lugar à Ásia. O país fez parte da Geórgia até 1993. Desde que declarou independência, a "Abkhazia" se tornou uma tentativa de um país de inventar a si mesmo. Como nação, ela lembra a alguns proponentes da "realpolitik" o tipo de pessoas que repentinamente decidem morar em uma caverna em um parque do centro e falar sua própria língua.

Em 26 de agosto de 2008, o primeiro-ministro da Abkhazia e seus cidadãos tiveram uma espécie de experiência Robinson Crusoé. De repente eles não estavam mais sozinhos. A Rússia tinha reconhecido a Abkhazia. Ankvab soube a respeito pela televisão. A Rússia tinha acabado de ocupar (ou libertar) a província georgiana separatista da Ossétia do Sul, e a União Europeia estava tentando realizar uma mediação entre a Rússia e a Geórgia. Foi quando o presidente russo apareceu diante da imprensa para anunciar que seu governo tinha reconhecido outra província (ou nação) separatista georgiana, a Abkhazia.

Isso torna a Abkhazia um dos membros mais jovens da comunidade internacional, mesmo ainda sendo um Estado ilegítimo. Nas comunicações diplomáticas, ela é abreviada como ABC (a abreviatura da Ossétia do Sul é SOS).

Esta república ABC não tem moeda, não pode imprimir moeda ou tomar empréstimo nos mercados financeiros, porque, segundo a lei internacional, ela não existe. Para o resto do mundo, a Abkhazia é apenas uma província georgiana com ilusões de grandeza, com tantos habitantes quanto uma cidade europeia de médio porte.

Sudoku diplomático
A Abkhazia não seria de grande interesse se não estivesse no Cáucaso, um ponto delicado de tremores geopolíticos. Quando a guerra no Cáucaso entre a Rússia e a Geórgia chegou ao seu ponto máximo há um ano, um alarmado ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, viajou para Sukhumi, a capital da Abkhazia, mas não para beber conhaque com o primeiro-ministro Ankvab.

A Abkhazia é um sudoku diplomático dos mais difíceis, que pode ser usada como "casus belli" entre o velho Oriente e o novo Ocidente a qualquer momento. Há especialistas que dizem que a próxima guerra europeia poderia estourar em algum ponto entre a Criméia e o Cáucaso.

Mas, por ora, há paz. "À sua chanceler! À amizade alemã-abkhaziana!" Com estas palavras, Ankvab dá presentes aos seus convidados: livros de aparência cara, um pingente de latão com uma amazona furiosa, o brasão nacional, um relógio com a bandeira nacional da Abkhazia, que retrata uma mão sobre um campo vermelho, tendo como fundo listras verdes e brancas. Os presentes visam servir como evidência da existência de um Estado que não existe, no qual alemães, na verdade, nem deveriam entrar.

A informação de segurança fornecida aos viajantes pelo Ministério das Relações Exteriores em Berlim declara: "A Abkhazia está categoricamente fechada para viagens internacionais. Não é possível entrar ou sair legalmente do país seja pela fronteira entre a Rússia e a Geórgia ou pela linha de cessar-fogo ao longo do Rio Inguri. Nós alertamos expressamente contra viajar para a Abkhazia".

A Rimini da Rússia
Apesar desses alertas, ônibus de turismo russos entram na província separatista pela travessia de fronteira de Psou, no norte da Abkhazia, um portal de cimento patético, caindo aos pedaços. Para os russos, as praias da Abkhazia são como o balneário italiano de Rimini, apenas melhor: os preços são baixos, todo mundo entende a língua e não há necessidade de trocar os rublos por uma moeda local.

Entre os carros aguardando na travessia de Psou estão um Lada carregado de ovos, outro Lada com um eixo se projetando para fora do porta-malas, e dois Porsche Cayenne com novas placas ABH. Os motoristas tinham desaparecido no free shop, onde Bounty Rum e uísque escocês podem ser comprados com euros.

Como a fronteira sul com a Geórgia é fechada, o único acesso à Abkhazia é pelo resort russo de Sochi, no Mar Negro. Além de visto abkhaziano, não-russos precisam obter um visto de trânsito russo - e torcer para que os georgianos nunca descubram a respeito.

Na teoria, é possível subornar um dono de barco turco, no porto de Trabzon, para romper o bloqueio naval georgiano. É um método arriscado e ilegal, mas é assim que a Abkhazia realiza todo seu comércio estrangeiro.

Quando a Benetton anunciou em maio que queria abrir uma filial na Abkhazia, o ministro das Relações Exteriores da Geórgia chamou o plano de "criminoso" e ameaçou retaliar. A Benetton cancelou seus planos.
Georgianos fogem de Troiavi (Abkhazia), após a intervenção russa em favor da região separatista


Praias e palmeiras
Faz mais de 3.000 anos desde que Jasão e os Argonautas vieram aqui em busca do Velo de Ouro. A região ainda era conhecida como Colchis na época, um local onde o mítico Prometeu foi acorrentado a um pico do Cáucaso enquanto uma águia comia seu fígado, em punição por ter perturbado a ordem dos deuses.


Hoje, a capital se chama Sukhumi ou pelo nome abkhaziano politicamente correto de Sukhum, sem a letra "i". Para assegurar que os 3.500 abkhazianos não tenham morrido em vão na guerra da independência de 1992-1993, o nome foi mudado como um dos primeiros atos administrativos após a libertação, e a letra "i" também foi riscada em todos os nomes de cidades em mapas do território.

A Abkhazia já foi conhecida como a "Côte d'Azur da União Soviética", uma ponta subtropical do reino soviético, e muitos cidadãos da antiga Alemanha Oriental têm boas lembranças de suas praias, palmeiras e tangerineiras.

Ela também fornecia vasos com plantas para os escritórios por toda a União Soviética. Havia um criadouro de babuínos, onde atualmente se encontra um memorial - uma estátua de um babuíno sagrado, com uma mensagem gravada em uma placa de granito expressando a gratidão do povo soviético por todas as experiências sacrificiais na luta contra o tifo e a pólio.

Há apenas 10 anos, Sukhumi era uma cidade libertada, mas completamente destruída. À noite, as ruas ficavam repletas do som de disparos feitos por contrabandistas e carros sendo dirigidos em alta velocidade, sem placas e com apenas adesivos do Clube do Automóvel Alemão colados na traseira.

Atualmente há ônibus elétrico nas ruas, os bancos estão abertos e adolescentes em uniformes escolares se congregam em frente ao Colégio Pushkin. Um filme de Louis de Funès com legendas em abkhaziano está sendo exibido no cinema local.

Há semáforos, uma biblioteca infantil, limites de velocidade e uma mulher passeia com seu cão dachshund com uma coleira retrátil Flexi alemã. Estas coisas por si só não são evidência de uma sociedade civil funcional, mas elas, até certo ponto, contradizem o alerta de viagem do Ministério das Relações Exteriores alemão.

"Nós esperamos estar nos Jogos Olímpicos de 2012"
A Abkhazia tem até mesmo um Comitê Olímpico, pelo menos segundo a placa fixada ao lado de uma porta no andar inferior de um antigo prédio soviético de aparência abandonada, na Praça da Liberdade principal de Sukhumi.

O ministro dos Esportes acende um cigarro Parliament, exala e diz: "Nós participamos do Campeonato Mundial de Dominó. Nós nos saímos muito bem". Ele é um ex-comandante de tanque, magro, de 45 anos. Felizmente, sua esposa ganha um bom salário, diz o ministro, caso contrário ele não poderia se dar ao luxo de exercer este cargo.

"Nós esperamos estar nos Jogos Olímpicos de 2012, em Londres", ele diz, acrescentando que, infelizmente, o Comitê Olímpico Internacional (COI) não permite que delegações de países não reconhecidos participem do evento. "Na verdade, a seleção de futebol da Abkhazia teria que jogar com uniforme da Geórgia." O ministro dos Esportes olha para as outras pessoas na sala, como se tivesse acabado de contar uma piada.

"Nosso campeonato de futebol tem 100 anos. Por que a Fifa rejeita constantemente nossos pedidos para ingressar na federação? Mas as negociações com a Federação Internacional de Sambo estão indo bem", ele diz. Sambo? "Sim, uma espécie de judô russo-soviético."

As Olimpíadas de Inverno de 2014 serão realizadas em Sochi, perto da fronteira abkhaziana. Um grupo rival que chama a si mesmo de "Comitê Olímpico da Abkhazia", operando em exílio georgiano, tentou em vão impedir a realização dos jogos. Agora a Abkhazia deverá fornecer 14 milhões de toneladas de areia, brita e concreto para a construção dos prédios para o evento. Cada tonelada apenas cimentará ainda mais o status quo. Talvez "Sochi 2014" seja um dos motivos para a Rússia ter reconhecido a Abkhazia, na esperança de evitar o risco de tiroteio em cada trilha de esqui cross-country do biatlo.

A elite política cabe em um único prédio
A elite política da Abkhazia cabe em um único prédio, uma estrutura stalinista com acabamento jateado em um passeio à beira do lago, onde o ar está repleto do cheiro agridoce das laranjeiras e eucaliptos. O Parlamento fica virando a esquina do gabinete presidencial, e a entrada do gabinete do primeiro-ministro e de seus ministros fica em frente. Hoje o prédio está quase deserto, porque a mãe do presidente faleceu e quase todos foram ao funeral.

Os abkhazianos estão montando um Estado com o mesmo grau de seriedade e mesma atenção irritante aos detalhes com que artesãos amadores montam réplicas da Torre Eiffel com palitos de fósforo. Há 12 partidos políticos - do Movimento Sociopolítico Aidgilara ao Partido da Unidade Abkhaziana - dentre os quais os mais importantes estão representados no Parlamento, que se reúne em uma assembleia que lembra o lobby de um banco de cidade pequena.

Mas para a Europa oficial, a Abkhazia é uma espécie de república fora-da-lei, onde aproveitadores e historiadores cansados podem exercer seu separatismo com bem entendem. Isto explica por que Maxim Gvindzhia tem dificuldade de acesso aos gabinetes corretos. A placa em sua mesa diz: Vice-Ministro das Relações Exteriores da República da Abkhazia. "Se quero conversar com alguém nas repúblicas bálticas, por exemplo, eles me encaminham a funcionários do terceiro escalão", diz o alto diplomata.

Gvindzhia tem 33 anos, ganha US$ 200 por mês (cerca de R$ 375) e vive com sua família em um prédio pré-fabricado nos arredores da cidade. Sua esposa dirige a primeira agência de modelos abkhaziana e organiza o concurso Miss Abkhazia, que não é reconhecido pela comunidade internacional.

"Nós não queremos ser um Estado de linha de frente contra o Ocidente", diz Gvindzhia. "Muitos políticos da velha Europa entendem isso. Mas os novos europeus baseiam suas posturas nos preconceitos antirrussos." Isso é irônico, ele diz, porque a Abkhazia talvez seja a única democracia funcional no Cáucaso.

"Suas ONGs nos pagam para frequentarmos cursos sobre direitos humanos, força de paz e treinamento sobre conflitos. Nós cursamos todos eles", ele diz. "Mas a Rússia paga nossas aposentadorias: US$ 20 milhões por ano."

A Rússia, acrescenta o vice-ministro, compra todas as exportações da Abkhazia, particularmente as tangerinas e material de construção para as Olimpíadas de Inverno. Seu celular toca. "Com licença..." É o emissário abkhaziano em Tiraspol, a capital da República Moldávia da Transdnístria, que também não é reconhecida.

"Nós precisamos da UE"
O mundo no qual o diplomata Gvindzhia opera é um completamente desconhecido para o público ocidental. É o da Unpo, uma espécie de ONU paralela, completa com sua própria assembleia geral, secretário-geral e conselho de segurança, que se reúne regularmente. Gvindzhia conhece o ministro das Relações Exteriores da Nação Dene do Rio Buffalo, e a Abkhazia mantém relações com os governos do Baluquistão, Buriácia e dos Tártaros da Criméia. Tudo isso é positivo e informativo, ele diz, "mas precisamos da UE".

A ONU e os europeus tentam realizar a mediação entre a Geórgia e a Abkhazia há mais de uma década. Os pontos de atrito entre as duas sempre foi o retorno de 250 mil refugiados, a maioria deles georgianos, e a integridade territorial da Geórgia. Em seus esforços, os diplomatas da UE têm enfatizado dois princípios básicos: a inviolabilidade das fronteiras nacionais e a democracia, duas coisas que estão em desacordo no caso da Abkhazia.

O diplomata alemão Dieter Boden é o ex-chefe da Missão de Observadores das Nações Unidas na Geórgia (Unomig, na sigla em inglês). Ele concebeu um plano que pede o retorno da Abkhazia à Geórgia como república autônoma. A Geórgia concordou, mas a Abkhazia, temendo retaliação, rejeitou o plano. "Eles nos matariam", diz o vice-ministro das Relações Exteriores.

Os Estados Unidos querem ver a Geórgia se tornar um membro da Otan o mais breve possível. Oficialmente, esta também deveria ser a posição da Alemanha. Mas desde a guerra na Ossétia do Sul em agosto de 2008, o entusiasmo alemão pela causa georgiana se tornou mais contido.

O início de um genocídio cultural
Em 1931, o ditador soviético Josef Stalin declarou que a República Socialista Soviética da Abkhazia se tornaria um território autônomo da Geórgia, seu país de origem. Para alguns, isso foi uma reforma territorial, mas para outros marcou o início de um genocídio cultural.

Desde 1957, os abkhazianos realizam protestos a cada 10 anos, aproximadamente.

Após o colapso da União Soviética, os abkhazianos queriam que a Geórgia lhes desse o que a Geórgia estava exigindo da União Soviética: independência. Mas após o deslocamento forçado (oficialmente emigração) e vários programas de reassentamento (oficialmente reforma territorial), os abkhazianos se tornaram minoria em sua própria terra.

"A Abkhazia é o único país no mundo onde as políticas de Stalin devem ser restauradas. Nós dizemos aos diplomatas ocidentais, no almoço, que nossa independência é um fato. Mas quando as coisas ficam sérias, eles se mantêm calados", diz Batal Kobakhia, um ativista de direitos humanos com o rosto delgado de um ator.

Ele comandou um batalhão feminino na guerra e hoje representa a oposição em seu país, um homem disposto a cometer qualquer heresia política -ou quase. "A Abkhazia e a Geórgia são tão diferentes quanto a França e a Alemanha", ele diz. "Se os dois países forem unidos, haverá genocídio."

"A cultura mais velha na antiga União Soviética"
Kobakhia é arqueólogo por ofício. Historiadores frequentemente estão envolvidos na política no Cáucaso. Eles fornecem as palavras e argumentos para a disputa entre a Abkhazia e a Geórgia. Eles astutamente prestaram atenção aos nuances culturais, descobriram diferenças no traje tradicional dos agricultores na região montanhosa e chamaram atenção para injustiças ancestrais. O debate em torno da tese do historiador georgiano Pavle Ingorokva, que defende que os abkhazianos nunca foram um grupo étnico independente, provavelmente levou a mais derramamento de sangue do que qualquer outra disputa entre acadêmicos de língua e literatura.

"A cultura abkhaziana é mais velha no território da antiga União Soviética", diz uma mulher de pele muito clara vestindo uma saia de bolinhas enquanto inicia a visita ao Museu Nacional Abkhaziano, o antigo Museu Abkhaziano. Ela aponta para um modelo de um assentamento da Era do Bronze, e diz: "Naquela época, não era possível distinguir a Abkhazia da Geórgia".

Durante a guerra da independência em 1992, ela diz, milícias georgianas invadiram o museu, atacaram o diretor e fugiram com todos os tapetes. Segundo a guia, o arquivo nacional abkhaziano foi um dos primeiros alvos dos georgianos na guerra civil.

Devido ao seu papel na promoção da nação, os historiadores são mais respeitados na Abkhazia do que muitos generais -a menos que sejam tanto historiadores quanto generais.

Um governo dominado por acadêmicos
O primeiro presidente da Abkhazia, Vladislav Ardzinba, era um especialista em línguas mortas e cuneiformes do Oriente. Até hoje, a liderança da velha guarda consiste principalmente de homens de formação superior, que passaram suas vidas estudando as origens da língua abkhaziana no quarto século a.C., ou os contornos do primeiro reino Abkhaziano-Kartveliano.

A guerra destruiu suas bibliotecas, achados cerâmicos e anotações de pós-doutorado. Após perderem tudo em que trabalharam, eles se voltaram para a política e se tornaram historiadores concorrendo ao governo de um território que passaram grande parte de suas carreiras estudando -ou pelo menos o que restou dele.

Uma pintura de um agricultor de barba branca, fumando cachimbo, está pendurada na sala nove do museu. "Nikolai Shapkovsky", diz a guia, sem maiores explicações. Em 1929, o poeta francês Henri Barbusse escreveu a respeito de seu encontro com Shapkovsky, que supostamente tinha 140 anos na época -e dizem que ele viveu mais 10 anos após o encontro. A pintura ao lado se chama "Coro dos Centenários", diz a mulher.

"Os russos querem nos engolir"
Em nenhum outro lugar do mundo as pessoas têm maior longevidade do que no Cáucaso - isto é, a menos que matem umas às outras primeiro.

O táxi é um Volga que cheira a gasolina e óleo de rícino. Luvas de boxe estão penduradas no espelho retrovisor e todo o veículo está vibrando ao som de dance music armênia. "Druzhba", grita o motorista. Ele diz que prefere levar turistas de Leipzig do que russos.

Mas não são os alemães que estão vindo para a Abkhazia agora. Sem uma conexão de balsa da Turquia ou voos diretos da Europa, a Abkhazia está dependente dos ônibus de turismo de Sochi. Desde que os russos relaxaram suas sanções econômicas, e desde que os turistas russos retornaram às praias arenosas de Sukhumi e Picunda, a economia está despertando de um estado de coma. Expatriados abkhazianos estão retornando de Moscou, Istambul e Damasco, investindo seu dinheiro em resorts de saúde e restaurantes.

Em maio, o ministro da Economia abkhaziano assinou um acordo com o conglomerado de petróleo russo, Rosneft, para exploração das reservas de petróleo e gás no Mar Negro. Quando o primeiro-ministro russo, Vladimir Putin, visitou Sukhumi em 12 de agosto, ele prometeu aos abkhazianos 354 milhões de euros em ajuda para modernizar suas instalações militares e de fronteira. Não se pode confiar nos georgianos, disse o primeiro-ministro russo.

E quando o presidente da Abkhazia, Sergei Bagapsh, anunciou que empresas russas administrariam a rede ferroviária destruída do país e ampliariam o aeroporto, a oposição protestou que ele estava vendendo a herança nacional. Nos 12 meses desde o reconhecimento por Moscou, a russofilia de fato cedeu consideravelmente. O ponto de vista comum atualmente é que "eles querem nos engolir". Há jornais russos por toda a parte e alguns postos de gasolina apenas exibem a bandeira russa.

Os preços dos imóveis já dobraram. Trabalhadores imigrantes uzbeques martelam treliças de lajes, enquanto os filhos de heróis de guerra dirigem para cima e para baixo pela estrada costeira em alta velocidade em suas BMWs.

A provedora de telefonia celular abkhaziana, Aquafon, tem 100 mil clientes, e também há outra provedora. A eletricidade vem do reservatório de Inguri nas montanhas, onde georgianos e abkhazianos operam em conjunto uma usina hidrelétrica. Mesmo durante a guerra, ninguém teve a ideia de modificar o arranjo.

Um lançador de foguete, 120 tanques e 5 mil soldados
O táxi, com seu cheiro de óleo de rícino, para diante do antigo sanatório da Associação dos Compositores Soviéticos, que o exército abkhaziano atualmente está utilizando para treinar seus soldados em combate casa a casa. Os recrutas estão tentando manter um aspecto sério enquanto correm entre canteiros de flores e arrumam cobertura atrás de palmeiras.

"Nós estamos acertando um tratado de cooperação militar. No futuro, qualquer um que atacar a Abkhazia estará atacando a Rússia", diz Garri Kupalba. Ele é um professor de matemática, general e vice-ministro da Defesa da Abkhazia. As "forças de paz" russas se retiraram para seus quartéis em outubro de 2008. Vários milhares de soldados russos ainda estão posicionados na Abkhazia atualmente.

As forças armadas abkhazianas, diz Kupalba, consistem basicamente de 120 tanques tchecos, um lançador de foguetes capturado LAR-160 de fabricação israelense e 5 mil soldados. Os exilados abkhazianos doaram alguns poucos botes infláveis de alta velocidade com metralhadoras acopladas para ajudar a desenvolver uma frota do Mar Negro da Abkhazia.

"Agora é assim: os georgianos querem nos matar com violência, os russos com agrados. Nossa escolha deve ser óbvia, não é?" diz Hibla, uma estudante da Universidade de Sukhumi. "Sukhum. Sem 'i'", ela diz. Ela está olhando para o Mar Negro, tão imóvel quanto um lago frio.

"Nós sabemos que vivemos em um mundo globalizado. Nós não queremos mais pessoas da era soviética em nosso Parlamento, mas pessoas jovens e instruídas que saibam algo a respeito de relações internacionais. Por que vocês não nos levam a sério?"

Atrás dela, velhos estão sentados diante do Riva Hotel, balançando seus cigarros na luz brumosa. Atrás do hotel estão os picos do Cáucaso, onde a Europa dá lugar à Ásia. Tropas alemãs chegaram ao Cáucaso -mas pararam antes de cruzar as montanhas- em 1942.

Mais Baden-Baden do que Bagdá

Hibla ainda faz parte da Europa. Ela tem apenas 20 anos, mas já possui um diploma de ciências políticas, passou seis meses morando nos Estados Unidos, tem um segundo emprego em uma ONG para mulheres jovens empreendedoras e quer se tornar diplomata. "E então ministra das Relações Exteriores", ela diz. E fala sério.

Aqui na costa do Mar Negro, Sukhumi lembra o balneário alemão de Baden-Baden muito mais do que lembra Bagdá.

Há barracas que vendem sushi no píer demolido e um casal russo está caminhando pelo passeio - muito altos, muito gordos e muito mal vestidos. Talvez os russos algum dia serão os americanos feios da Abkhazia.

Hibla observa eles passarem e diz: "A propósito, os russos não entendem uma palavra do que estamos dizendo. Há sete sons diferentes para a letra k em nossa língua", diz Hibla, a futura ministra. Ela demonstra as complexidades da língua realizando uma série de exercícios complicados no fundo de sua garganta.

Para os especialistas em lei internacional, a República da Abkhazia pode ser uma presunção ou uma ilusão. Mas é tão bem executada que é difícil distinguir entre realidade e ficção. Mas nada aqui parece tão irreal quanto o status da Abkhazia como província da Geórgia.

E nada é tão real quanto a seriedade de uma jovem de 20 anos, ao se levantar na costa do Mar Negro, realizado ginásticas verbais com seu palato mole. "Você consegue ouvir?" ela pergunta.

Tradução: George El Khouri Andolfato

DER SPIEGEL

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