quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Sociedade vícios em profusão - Mal-estar contemporâneo

Drogas, bebida, jogo, trabalho, exercício, sexo, comida. Nos tempos atuais, há cada vez mais pessoas viciadas nas mais diferentes possibilidades de adicção. Mas o que há por trás de tamanha compulsividade?
por MARA FIGUEIRA

MARA FIGUEIRA é jornalista e escreve para esta publicação.

Mil e cem cigarros. Entre 1999 e 2002, essa foi a quantidade média consumida pelos brasileiros, por ano, no País, segundo dados da Secretaria da Receita Federal, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e da Secretaria de Comércio Exterior. Um número que, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, é até animador. Afinal, em 1986 o consumo atingiu a taxa recorde de quase 2 mil unidades, durante uma fase de expansão econômica. Tabagismo em declínio, eis o que os números revelam.

Apesar disso, não há muito mais a comemorar - sobretudo quando o leque de possibilidades que podem levar ao vício é aberto, apresentando cada vez mais opções. Segundo estudos do Conselho Federal de Farmácias, por exemplo, existe no Brasil um estabelecimento para cada 3 mil habitantes, ao passo que o sugerido pela Organização Mundial de Saúde é de apenas uma farmácia para cada 10 mil habitantes. Para especialistas, a estatística indica o uso indiscriminado de medicamentos pela população, um tipo de abuso, aliás, que já virou até tema de livro.

Em Tarja preta, personalidades como Jorge Mautner e Pedro Bial reuniram-se para contar histórias fictícias protagonizadas por personagens assumidamente dependentes de remédios de uso controlado. Porém, além de uso em excesso de tabaco e de medicamentos como Valium e Prozac, o Brasil - como muitos outros lugares do mundo - apresenta também consumo abusivo de álcool, drogas e muitos outros estimulantes.

Na modernidade, quando as garantias de segurança são enfraquecidas, os vícios se proliferam

Se pelo menos 1 milhão de pessoas, em São Paulo, são alcoólatras, segundo dados do Ministério da Saúde, e 1,2% da população entre 12 e 65 anos de 108 cidades brasileiras com mais de 200 mil habitantes pôde ser definida como dependente de maconha (de acordo com o Segundo Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil, realizado em 2005), não há estatísticas para definir quantos são os viciados em trabalho, em exercícios, em sexo. Cada vez mais, no entanto, eles são retratados em matérias jornalísticas e fundam grupos de ajuda mútua, lançando questões: será esse fenômeno típico da modernidade? O que há por trás no aparente boom de dependentes e compulsivos?

Segundo o sociólogo Leonardo Mota, autor dos livros A dádiva da sobriedade: a ajuda mútua nos grupos de Alcoólicos Anônimos e Dependência química: problema biológico, psicológico ou social?, a noção de vício, nas últimas décadas, ultrapassou a questão do álcool e das drogas ilícitas, embora o seu modelo ainda seja inspirado nesse tipo de dependência. Para ele, existem alguns fatores que indicam que o número de pessoas viciadas, na sociedade moderna, tem aumentado se comparado a períodos históricos anteriores.

"Nos Estados Unidos, existe uma grande indústria em torno do tratamento de vícios, com uma enxurrada de propostas terapêuticas e clínicas de reabilitação para os mais diversos tipos de vícios: sexo, compras, exercícios, internet, drogas, celular, trabalho, dentre outros. Ultimamente, a partir da proliferação de artigos e reportagens na mídia sobre vícios, não creio ser um exagero dizer que os comportamentos compulsivos aumentaram em sua prevalência. Outro indicador é o significativo aumento de vários grupos de ajuda mútua baseados no modelo de Alcoólicos Anônimos, para tratar diversos vícios, compulsões, neuroses e outros problemas emocionais", explica o pesquisador, que recentemente defendeu tese de doutorado intitulada Pecado, crime ou doença? Representações sociais da dependência química, na Universidade Federal do Ceará. Mas o que estaria favorecendo, na sociedade atual, esse tipo de comportamento compulsivo? Leonardo Mota explica que, segundo o sociólogo britânico Anthony Giddens, o incremento dos vícios está associado a um processo de destradicionalização da população.

Nas sociedades pré-modernas, a tradição oferecia um apoio que estava ligado às rotinas da conduta cotidiana que raramente se modificavam. "Na modernidade, quando as garantias de segurança são enfraquecidas, os vícios se proliferam em virtude da ansiedade inerente a este cenário, o que fez surgir essa "sociedade compulsiva". No passado, é claro que existiam vícios, mas não na intensidade em que eles se apresentam hoje.

A imaginação sociológica diz que não há um indivíduo isolado de suas contingências sociais

Atualmente, podemos dizer que eles se apresentam como um reflexo da insegurança endêmica que assola a sociedade contemporânea. Se as pessoas não podem mais prever sua rotina, ao menos o vício oferece alguma segurança por meio da repetição do comportamento compulsivo", explica Mota. Sob essa perspectiva, a questão do vício não deve ser vista de maneira isolada, mas como parte de um malestar contemporâneo que também fica evidente por outros problemas psiquiátricos, como a depressão, o transtorno obsessivo-compulsivo, a síndrome do pânico, a anorexia, a bulimia, etc. Existem, ainda, vários fatores envolvidos no surgimento de um vício: há os biológicos, os psicológicos e os sociais, dependendo do caso.

Entre esses últimos, por exemplo, está a disponibilidade de drogas, a pobreza, a cultura permissiva em relação ao uso de substâncias químicas em um círculo de amizade, a ausência de políticas sobre álcool, tabaco e drogas, além de mudanças sociais abruptas, dentre muitos outros. "Uma pesquisa realizada nos Estados Unidos com usuários de substâncias, semanas após o atentado de 11 de setembro de 2001, por exemplo, revelou aspectos interessantes sobre a relação entre consumo de drogas e estresse social. A pesquisa verificou que houve um aumento de quase 30% no consumo de álcool, maconha e tabaco nas primeiras semanas posteriores ao atentado ao World Trade Center, entre indivíduos que residiam nos arredores das torres gêmeas", relata Mota.

"Na clássica obra A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, Friedrich Engels (1820- 1895) já documentava o aumento dramático do alcoolismo entre os trabalhadores explorados da Inglaterra do século XIX. Portanto, existe uma relação entre o meio social e os vícios, sendo que muitas outras pesquisas atestam este componente da etiologia das dependências."

Armas no combate ao vício

No Brasil, existem enormes limitações relacionadas ao tratamento da dependência química, segundo Leonardo Mota. "Muitas instituições que oferecem esses serviços carecem de recursos humanos e materiais. Boa parte da população só vê a solução do problema das drogas pela via da repressão policial, o que já se mostrou ineficaz", explica o pesquisador.

Clínicas particulares são opções apenas para pessoas de classe média alta e muitos dependentes químicos pobres não conseguem vagas para internação. Além disso, os profissionais que trabalham nessa área recebem baixos salários, suas condições de trabalho são precárias e a qualificação técnica deixa a desejar. A atual legislação brasileira sobre drogas, porém, contempla várias ações do poder público para mudar essa realidade. Falta, no entanto, fazê-la acontecer.

APESAR DE o vício ser o resultado de múltiplos fatores - inclusive sociais, como mencionado -, é interessante notar que, por vezes, é o discurso médico ou psicológico - e não o das ciências sociais - que ganha um destaque maior na hora de interpretar esse fenômeno. Da mesma maneira, a responsabilidade por um indivíduo ter se tornado dependente de alguma substância ou atividade é, muitas vezes, colocada sobre a família, mas não compartilhada com a sociedade em geral. Entender a razão pela qual isso tudo ocorre também nos auxilia a compreender de forma mais ampla a questão.

"O discurso médico tem um enorme poder em nossa sociedade por causa do prestígio da profissão e de seus vínculos com a indústria farmacêutica. A indústria de bebidas alcoólicas também se beneficia da noção de que o alcoolismo depende somente de uma predisposição orgânica inerente ao indivíduo. Além disso, existe um reducionismo psicológico que coloca tudo em termos das relações familiares, como se a família não fosse afetada pelos atuais problemas sociais (embora muitos psiquiatras ou psicólogos reconheçam as limitações das "ciências do singular" e uma pessoa só se recupere de um vício por meio de uma decisão individual). É justamente aí que entra a imaginação sociológica, para nos dizer que não existe um indivíduo isolado de suas contingências sociais", explica Leonardo Mota.


O aumento dos comportamentos compulsivos, dentre eles o vício em compras, sexo e exercícios, estaria associado a um processo de destradicionalização da sociedade
Ainda hoje o vício é visto pelo prisma da moralidade, sendo atribuído à falta de caráter ou fraqueza

Médicos, psicólogos e sociólogos, porém, enfrentam um problema comum ao lidar com a questão da dependência ou compulsão: o fato de, ainda hoje, esse problema ser visto pelo prisma da moralidade, atribuído à falta de caráter ou fraqueza de personalidade da pessoa envolvida. "Apesar dos esforços da comunidade científica em reverter essa apreciação do problema, ela permanece e somente piora o acesso dos dependentes a um tratamento conivente com a dignidade humana", alerta Mota.

Imersos em uma sociedade que, por um lado, estimula o uso de bebidas, de tabaco ou de estimulantes, assim como a prática de exercícios físicos, o consumo ou a competição no trabalho, dentre outras possibilidades, os indivíduos são também, paradoxalmente, desqualificados no meio social quando se tornam dependentes.

"Normalmente, a mesma sociedade que estimula o uso desqualifica a pessoa quando ela fica viciada", sintetiza Mota. É o viciado em compras que iniciou sua trajetória de consumo graças ao crédito fácil. Ou, no bar, o que viola as regras do "bom bebedor", em que eventuais pileques são permitidos e incentivados, mas a decadência social e financeira em consequência do alcoolismo é altamente condenada.

É claro que, como Leonardo Mota lembra, o comportamento de uma pessoa viciada em álcool e drogas geralmente causa uma série de danos interpessoais, provocando ressentimentos entre seus familiares e na comunidade. Portanto, as condenações a que são submetidos os dependentes químicos - ou mesmo os de outra natureza - não surgem ao acaso.

"Por outro lado, a sociedade sempre precisará de bodes expiatórios para escamotear suas próprias contradições e os dependentes químicos são ideais para esse tipo de produção de sentido. Trata-se de um fenômeno complexo que abarca muitos pontos de vista", afirma o pesquisador.

Problema em números


Já fizeram uso de qualquer droga, sem contar álcool e tabaco
Em 2005, a Secretaria Nacional Antidrogas realizou, em parceria com o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas da Universidade Federal de São Paulo, o Segundo Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil. Para que pudesse ser estimada a prevalência do uso de drogas lícitas e ilícitas no País, foram realizadas 7.939 entrevistas em 107 cidades de todo o território nacional com mais de 200 mil habitantes, além de Palmas, capital do Tocantins. O universo estudado correspondeu ao da população brasileira residente em municípios desse tipo, com faixa etária entre 12 e 65 anos de idade. A seguir, alguns dos dados obtidos.


Drogas mais usadas nas 108 cidades pesquisadas
O percentual da população pesquisada que já fez uso de drogas na vida (22,8%), exceto tabaco e álcool, corresponde a uma população de quase 11 milhões de pessoas. Em pesquisa semelhante realizada nos Estados Unidos, em 2004, essa porcentagem atinge 45,4% e, no Chile, 17,1%.

O percentual para uso na vida de maconha (8,8%) é bem menor que o registrado em países como Estados Unidos (40,2%), Reino Unido (30,8%), Dinamarca (24,3%), Espanha (22,2%) e Chile (22,4%), mas superior à Bélgica (5,8%) e Colômbia (5,4%). Surpreendentemente, o uso na vida de orexígenos (medicamentos utilizados para estimular o apetite) foi de 4,1%. Vale lembrar que não há controle para venda desse tipo de medicamento.

Dependentes de drogas nos municípios pesquisados*


O percentual de dependentes de álcool (12,3%) e de tabaco (10,1%) corresponde a populações de 5.799.005 e 4.700.635 de pessoas, respectivamente. *Os critérios adotados neste trabalho para diagnosticar dependência são menos rigorosos que os adotados pela Organização Mundial da Saúde, o que pode ter inflacionado os números.

Na faixa etária de 12 a 17 anos, foram apresentados relatos de uso das mais variadas drogas, bem como facilidade de acesso a elas e vivência de consumo próximo. Quase 8% dos jovens relataram já terem sido abordados por pessoas querendo vender droga. Um terço da população masculina com idade entre 12 e 17 anos declarou já ter sido submetida a tratamento para dependência de droga.

Trabalhar demais é um dos vícios que tendem a ser mais "aceitos" do que outros, embora isso não exclua o componente do sofrimento presente em qualquer tipo de dependência ou compulsão


TANTO É QUE há até mesmo alguns vícios que tendem a ser mais "aceitos" do que outros, embora isso não exclua o componente do sofrimento, sempre presente em qualquer tipo de dependência ou compulsão. Um workaholic, por exemplo, pode ser admirado pelo chefe e até obter prestígio e dinheiro por meio de seu vício. No entanto, seus relacionamentos com a família e os amigos tendem a se deteriorar com o seu isolamento no mundo do trabalho. Ainda assim, toda a sua dedicação pode não ser suficiente em um mundo de competição cada vez mais acirrada, que gera muita insegurança, por conta dos altos índices de desemprego e precarização do trabalho.

Da mesma maneira, um viciado em exercícios físicos pode ter status e poder de sedução com o seu corpo, mas sua vida emotiva pode estar em frangalhos, apesar da boa aparência física. Justamente por conta dessas múltiplas facetas, abordar a questão da dependência e dos vícios pelo âmbito da Sociologia é essencial para combater um problema carregado de estigmas e preconceitos, mas que pode atingir qualquer pessoa.

"Livrar-se dos tabus impostos pela sociedade é essencial para resgatar a condição humana daqueles que padecem de vícios e trazer essa questão para o debate público de forma racional", afirma Mota. "Embora não disponha de formação clínica, o papel do cientista social na análise, e até mesmo na intervenção nesta área, é fundamental. Aliás, quem ainda acredita que o aumento desses vícios não se constitui um sintoma social?"

Revista Sociologia

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