por FELIPE LUIZ GOMES E SILVA
FELIPE LUIZ GOMES E SILVA é professor aposentado de Gestão, Políticas Públicas e Terceiro Setor para os cursos de Ciências Sociais, Economia e Administração Pública da Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, campus de Araraquara. Autor do livro A fábrica como agência educativa (Editora Cultura Acadêmica, Unesp - Araraquara, 2001). E-mail: felipeluizgomes@terra.com.br
O que é "terceiro setor" afinal? Para Fernandes (1997), é uma expressão de linguagem que foi traduzida da língua inglesa, sendo "portadora de uma ambiciosa mensagem: além do Estado e do mercado há um terceiro personagem". Ao lado dos sindicatos e de várias associações profissionais há outros recortes associativos que não se estruturam segundo a clássica divisão capital versus trabalho. Segundo Coelho (2000), esta expressão foi usada pela primeira vez na década de 1970 por pesquisadores estadunidenses. No entanto, há indicações de que o termo tenha surgido, inicialmente, como uma referência feita pelo magnata John Rockfeller à vitalidade da comunidade estadunidense (LANDIM, 1999).
Sabemos que qualquer conceito é apenas uma aproximação da realidade, a qual pode se manifestar de variadas formas. Dependendo do contexto histórico, social e político, do tempo e do lugar; a palavra é um instrumento ideológico por excelência (BAKHTIN, 1997). Veja quadro Definição de setores.
Como exemplos de instituições que pertencem ao "terceiro setor" podemos citar a Fundação Abrinq (São Paulo), o Projeto Axé de Educação Infantil e Adolescente (Salvador), o Orfanato Renascer (Araraquara), o Instituto Ethos (São Paulo) e também todo um conjunto de entidades assistenciais e caritativas que compete entre si na busca de recursos financeiros e de parcerias no mercado solidário.
Em razão da diversidade de instituições e de objetivos, a noção de "terceiro setor" é imprecisa e problemática. Para nós, a questão não se resume a uma mera dificuldade formal de classificação, como já apontamos anteriormente, resulta de seu "caráter eminentemente ideológico"; no sentido de ocultar a realidade concreta, ou seja, a não superação do mundo da aparência.
As organizações abrangidas por essa noção são diversas e diferenciadas, heterogêneas e até contraditórias. Apresentam diferenças em suas origens históricas, em suas finalidades, em suas maneiras de se relacionar com o Estado, com a sociedade e com o mercado. De modo geral, têm seu campo de trabalho limitado e condicionado pelas fontes de financiamento e pelo nível de pobreza presente nas diversas nações e regiões (SILVA, 2004).
Os donos do capital deverão reduzir a jornada de trabalho e investir em ações comunitárias solidárias
DE ACORDO COM Oliveira (1995), as Organizações Não Governamentais, por exemplo, "são importantes elementos de ativação da sociedade em geral, quando fazem o trabalho de passagem das carências para os direitos".
Indagamos: quantas organizações, de fato, superam o assistencialismo, realizam os direitos sociais e ultrapassam a filantropia e/ou mero gerenciamento da pobreza? Ressaltemos que, para Fernandes (1994), o "terceiro setor" não pretende substituir a ação do Estado, a sua dinâmica deve ser complementar; é fruto das insuficiências e dos limites da atuação do mercado.
Mas independentemente da vontade e das boas ações humanas, o denominado "terceiro setor" tem, na realidade, crescido em consequência das perversas políticas neoliberais. Com a "crise" do Estado de Bem- Estar Social (nos países centrais) e do Estado Desenvolvimentista (nos países periféricos), a ideologia do "terceiro setor" passa a ser funcional/ operacional às políticas do capitalismo neoliberal, ocultando as raízes estruturais do desemprego, da precariedade do trabalho, da pobreza e da indigência (MONTÃNO, 2002; SILVA, 2004, 2006).Os voluntários que atuam no denominado "terceiro setor" contra a fome e a miséria, só na aparência são livres cidadãos.
A questão fundamental é: sem romper com o modo de produção capitalista, será possível combater a indigência e construir uma nova sociabilidade humana por meio das ações do primeiro, segundo e terceiro setores?
Para Claus Off e a resposta é positiva. Uma nova sociabilidade será construída mediante uma sintonia fina entre o primeiro, segundo e terceiro setores. Atores coletivos da sociedade civil demarcarão as fronteiras e a relação entre o Estado, o mercado e o "terceiro setor". Todos comporão, de forma harmônica, um arranjo social novo e superior. Grande parte dos desempregados será cuidada pela solidariedade religiosa (1999, apud SILVA, 2006).
O estadunidense J. Rifkin também defende a tese da possibilidade de humanizar o capitalismo por meio da articulação dos três setores. Os donos do capital, as corporações, deverão reduzir a jornada do trabalho e investir em ações comunitárias solidárias. Para ele, com o crescimento do desemprego estrutural e da miséria, estamos diante de dois riscos: o crescimento da população carcerária e a emergência de ideologias políticas extremistas.
Só as ações do "terceiro setor" salvarão o capitalismo e a democracia (RIFKIN,1997). Como é evidente, o acelerado crescimento do chamado "terceiro setor" é fruto da lógica da acumulação ampliada do capital, do aumento da população que vive no inferno da indigência e que constitui o peso morto do exército de reserva - que, segundo R. Castel (1998), são os supranumerários, os não empregáveis considerados inúteis para o mundo.
Em 1988, na França, somente um estagiário em quatro, e um trabalhador precário em três encontraram um emprego estável ao final de um ano. Sendo assim, a expressão "interino permanente" não é um jogo de palavras.
Os Estados Unidos apresentam a vigésima taxa de mortalidade infantil do mundo e 5 milhões de sem-teto
No Brasil, por exemplo, são gastos R$ 7 bilhões com 11,1 milhões de famílias integradas no Programa Bolsa Família, enquanto R$ 110 bilhões remuneram os poderosos detentores dos títulos da dívida pública. Entre janeiro de 2003 e outubro de 2006, as empresas transnacionais, sediadas no País, repatriaram nada menos do que US$ 18,9 bilhões, 112% a mais do que a era Fernando Henrique Cardoso (1998-2002).
O pauperismo e a indigência (superpopulação supérflua) da América Latina e do "terceiro-mundo" somente serão superados com a construção de uma nova sociabilidade humana livre da lógica da acumulação, do desenvolvimento das forças destrutivas e da dependência do capital mundial.
O assistencialismo, a mera caridade legal e a filantropia,práticas inerentes ao chamado "terceiro setor" e às políticas "pseudoliberais" (SARTRE, 1987) talvez possam, por algum tempo, "animar" parte da sociedade e amenizar o sofrimento humano como simples efeito curativo (KURZ, 1997).
Definição dos setores
O pesquisador Rubem C. Fernandes (1994) assim demarca as fronteiras entre o "Primeiro, Segundo e Terceiro Setores":
Como podemos observar, definido pelos seus fins, o denominado "terceiro setor" é composto por agentes privados que buscam a realização de objetivos coletivos e/ou públicos. Desta forma, há, segundo esse autor, clara coincidência com os objetivos do Estado.
O segundo setor é organicamente composto por agentes que buscam objetivos privados, ou seja, orienta-se, primariamente, pelos interesses do mercado, pauta-se pela competição e pelos lucros. Quando os agentes estatais buscam fins privados encontram-se no espaço da corrupção. Dito de outra forma, as condutas pautam-se pelas "políticas de favores", pelo clientelismo, nepotismo e personalismo.
Afirma Fernandes (1994) que o "terceiro setor" denota um conjunto de organizações e iniciativas privadas que visam à produção de bens e serviços públicos. Este é o sentido positivo da expressão. Bens e serviços públicos, neste caso, implicam uma dupla qualifi- cação: não geram lucros e respondem a necessidades coletivas. "O conceito é certamente amplo e passível de qualificações sob diversos aspectos. As variações ocorrem, e os casos fronteiriços suscitam disputas polêmicas, como acontece com qualquer classificação".
As pesquisas do Observatório Urbano das Nações Unidas (ONU) alertam que, em 2020, a pobreza no mundo atingirá 45% do total de habitantes das cidades
MAS NEM COMO efeito curativo tem cumprido sua promessa de incluir no mercado formal os desempregados. A produção em escala de trabalhadores precários no terceiro-mundo e na América Latina tem sido acelerada pela aplicação dos Planos de Ajustes Estruturais (superávit fiscal, redução do déficit da balança comercial, desmontagem da previdência, liberalização financeira e comercial, [des] regulamentação dos mercados e a privatização das empresas estatais) "recomendados" pelo Banco Mundial. As pesquisas do Observatório Urbano das Nações Unidas (ONU) alertam que, em 2020, a pobreza no mundo atingirá cerca de 45% do total de habitantes das cidades.
Em Lagos, Nigéria, a classe média desapareceu, o lixo produzido pelos poucos e cada vez mais ricos compõe a cesta de alimentos que frequenta a mesa dos trabalhadores pobres. No Brasil, o denominado mercado informal já atinge mais de 51% da população, na América Latina, 57% e na África, 95% (DAVIS, 2004).
Dificilmente os agentes e os pesquisadores universitários que apoiam as ações do "terceiro setor" perguntam quais são as origens históricas e estruturais da pobreza e da miséria dos países dependentes. É preciso não abandonar a visão de totalidade social e considerar que o local não pode ser entendido como divorciado do mundial e, principalmente, da livre presença das transnacionais e das transações financeiras globais que, junto com os Programas de Ajuste Estrutural (PAEs), recomendados pelo Banco Mundial, provocam devastadores ciclones sociais (DAVIS, 2004; MÉSZÁ- ROS, 2006).
Muitas empresas praticam o denominado "marketing do bem" e a "solidariedade que aparece"
Atualmente, cerca de 180 milhões de pessoas estão em evidente situação de desemprego aberto. Mesmo nos Estados Unidos da América, lócus privilegiado das ações ditas solidárias, o "terceiro setor" não superou os problemas sociais: hoje, eles possuem a 20ª taxa de mortalidade infantil do mundo, 1/3 das crianças em idade escolar está sem vacinas básicas, 31 milhões de seres humanos não têm cobertura de saúde, há 5 milhões de sem-tetos, etc. (PETRAS,1996).
As ações locais, com ou sem apoio das corporações e do Banco Mundial, são limitadas e não questionam as raízes estruturais do desemprego, da pobreza e da precariedade do trabalho. Muitas empresas, na realidade, enquanto praticam o denominado"marketing do bem" e a "solidariedade que aparece" (BUCCI, 2004), exploram ao máximo os seres humanos e os recursos naturais da América Latina e do terceiro-mundo.
Muitas destas ações corporativas têm por objetivos claros "educar" lideranças rebeldes e prevenir a emergência de lutas sociais radicais. "São proponentes de novos contratos que restabelecem vínculos de solidariedade transclassistas e comunidades pensadas com inteira abstração dos "novos" dispositivos de exploração do trabalho (NETTO, 2005), a "flexploração" e a terceirização dos operários (SILVA, 2004). Será possível realizar, no século XXI, a utopia da cidadania plena - igualdade, fraternidade e liberdade - no interior da ordem social capitalista contemporânea?
Revista Sociologia
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