Uma receita para o caos
Por Horand Knaup
A Libéria, traumatizada, ainda está se recuperando de 15 anos de guerra civil. A Comissão de Verdade e Reconciliação divulgou suas recomendações, mas os antigos comandantes de guerra - e a presidente até então idolatrada - estão recusam-se veementemente a cumpri-las.
Dr. Jekyll usa um paletó bem ajustado. Ele tem a barba cuidadosamente aparada e um dedo médio mutilado. Ele está sentado em seu escritório na Câmara dos Deputados da Libéria, na capital, Monróvia, com uma bandeira do país ao lado de sua mesa.
Um livro intitulado "Parlamentares como Pacificadores" está sobre sua mesa. Dr. Jekyll diz: "Não queremos mais nenhum problema aqui. Queremos paz". O nome verdadeiro de Dr. Jekyll é Prince Johnson, e, aos 50 anos, é membro do Senado da Libéria.
Houve uma época em que Prince Johnson tinha muito mais de Mr. Hyde. De acordo com um relatório recente da Comissão de Verdade e Reconciliação Liberianas (CVR), ele se destaca entre os criminosos de guerra do país. A comissão passou três anos investigando as atrocidades da guerra civil que aconteceu entre 1989 e 2003, que custou a vida de aproximadamente 250 mil liberianos. O conflito deslocou bem mais de um milhão de pessoas, mais da metade das mulheres do país foram estupradas, e 700 mil refugiados foram para outros países. Foi um derramamento de sangue devastador para um país com uma população atual de apenas 3,5 milhões de pessoas.
Encontrar provas para indiciar Johnson não foi difícil. Um vídeo que mostra do que ele é capaz está disponível há muito tempo em Monróvia.A fita mostra os soldados de Johnson cortando as orelhas do ex-presidente Samuel Doe e enfiando os pedaços ensanguentados dentro da boca da vítima, enquanto Johnson observa com atenção, bebendo sua cerveja calmamente. Apesar de o vídeo ter 19 anos, há provas de outras atrocidades supostamente cometidas por Prince Johnson.
Mas Johnson não é o único acusado que a comissão - depois de ouvir o depoimento de mais de 22 mil testemunhas - expôs como criminoso de guerra. Seu relatório de 380 páginas cita os nomes de vários políticos e homens de negócios, incluindo a atual presidente do país, Ellen Johnson Sirleaf. A comissão recomendou que, depois de completar seus mandatos atuais, ela e outros 49 políticos fossem proibidos de concorrer a cargos públicos por 30 anos. Um núcleo de oito comandantes de guerra deverá ser levado a julgamento por um tribunal especial. Entre eles estão Johnson e Charles Taylor, que já está em julgamento pela Corte Especial da ONU para Serra Leoa em Haia por crimes de guerra que ele supostamente cometeu naquele país, vizinho da Libéria.
Muitos países na África ainda estão entrando em acordo com seus passados sangrentos. As comissões de verdade e reconciliação em Serra Leoa e na África do Sul já terminaram seu trabalho. O Quênia está lutando para encontrar uma resolução depois de um levante sangrento em 2008. E, em Ruanda, os tribunais municipais têm sido usados para julgar os responsáveis pelos assassinatos genocidas de até 800 mil integrantes da etnia tutsi em 1994. Esforços semelhantes também poderão ser feitos em Sudão, Zimbábue, no leste da República Democrática do Congo e talvez até mesmo na Somália, para averiguar e possivelmente resolver os sangrentos eventos do passado de cada um desses países.
Lidar com os horrores do passado pode ser necessário, mas o processo nem sempre estabelece a paz entre os lados conflitantes. A Libéria está em tumulto desde o começo de julho, quando a Comissão de Verdade e Reconciliação do país divulgou seu relatório. Membros da comissão receberam ameaças de morte, os antigos comandantes de guerra estão dizendo que se opõem às suas recomendações, e a presidente - que tem sido considerada como uma pacificadora em todo o mundo - está trabalhando nos bastidores para encontrar um jeito de resguardar sua imagem e continuar no poder.
Uma história de conflitos
A história da Libéria é única. Fundada por escravos norte-americanos libertos em 1847, a nação - que tem mais ou menos o tamanho da Bulgária - foi por muito tempo um dos poucos países independentes da África. Ela também era uma âncora de estabilidade - pelo menos até 1980. Naquele ano, o militar Samuel Doe assassinou o presidente no poder - provavelmente com apoio dos Estados Unidos - e transformou a Libéria numa ditadura repressora. Em 1989, Charles Taylor começou sua marcha para Monróvia. E, em setembro de 1990, Prince Johnson - que havia rompido com Taylor pouco antes - depôs Doe. Foi o começo de uma guerra civil que transformou a Libéria num matadouro.
Só em 2003 todas as partes envolvidas no conflito assinaram um acordo de paz. Charles Taylor, que havia sido eleito presidente em 1997, cedeu à pressão internacional e deixou o país. Dois anos mais tarde, em 2005, Ellen Johnson Sirleaf foi eleita para o cargo de nova presidente do país numa eleição democrática sem contestação.
Johnson Sirleaf, que tinha 67 anos à época, teve um começo de mandato impressionante. Ela transformou a luta contra a corrupção em uma de suas prioridades, reduziu a dívida do país e encorajou o investimento estrangeiro. Além disso, ela também foi uma entre as poucas lideranças africanas que pediram a renúncia do ditador Robert Mugabe, do Zimbábue.
E ela foi bem sucedida. A economia cresceu, a inflação finalmente começou a cair, os investidores começaram a se interessar pela Libéria e mais de 200 mil soldados - incluindo inúmeras crianças - foram dispensados. Apesar de 11.400 soldados da ONU permanecerem no país para fornecer segurança, a paz parece ter voltado à Libéria - pelo menos por enquanto.
O jeito enérgico da presidente foi amplamente elogiado. A chanceler alemã Angela Merkel, que normalmente mantém uma distância dos líderes africanos, elogiou a "coragem impressionante" de Johnson Sirleaf e perdoou a dívida estrangeira de US$ 385 milhões (R$ 702 milhões) da Libéria para com o país. O então presidente George W. Bush concedeu a ela a Medalha Presidencial da Liberdade, e a Suécia recentemente aprovou um pacote de ajuda de US$ 100 milhões (R$ 182 milhões), o que não é uma quantia qualquer para um país como a Libéria, que tem um orçamento anual de US$ 273 milhões (R$ 498 milhões).
Johnson Sirleaf era a líder política honesta do continente. E é exatamente por isso que quase ninguém esperava que a presidente, formada em Harvard, fosse acusada - como está sendo - de má conduta durante os anos de guerra civil.
Até agora, ela admitiu ter doado US$ 10 mil (R$ 18 mil) para Charles Taylor em 1989, quando ela morava nos Estados Unidos. Ela se defendeu perante a comissão dizendo que foi uma época em que Samuel Doe ainda estava no poder e muitos liberianos, tanto no país quanto no estrangeiro, estavam conspirando para depor o ditador - e ela se distanciou de Taylor pouco tempo depois. Mas aparentemente isso é apenas parte da verdade.
Heróis caídos
Massa Washington, jornalista de 45 anos de idade, é uma das nove integrantes da comissão. A comissão não foi poupada de depoimentos assustadores, e isso foi uma experiência dolorosa para Washington. Ela foi obrigada a ouvir testemunhas descreverem incidentes de canibalismo, corações sendo arrancados dos corpos das vítimas, bebês sendo jogados contra paredes, massacres e vítimas indefesas sendo jogadas aos leões.
Washington conhece Johnson Sirleaf desde 1985. Naquela época, trabalhando em nome da Cruz Vermelha Internacional, Washington visitou a política, então de oposição, na cadeia depois de Doe ter ordenado sua prisão. "Ellen sempre foi uma mulher forte", diz Washington. "Ela era nossa heroína." Fotos de Washington e Johnson Sirleaf na época em que as duas defendiam as mesmas causas estão penduradas nas paredes do escritório da jornalista.
Foi difícil para Washington ver a presidente sob uma nova luz, mais sombria, mas ela não teve escolha. "Ela nos disse, na melhor das hipóteses, 20% da verdade", disse Washington. "De fato, havia muito, muito mais. E o apoio dela a Taylor durou muito mais do que ela nos contou."
O caso de Johnson Sirleaf também foi afetado pelo depoimento de Charles Taylor recentemente em Haia. Ele disse que Johnson Sirleaf foi a coordenadora internacional de seu partido até meados dos anos 90.
A presidente levou quatro semanas para comentar o relatório da comissão. Então, no final de julho, ela divulgou seu primeiro pronunciamento sobre o assunto, no qual repetiu sua alegação de ter apoiado Taylor apenas brevemente. E, ao fazer isso, ela deixou claro que pretende ignorar as recomendações da comissão e concorrer a um segundo mandato em 2011.
A presidente não é a única que resiste às recomendações da comissão. Mais sete comandantes de guerra, que até há pouco tempo brigavam abertamente, lançaram uma declaração conjunta na qual anunciaram que o relatório "tinha a intenção de enfraquecer o governo democrático e a estabilidade na Libéria".
Um dos sete foi Prince Johnson. "Por que estamos sendo perseguidos, e por que outros estão recebendo anistia?", pergunta ele, estendendo os braços como se ainda fosse um comandante militar. "Por que não houve oportunidade de confrontar as testemunhas? Isso é justo?", vocifera."Eu rompi com Taylor porque seus homens eram muito brutais. Eu mandei executar os estupradores entre os meus homens imediatamente." Ele grita com raiva, e seus protestos são altos o suficiente para serem ouvidos na outra ponta do corredor.
Esquecer e perdoar?
A controvérsia desencadeou inquietação na Libéria. Organizações de direitos humanos e outros 60 grupos de defesa dos direitos civis estão pedindo para que as recomendações da comissão sejam implementadas. Mas os comandantes anunciaram que farão de tudo para resistir a elas.
Os acusados não são os únicos que querem que as coisas sejam esquecidas. Muitos liberianos também o querem, ansiosos para ver os esforços de reconstrução avançarem mais rapidamente. Eles querem deixar para trás os horrores do passado - e seguir para o futuro.
Steve Johns é um deles. Engenheiro de 37 anos e pai de três crianças, Johns perdeu seu pai e um irmão na guerra. Ele fugiu do país a pé, junto com uma longa fila de pessoas, e estudou fora. Hoje, seu trabalho é tomar conta de duas dúzias de caixas automáticos na Libéria.
Sentado em seu escritório num pátio na parte sul de Monróvia, Johns diz: "As recomendações da comissão são uma receita para o caos". Sua mesa está coberta por pilhas de arquivos, cabos, alicates e CDs. "Pela primeira vez, os comandantes de guerra do passado se uniram", argumenta. "E se as coisas começarem novamente, será impossível impedi-los. Devemos deixar o passado bem longe."
Massa Washington tem uma visão completamente diferente. Durante os últimos três anos, ela esteve muito próxima do horror para ignorá-lo. Apesar de ter recebido ameaças de morte em seu telefone celular, ela ainda está devotada à sua missão. "Se a presidente e os comandantes de guerra me odiarem na mesma medida", diz ela, "eu terei feito bem o meu trabalho".
Os filhos de Washington estão brincando na rua, na frente do seu escritório. Eles não podem mais ficar sozinhos. Ainda assim, ela diz: "Minha esperança é maior do que o meu medo".
Tradução: Eloise De Vylder
Revista DER SPIEGEL
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