Publicado em 05/06/2009
Se a Polônia é uma terra de sobreviventes, a cidade portuária de Gdansk é uma boa porta de entrada. A poucos minutos de caminhada da estação de trens há uma praça dedicada ao movimento Solidariedade e aos trabalhadores que morreram em confrontos com a polícia, nos anos 1970. Ali perto, a exposição Estradas para a Liberdade mostra em detalhes o que livros de História não contam.
No centro histórico, a gigantesca Kościół Mariacki (Igreja de Nossa Senhora) resistiu graças às reconstruções do pós-guerra. O relógio astronômico, restaurado, indica hora, mês, ano, fase da lua, signos do zodíaco e o santo do dia, como em 1470. No museu, pinturas e esculturas dividem espaço com fotos devastadoras da Segunda Guerra, retratos fiéis das cinzas das quais o país se reergueu.
Começar uma visita por Gdansk não é comum. É em cidades maiores e mais conhecidas – como a capital Varsóvia e a importante Cracóvia – que as coisas acontecem. Mas há voos lotados e filas de espera que vêm para o bem. Foi assim que cheguei a Gdansk e, de lá, embarquei num trem para Torun, cidade de Nicolau Copérnico. Ali a presença do Rio Vístula – que corta todo o país – é discreta.
O museu Kopernika, a poucos metros da margem, foi a casa onde, em 1473, nasceu o astrônomo, autor da teoria heliocêntrica, segundo a qual a Terra girava em torno do Sol, só publicada após sua morte, em 1543.
Desde tempos medievais, a pequena Torun é também famosa pelos biscoitos de gengibre. No centro antigo, a enorme edificação da prefeitura domina a praça com seus tijolos vermelhos, estátua de Copérnico à frente. De Torun segui para Poznan, uma das cidades mais antigas e coloridas da Polônia, onde todos os dias visitantes reúnem-se em frente ao museu para ver os bodes de lata colidindo a cabeça 12 vezes para anunciar o meio-dia.
Diz a lenda que no dia da inauguração do relógio da torre o cozinheiro deixou queimar a carne do banquete. Então roubou bodes nas vizinhanças para assar, mas eles escaparam e começaram a bater a cabeça na praça. Acabaram por se tornar o centro da festa daquele dia de 1551, virando monumento junto com o relógio.
Poznan é exemplo incrível de reconstrução da cultura polonesa. Seu centro histórico recebeu extrema atenção dos restauradores. Prédios medievais bem-preservados abrigam cafés, bares e restaurantes. Apesar de crescer a popularidade da cerveja, a vodca – pura, como manda o costume, ou com suco de frutas – ainda é preferência nacional.
A base da maioria dos pratos tradicionais é carne vermelha frita ou assada, com muito molho. Entre os favoritos: flackzi (tipo de buchada com vegetais e pimenta), golabki (folhas de repolho enroladas com carne moída) e golonka (pernil de porco com raiz-forte).
Com o ingresso da Polônia na União Europeia, em 2004, o turismo aumentou e ajudou a economia. Mas não o bastante. Atrás de melhores salários, mais de 600 mil polacos haviam deixado o país em direção ao Reino Unido. A ponto de faltar mão-de-obra para as indústrias que começaram a se instalar ali em busca de custos mais baixos de produção.
O governo polonês chegou a fazer campanha nos países britânicos para convencer seus emigrados sobre os novos empregos que estariam sendo gerados. Mas em bares, hotéis ou na construção civil da Inglaterra, Irlanda ou Escócia os poloneses ganhavam cinco vezes mais do que em sua terra.
A volta para casa começou a se intensificar neste ano, devido ao desemprego nos países ricos. Estima-se que mais da metade dos que haviam mudado para o Reino Unido tenha retornado. Mas não sem antes deixar como herança um pouco da sua cultura. Há vestígios dela no revigoramento do catolicismo, em itens incorporados às prateleiras dos supermercados e na súbita admiração pela energia perseverante, típica dos sobreviventes.
País sobrevivente
Em 1795, a Polônia foi tomada pelos vizinhos Prússia, Áustria e Rússia. Apesar da resistência de seu povo, armado de foices contra os exércitos, foi dividida entre os invasores. A independência viria em 1918, depois da Primeira Guerra, por pouco tempo. Em 1939, o país foi invadido pelas tropas de Hitler. Quase um quinto de sua população foi dizimado durante a Segunda Guerra.
Até então, a Polônia tinha a maior comunidade judaica da Europa. Após a Guerra, o país passou a compor o bloco liderado pela ex-União Soviética. E seria o primeiro a colocá-lo na berlinda, em 1970, quando a repressão do governo a um protesto de trabalhadores contra a carestia deixou 44 mortos e mais de mil feridos em Gdansk.
O ano novo seguinte começou com uma greve que se espalhou por toda a região norte do país. A pressão foi tanta que os preços baixaram, o Partido Comunista trocou de comando e abriu diálogo com os trabalhadores.
A rejeição dos poloneses ao modelo totalitário stalinista acabaria sendo um dos pontos de partida para a derrocada do regime. Os polacos sempre foram fiéis às suas tradições e aos ideais de liberdade. Hoje o catolicismo é a religião de 90% da população. A Igreja preservou sua forte influência por ter se alinhado à identidade cultural do país.
Não foi à toa que, em 1978, o Vaticano nomeou Karol Wojtyla seu primeiro papa não-italiano em 450 anos. A visita de João Paulo II a sua terra natal no ano seguinte mexeu com a autoestima nacional e serviu de estopim à mobilização que colocaria Gdansk, o eletricista Lech Walesa e o sindicato Solidariedade na mídia mundial.
O inédito movimento não comunista rompeu as fronteiras e as estruturas do regime. Com a queda do Muro de Berlim e o enfraquecimento do comunismo, em 1990 os poloneses foram às urnas pela primeira vez para eleger Walesa. Mas seus cinco anos de governo foram decepcionantes e o Solidariedade perdeu expressão.
Revista Brasil
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