O negócio de partes do corpo da companhia alemã Tutogen é tão secreto quanto lucrativo. Ela extrai ossos de corpos na Ucrânia para fabricar produtos médicos para um mercado global que movimenta bilhões e está centrado nos Estados Unidos.
O engenheiro aposentado Anatoly Korzhak morreu em Kiev em 5 de agosto de 2004. Seu corpo foi recolhido às 2h e levado para o instituto de medicina legal da capital ucraniana. Na mesma noite, a filha de Korzhak, Lena Krat, recebeu um telefonema no qual pediram para que ela fosse para o instituto logo de manhã, onde receberia mais informações.
O setor de tecidos dos EUA gera um lucro total
de US$ 1 bilhão (aproximadamente R$ 1,88 bi) por ano, diz a jornalista Martina Keller, autora do livro "Cannibalized: The Human Corpse as a Resource"
Foi a primeira vez que Krat recebeu a notícia da morte de um parente próximo. "Eu fiquei tão triste que não conseguia pensar com clareza", lembra-se. Quando ela chegou ao instituto de manhã, um homem disse alguma coisa para ela sobre transplantes de pele. Tratava-se de um funcionário de uma companhia ucraniana que trabalha lado a lado com os especialistas em medicina legal. Ela disse ao homem: "Deixe-me em paz. Eu não sei do que você está falando e não quero ouvi-lo."
Mas o funcionário foi persistente e eventualmente deu a ela um formulário para assinar. Ele disse que se ela consentisse com a remoção da pele, estaria ajudando vítimas pediátricas de queimaduras, que precisavam de transplante. Krat assinou o formulário. "Foi como se eu tivesse sido hipnotizada", disse ela.
Mas agora Krat, mãe de duas filhas pequenas, ficou sabendo através da "Spiegel" que a companhia ucraniana em questão enviava as partes de corpos para a companhia alemã Tutogen Medical GmbH, que por sua vez fornece aparentemente um grande número de partes de corpos para o mercado norte-americano de tecidos.
Além de faixas de pele, tendões, ossos e cartilagem são removidos dos corpos. "Isso me chocou", disse Krat. "Se eu soubesse que tudo isso seria retirado, eu jamais teria dado meu consentimento."
Uma indústria lucrativa
O incidente na capital ucraniana faz parte da rotina diária secreta de um ramo pouco conhecido, mas altamente lucrativo do setor médico, no qual companhias usam corpos para produzir suprimentos médicos. Ao fazer isso, eles reutilizam quase tudo que o corpo humano tem a oferecer: ossos, cartilagem, tendões, fáscia muscular, pele, córneas, saco pericárdico e válvulas do coração. No jargão da profissão, tudo isso é chamado de "tecido".
Ossos e tendões, as partes que mais interessam à Tutogen, são submetidos a um processamento complexo. A companhia retira a gordura e limpa os ossos, corta, serra ou os tritura nos tamanhos desejados, depois esteriliza, embala e vende o produto final para mais de 40 países em todo o mundo. Com uma prescrição médica é até mesmo possível pedir os produtos da Tutogen através de farmácias online.
O mercado para os tecidos ainda é pequeno na Alemanha. No que diz respeito aos ossos, por exemplo, os especialistas estimam que cerca de apenas 30 mil transplantes por ano são feitos em hospitais de todo o país, principalmente para reconstrução óssea durante cirurgias de quadril e coluna vertebral.
Nos Estados Unidos, a história é completamente diferente. De acordo com a Academia Americana de Cirurgiões Ortopédicos, mais de um milhão de partes de ossos são usadas em transplantes todos os anos. Em nenhum outro país é possível ganhar tanto dinheiro com partes de corpos. Se um corpo for separado em partes avulsas, depois processado e vendido, o procedimento total poderia chegar a US$ 250 mil (cerca de R$ 470 mil). Por apenas um corpo! O setor de tecidos dos EUA gera um lucro total de cerca de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 1,88 bi) por ano, diz a jornalista Martina Keller, coautora deste artigo e autora do livro "Cannibalized: The Human Corpse as a Resource" [algo como "Canibalizado: O Corpo Humano Como Matéria-Prima"], publicado na Alemanha.
Questões éticas e legais
Isso levanta questões sobre a legalidade do processo de obter a matéria-prima. E será que os produtos ósseos feitos a partir de corpos são medicamente necessários? De acordo com Klaus-Peter Günther, presidente da Sociedade Alemã de Ortopedia e Cirurgia Ortopédica, eles normalmente "não são a primeira escolha" nas cirurgias. "Para nós, a regra de ouro ainda é o tecido retirado diretamente do paciente em questão."
As demais alternativas só são uma opção quando o material do corpo do paciente é insuficiente, disse Günther. Essas alternativas incluem ossos de animais e substitutos artificiais feitos de material cerâmico, por exemplo - ou ossos de doadores humanos.
Muitos hospitais coletam e reutilizam fragmentos de ossos removidos de pacientes que receberam quadris artificiais. "Por esse motivo", diz Günther, "não tivemos de recorrer a doadores mortos até agora."
Nos Estados Unidos, os médicos têm menos escrúpulos em relação a usar partes de corpos de mortos do que seus colegas alemães - em áreas como cirurgia de coluna, lesões esportivas e cirurgia cosmética. Por exemplo, os médicos usam partículas pulverizadas de pele para aumentar os lábios e atenuar rugas.
Será que os corpos devem ser cortados para tornar os procedimentos cosméticos possíveis? Ingrid Schneider é decididamente contra essa prática. Durante os últimos 15 anos, a cientista política de Hamburgo, ex-integrante da Comissão Investigativa sobre Lei e Ética na Medicina Moderna do parlamento alemão, esteve envolvida no assunto da reciclagem de material corporal. Schneider argumenta que o corpo não é uma fonte de materiais que podem ser vendidos à vontade. Por causa dessas preocupações, não surpreende que muitas pessoas sejam profundamente contra permitir que o corpo de um familiar seja reusado, mesmo para fins médicos.
Mesmo que seja pouco realista esperar que toda a comercialização de partes de corpos seja proibida na medicina moderna, diz Schneider, é importante estabelecer limites. Por esse motivo, ela insiste que os tecidos humanos devem ser usados com restrições - ou seja, apenas quando seu uso é medicamente necessário e evidentemente superior a outras formas de tratamento.
A convicção de que o corpo é muito mais do que um objeto também influenciou as políticas da Organização Mundial de Saúde (OMS), do Parlamento Europeu e do Conselho Europeu, instituição da UE que representa os líderes e ministros do bloco de 27 países. Todas essas instituições condenam a prática do comércio de partes do corpo humano para obter lucro.
Na Alemanha, a lei de transplantes de órgão regulamenta a remoção de tecidos. Apenas aqueles que consentiram com a coleta de órgãos e tecidos são considerados doadores. Se uma pessoa morre e não é uma doadora, seus parentes próximos podem consentir com a doação. O parágrafo 17 da lei de transplantes define explicitamente: "É proibido comercializar órgãos ou tecidos para uso em tratamentos médicos e outros fins." Médicos que removem tecidos só podem receber uma compensação correspondente ao seu trabalho. A lei determina sentenças de prisão de até cinco anos por violação à proibição de comércio.
Mercado de tecidos em alta
A Tutogen paga a seus parceiros ucranianos um preço fixo por cada parte do corpo humano. Em janeiro de 2002, a companhia pagou € 42,90 (R$ 115) por um fêmur completo, € 42,90 (R$ 115) por um úmero e € 13,30 a € 16,40 (R$ 35,78 a R$ 44,12) por um saco pericárdico, dependendo do tamanho. Também foram estabelecidos graduações de preços com os ucranianos. Por exemplo, a remoção de tendões patelares com segmentos de ossos, conhecida como "ligação osso-tendão-osso", ou OTO. Quando os funcionários legistas forneciam menos de 40 OTOs, a Tutogen pagava € 14,30 (cerca de R$ 38,50) por peça. Para quantidades maiores de OTOs, o preço subia para até € 23 (cerca de R$ 62) por peça para 40 ou mais OTOs, e para € 26,10 (cerca de R$ 70) por peça para 60 ou mais. Para um funcionário que ganha cerca de € 200 euros na Ucrânia, esses preços devem ter servido como um incentivo para remover o máximo de material corporal possível.
Milhares de páginas de memorandos internos, faxes, listas de estoque e documentos do ano 2000 a 2004 aos quais a "Spiegel" obteve acesso sugerem que a Tutogen não apenas processou as partes de corpos vindas da Ucrânia, mas também as forneceu ao mercado de tecidos dos EUA.
A empresa RTI Biologics da Flórida, uma das líderes do setor no mercado norte-americano, teve um rendimento de US$ 147 milhões (R$ 276 milhões) com suas vendas em 2008. A companhia descreve a si mesma como a "líder em fornecimento de implantes biológicos estéreis para cirurgias em todo o mundo."
Para esse fim, a RTI comprou no ano passado a Tutogen Medical Inc., companhia americana irmã da alemã Tutogen Medical GmbH. A aquisição foi uma boa notícia para os acionistas da RTI, por causa da grande rede internacional de doadores da Tutogen, disse o diretor-executivo Brian Hutchison. Dizendo de outra forma, a Tutogen é uma companhia que sabe como ter acesso ao maior número possível de partes de corpos.
As partes de corpos vindas da Ucrânia são enviadas via aérea para Frankfurt ou Nuremberg. De lá, elas são levadas para a sede da Tutogen em Neunkirchen am Brand, uma cidade de 8 mil pessoas no norte da Bavária.
As instalações da Tutogen em Neunkirchen, a poucos quilômetros ao norte de Nuremberg, compreendem vários prédios baixos, parecidos com galpões, onde trabalham cerca de 140 funcionários. No geral, é um lugar discreto para os visitantes que vêm regularmente da Ucrânia e dos Estados Unidos.
O presidente da companhia, Karl Koschatzky, recusou-se a responder às perguntas para uma entrevista, e a companhia não quis responder a uma lista de perguntas enviadas para seus escritórios.
O representante
A Tutogen usa um representante para organizar suas entregas da Ucrânia. O doutor Igor Aleshenko, formado em medicina legal, gerencia as relações da companhia com os vários institutos de medicina legal locais. Ele trabalha para a Tutogen na Ucrânia há cerca de dez anos.
Nesse tempo, Aleshenko se tornou um homem abastado, e agora divide seu tempo entre suas duas residências, uma em Kiev e outra em Moscou. Em 2002, a Tutogen descreveu Aleshenko como seu "funcionário de alto custo". Ele também não estava disponível para entrevista em Kiev, nem respondeu às perguntas enviadas por escrito pela reportagem.
Na Ucrânia, Aleshenko é muito mais do que o contato local da Tutogen. Ele é o diretor da Bioimplant, uma companhia que gerencia a remoção de tecidos. Por causa de seus laços estreitos com o Ministério da Saúde ucraniano, a Bioimplant é praticamente imune às inspeções excessivamente rigorosas de carregamentos de ossos na fronteira.
Os ucranianos não sabem muito sobre as verdadeiras atividades da Bioimplant. De acordo com o site da companhia, sua "atividade principal" é a "produção de bioimplantes" para uso em pacientes ucranianos. Mas o que a Bioimplant faz de fato?
Verão de 2009 em Kiev. Qualquer um que quisesse fazer uma visita à Bioimplant estaria inclinado a ir para o endereço oficial da companhia na rua Patrice Lumumba 4/6, um prédio de escritórios com vários inquilinos - onde a Bioimplant não tem nem uma caixa de correio.
Um guarda e um porteiro saúdam os visitantes e os enviam para o quarto andar, onde os escritórios da Bioimplant estão supostamente localizados. A sala 305 é um longo corredor de portas fechadas. Não há nem mesmo uma placa para identificar que a sala pertence à Bioimplant. Um jovem com terno listrado abre a porta. Ele diz que trabalha há pouco tempo para a Bioimplant e que a maior parte de seu trabalho consiste em fazer fotocópias.
De acordo com o jovem, a companhia aluga as três salas no prédio de escritórios, mas o doutor Aleshenko não está lá hoje. Brochuras da Tutogen e pacotes de ossos esterilizados são estocados na sala ao lado. Em vez do local de produção que se esperava, os escritórios são apenas um local de distribuição.
A Tutogen desenvolveu sua relação comercial com Aleshenko há cerca de dez anos. Durante uma viagem à sede da Tutogen no interior da Bavária em novembro de 2001, Aleshenko encontrou-se com Koschatzky no Hotel Bayerischer Hof em Erlangen, próximo a Nuremberg. A ata da reunião contém uma lista de "novas patologias" trabalhando para a Tutogen nas cidades do leste da Ucrânia de Dnipropetrovsk, Poltava and Zhytomyr.
Aleshenko aparentemente trouxe consigo uma lista de pedidos para a reunião, e seus parceiros alemães estavam ansiosos em satisfazê-lo. De acordo com a ata, a "TTG (Tutogen) concordou em fornecer 5 mil marcos alemães para custos de investimento em Dnipropetrovsk (Ucrânia). O doutor Aleshenko nos enviará as instruções de pagamento necessárias."
Discussões nada kosher
Alguns dos assuntos discutidos na reunião não foram nem um pouco kosher. Por exemplo, as atas diziam: a "TTG está testando se a depilação do corpo antes da remoção da pele pode atenuar o problema com os pelos (talvez usando cera quente ou fria)."
Uma lista de "atuais fornecedores" datada de novembro de 2001 já incluía abreviações de 15 instituições na Ucrânia. Só no ano fiscal de 2000-2001, 1.152 corpos da Ucrânia foram usados para fornecer tecidos para a Tutogen.
Mas isso ainda não era suficiente para a companhia, que precisava de mais instituições cooperadoras, mais doadores e mais partes de ossos para suprir para um mercado de tecidos em expansão.
De acordo com um documento de planejamento interno de 17 de junho de 2002 (o arquivo é intitulado "Requisitos para Tecidos Brutos"), a Tutogen precisava das seguintes partes corporais para o ano fiscal seguinte:
* 2.920 pedaços de femur,
* 3 mil cristas ilíacas,
* 1.190 tendões patelares,
* 3.750 rótulas,
* 10.200 fáscia do músculo femural (ou fáscia lata),
* 50 ossos cranianos,
* 70 tendões de Aquiles.
Acredita-se que Aleshenko, a quem a Tutogen aparentemente pagou diretamente pelos tecidos, tenha repassado parte do dinheiro para legistas de Dnipropetrovsk, Kiev, Kharkiv e outras cidades ucranianas. De acordo com uma lista interna de "itens recebidos e pagos", o parceiro ucraniano da Tutogen recebeu aproximadamente € 350 mil (R$ 941 mil) entre janeiro e agosto de 2001.
O investimento deve ter dado retorno. Farmácias online cobram entre € 367 e € 854 (R$ 986 e R$ 2.295) por um bloco de Spongiosa Tutoplast (substância óssea), dependendo do tamanho. De acordo com as listas de preços usadas na época, os ucranianos receberam entre € 23 e € 26,20 (R$ 61,83 e R$ 70,43) pela parte óssea original, dependendo do tamanho da mesma. Mesmo se a Tutogen estivesse pagando duas vezes mais pelo material bruto hoje, ainda seria um bom negócio.
Coleta de órgãos e tecidos
Não é de surpreender que a Tutogen pudesse ser generosa com seus parceiros ucranianos. Essa generosidade incluiu grandes quantidades de equipamento que a companhia enviava rotineiramente para os legistas que trabalhavam duro.
De acordo com os documentos internos, no ano fiscal de 2000-2001, a Tutogen enviou 6 mil bisturis, 2.600 pares de luvas estéreis, 500 aventais cirúrgicos, 15 lâminas de serras para autópsias e muitos outros itens para a Ucrânia - num custo total de € 40 mil (R$ 107,5 mil) em "despesas com doadores sem tecido", como os contadores da Tutogen anotaram meticulosamente. A Tutogen pagou a seus parceiros ucranianos cerca de € 500 mil (R$ 1,34 milhão) para as partes de corpos durante o mesmo período.
O FDA (agência norte-americana que regulamenta alimentos e remédios) tem listadas atualmente 20 instituições na Ucrânia que têm autorização para fornecer partes de corpos para o mercado norte-americano. Mas não importa em qual dessas instituições alguém clique na base de dados do FDA, todas têm as mesmas informações de contato: o número de telefone da Tutogen Medical GmbH no norte da Bavária.
Uma das instituições da lista é o instituto de medicina legal de Krivoy Rog, uma cidade industrial no sudeste da Ucrânia, com uma população de cerca de 700 mil pessoas. De acordo com a base de dados do FDA, a instituição de Krivoy Rog está autorizada a fornecer ossos, cartilagem, fáscia, ligamentos, sacos pericárdicos, esclera (o branco do olho), pele e tendões.
Coleta de órgãos e tecidos
O prédio espartano, pintado a cal, que abriga o instituto de medicina legal fica numa das pontas do terreno do hospital. Janelas de treliça com vidro jateado desencorajam os olhares mais curiosos. Os visitantes percebem imediatamente o odor desagradável dos corpos ao entrar no prédio. O diretor do instituto não estava disponível, embora seu carro estivesse estacionado na área do hospital. Um médico usando uma jaqueta jeans assumiu a tarefa de se livrar de qualquer um que perguntasse sobre a colaboração do instituto com a companhia alemã.
Ele disse aos repórteres para contatarem o escritório local da promotoria e apontou para um sinal acima da porta que dizia: "Proibida a entrada sem autorização". Isso inclui pessoas da Tutogen?, perguntou o repórter. "Não, a Tutogen tem autorização aqui", disse o homem, indicando que a conversa havia terminado.
O ex-diretor do departamento de medicina legal da cidade, Vladimir Bondarenko, é um pouco mais direto. Aposentado, ele encontrou-se com os visitantes num café. A coleta de tecidos começou em seu departamento há cerca de dez anos, disse Bonderenko.
"Era ilegal", disse ele. "Os familiares deveriam ter sido informados sobre o que estava acontecendo com os corpos", mas eles não tinham ideia. "Quando o morto está deitado no caixão, os familiares não veem nada além do rosto. O que eles não veem é que os ossos das pernas ou braços foram removidos."
A lei de transplante de tecidos da Ucrânia inclui uma cláusula que determina que os familiares precisam consentir com a doação de tecido se a pessoa que morreu não o fez em vida. Entretanto, há indicações de que isso normalmente não acontecia. Autoridades ucranianas em Krivoy Rog e em várias outras cidades estão conduzindo investigações sobre supostos casos de coleta ilegal de órgãos e tecidos.
O caso do pai de Lena Kraft, moradora de Kiev, por exemplo, foi examinado durante uma investigação identificada pelo número de arquivo 50-3793, iniciada em 4 de janeiro de 2005. A investigação incluía todos os incidentes que aconteceram entre maio e setembro de 2004. Os nomes de dez mortos são listados nos arquivos. Os familiares afirmaram que eles "não consentiram com a remoção de material anatômico."
De acordo com a ordem judicial que autorizou os processos, os "familiares foram enganados, uma vez que foram informados de que apenas uma pequena parte dos mortos seria removida, como um osso ou fragmento de tecido. Na verdade, quase todos os ossos e tecidos foram removidos. Todo o material foi levado para a Alemanha."
Interpretação legal
Apesar das provas, o escritório da promotoria do distrito de Kiev fechou os processos em julho de 2005, "por falta de uma ofensa ao estatuto". Curiosamente, o documento determina, como motivo para arquivar o caso, que os funcionários da Bioimplant não haviam violado a lei de transplantes porque não haviam transplantado materiais dos corpos, mas apenas os removido para que eles fossem processados e transformados em "bioimplantes". Como resultado dessa interpretação legal, foi permitido que a reciclagem de corpos continuasse até hoje.
Kiev, instituto de medicina legal da rua Orangery: um prédio longo, de tijolos à vista, do qual médicos vestidos com aventais verde-claro saem ocasionalmente para fumar do lado de fora da porta principal. Familiares ficam parados próximos à entrada, esperando a liberação de seus parentes mortos. A vitrine de uma funerária do outro lado da rua exibe caixões e coroas de flores.
Vladimir Yurchenko é o diretor do instituto. Ele aponta para a sala onde os corpos são processados para a Tutogen. Ela fica no andar térreo e a entrada é proibida para pessoas que não trabalham no local. Por quê? "Porque é isso que as autoridades de saúde dos EUA exigem", diz Yurchenko.
O patologista forense sênior de Kiev explica o processo. A Bioimplant obtém o consentimento dos parentes, e os funcionários da companhia também vêm ao instituto para coletar as partes dos corpos. Os funcionários da equipe de Yurchenko ajudam no processo, pelo qual recebem uma compensação adicional. Uma vez que os ossos e outras partes do corpo são removidos, pedaços de pau são inseridos no corpo para que ele continue com o mesmo formato até o funeral.
Os ossos, tendões e peças de cartilagem colhidos são guardados em caixas de metal folheadas a zinco numa sala refrigerada no porão. "As partes de tecidos são trazidas para cima uma vez a cada poucas semanas, quando um caminhão chega e as leva embora", diz Yurchenko. Karl Koschatzky, o executivo da Tutogen na Bavária que evitou a reportagem, também aparece por lá ocasionalmente.
"Uma fonte de matéria-prima"
De acordo com Yurchenko, cerca de 8 mil corpos por ano são entregues ao departamento de medicina legal. Desse total, mais de 5 mil são doadores de ossos em potencial, mas apenas 150 corpos têm o consentimento dos familiares para serem usados. Se cada um dos dois institutos da capital fornecem partes de 150 corpos, como diz Yurchenko, e se um total de 20 institutos na Ucrânia estão registrados no FDA - e, portanto, colaboram com a Tutogen - pode-se assumir que a companhia alemã obtém suas partes corporais de um grande número de corpos ucranianos. "Tudo o que somos para os países ricos é uma fonte de matéria-prima", diz Yurchenko.
Em maio de 2004, a Tutogen assinou um contrato de cinco anos com a Bioimplant, que descrevia o processo como segue: "os ucranianos transferem tecidos coletados para a Tutogen na Alemanha para que eles sejam processados e transformados em produtos." Mas este processamento é caro. Como a companhia ucraniana paga pelo procedimento caro? A resposta é simples: com os ossos dos corpos ucranianos que foram transformados em produtos na Alemanha. Esta é a moeda aceita por ambos os lados do acordo.
O que o acordo não esclarece é que os alemães não estavam fabricando produtos para a Bioimplant, mas pediam quantidades substanciais de materiais brutos da Ucrânia todo mês.
Em certas ocasiões, um número bem maior de partes de corpo do que a Tutogen era capaz de processar chegou da Ucrânia e outros países para Neunkirchen. Um documento intitulado "Inventário, Estoque de Material Bruto 1", datado de março de 2000, revela a quantidade de material em excesso. De acordo com esse documento de inventário, os depósitos da Tutogen já tinham 688 tendões patelares, 1.831 rótulas, 1.848 fíbulas, 2.114 fáscias e 1.196 ossos dos pés, ou um total de mais de 20 mil partes de corpos.
Em junho de 2002, funcionários da Tutogen escreveram os seguintes comentários nas atas da reunião: "Problemas de estoque. Mais tecido do que o necessário continua sendo entregue. São necessárias soluções para lidar com esse problema."
Os documentos da companhia também incluem referências às soluções que a Tutogen tinha em mente. De acordo com um memorando interno de abril de 2002, uma certa senhora R. observou "que não há mais nenhuma capacidade de armazenamento nos freezers. É necessário aumentar os esforços para enviar tecidos para os EUA."
De acordo com um documento datado de junho de 2002, que lista as "Requisições de Tecidos Brutos para Necessidades dos EUA", os parceiros norte-americanos requeriam o seguinte suprimento mensal:
* 119 cristas ilíacas,
* 667 peças de fáscia lata,
* 267 rótulas,
* 243 pedaços de fêmur.
A Tutogen violou a lei?
Aparentemente, as entregas para os Estados Unidos não eram apenas enviadas para a companhia irmã na Flórida, a Tutogen Medical Inc., o que poderia ter sido explicado como uma forma de resolver o problema interno da companhia, mas também para a RTI, a concorrente norte-americana da companhia na época.
Numa tabela detalhando um carregamento de Lugansk na Ucrânia, entregue em 7 de dezembro de 2001, foi cotada uma quantia de € 62 mil (R$ 166 mil), mas o destinatário foi identificado como "TM/RTI".
Se a Tutogen estava de fato enviando tecidos não processados para os Estados Unidos, isso poderia constituir um ato de comércio ilegal de tecidos, uma vez que o resultado gerava lucro.
Num memorando datado de 4 de abril de 2002, um funcionário da Tutogen deu a seguinte declaração de alerta: "Deveríamos evitar enviar material sem processamento para a TMUS (Tutogen USA), para não criar a impressão de que estamos fazendo comércio de tecidos."
O Instituto Alemão para Substituição de Células e Tecidos, outro grande produtor de ossos, rejeita categoricamente essas práticas. O diretor Hans-Joachim Mönig insiste que "obter tecidos brutos de outro país e transferi-los para terceiros é contra a lei. Na nossa visão, isso constitui crime de comércio de tecidos."
Até agora, a colaboração com Aleshenko e o Ministério da Saúde de Kiev funcionou extremamente bem para a Tutogen. Todas as investigações contra os parceiros ucranianos da Tutogen em Krivoy Rog, Kiev e Dnipropetrovsk foram suspensas.
Mas isso pode mudar. No ano passado, o escritório da promotoria pública de Krivoy Rog lançou uma nova investigação.
Mais uma vez, de acordo com o que o escritório da promotoria pública afirmou em resposta às perguntas da "Spiegel", funcionários de medicina legal são suspeitos de "terem usado coerção e fraude para obter o consentimento de familiares para a remoção de tecidos e outros materiais anatômicos para fins de transplante". Dezessete familiares de mortos já testemunharam.
Em 9 de janeiro de 2009, o escritório da promotoria submeteu o caso ao tribunal distrital, onde ainda está em andamento.
Lena Krat, a mulher de Kiev que foi persuadida a liberar o corpo de seu pai para coleta de tecidos em 2004, ficará feliz de ver os responsáveis finalmente levados à justiça. "Essas pessoas são verdadeiramente culpadas", disse ela, "e fico indignada que essas coisas terríveis ainda aconteçam."
Tradução: Eloise De Vylder
DER SPIEGEL
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