Reinaldo José Lopes
Edição Impressa 161 - Julho 2009
Pesquisa FAPESP - © Eumetsat
Sobre o Atlântico: ventos carregam poeira do Saara para a América do Sul
Num paradoxo intrigante do sistema climático da Terra, uma das regiões mais áridas do planeta parece exercer um papel importante na formação da chuva que rega uma das áreas mais úmidas. Experimentos feitos durante a época mais chuvosa do ano em um trecho de floresta preservada na Amazônia Central, próximo a Manaus, indicam que a poeira do deserto do Saara, transportada por milhares de quilômetros pelos ventos sobre o oceano Atlântico tropical até a América do Sul, ajuda a formar as nuvens responsáveis por 80% da chuva nessa região amazônica. Sobre a floresta, os grãos de poeira do Saara funcionam como núcleos de gelo, plataformas microscópicas em torno das quais a água no estado sólido se agrega e origina as nuvens altas, muito carregadas de chuva.
Os resultados desse trabalho, publicados na edição de maio da revista Nature Geoscience, são surpreendentes e ainda precisam ser aprimorados, ressalta o físico Paulo Artaxo, da Universidade de São Paulo (USP), um dos autores do estudo. “Precisamos descobrir, por exemplo, se essa influência da poeira do Saara ocorre também em outras regiões da Amazônia. Também precisamos de medidas de longo prazo, registradas ao longo de anos, para compreender como esse efeito varia com as estações do ano”, diz o pesquisador. De qualquer maneira, os dados obtidos perto do pico da estação chuvosa na Reserva Biológica do Cuieiras, a 60 quilômetros ao norte de Manaus, sugerem uma contribuição um bocado relevante da poeira do Saara para a concentração de núcleos de gelo na Amazônia Central.
Artaxo e pesquisadores dos Estados Unidos e da Alemanha coletaram amostras de ar nessa região da floresta de 9 de fevereiro a 9 de março de 2008 e encontraram essas partículas de poeira em até 80% dos núcleos de gelo. A poeira parece alternar sua função de principal semeadora de nuvens de gelo com as chamadas partículas biológicas primárias (bactérias, grãos de pólen, esporos e fragmentos de folhas e de insetos), emitidas pela própria floresta. Ora uma, ora outra era a responsável majoritária pela formação dos núcleos de gelo. Somadas, as duas fontes geraram 99% das sementes de nuvens – nenhuma delas contribuiu com menos de 15% dos núcleos.
A analogia com sementes é útil. Na Amazônia, as nuvens que se formam a grandes altitudes têm entre 15 e 18 quilômetros de espessura e são constituídas por cristais de gelo. São elas que geram as chuvas mais intensas e abundantes, essenciais para o ciclo hidrológico da região. Nuvens mais rasas, com 3 a 5 quilômetros de espessura, surgem mais próximo ao solo a partir de gotas líquidas e contribuem menos para as chuvas da Amazônia.
Nesse estudo, os pesquisadores coletaram as partículas em suspensão – também chamadas de aerossóis – no ar da floresta ao nível do solo e as injetam em uma câmara que permite simular a formação das nuvens profundas convectivas. “Usamos uma câmara que reproduz as condições da atmosfera a até 18 quilômetros acima do solo e até 70 graus Celsius negativos”, diz o físico. É em um ambiente semelhante a esse, com baixa pressão e baixa temperatura, que se formam as nuvens profundas convectivas, justamente as que brotam a partir de núcleos de gelo e respondem pelo grosso da precipitação amazônica. “Estamos planejando experimentos com aviões para o período 2010-2011, para fazer medições em regiões da atmosfera em que as nuvens de gelo se formam. Medir essas partículas em altas altitudes não é trivial”, comenta Artaxo.
A contribuição da poeira do Saara para a chuva amazônica nunca tinha sido flagrada, embora a jornada dos grãos pelo Atlântico fosse relativamente bem conhecida. Dados da agência espacial norte-americana (Nasa) sugerem que 4% da poeira de cada tempestade do deserto atravesse o oceano até as Américas – uma proporção maior, quase 20%, se perde no caminho, depositando partículas de ferro que fertilizam a água do oceano e aumentam a capacidade das algas de absorver carbono da atmosfera. Não são as ventanias no Saara que, isoladamente, trazem o pó até aqui. Parece haver um reservatório constante de partículas flutuando sobre o norte da África, que só é empurrado rumo às Américas quando as condições do vento são apropriadas.
Um grau de mistério significativo ainda envolve os processos físicos da atuação dos aerossóis – sejam os de poeira, sejam os de origem biológica – como núcleos de gelo. “Esses processos ainda não são bem compreendidos”, reconhece Artaxo. A presença de certos metais – ferro no caso da poeira do Saara e zinco no das partículas produzidas pela floresta – parece ser importante para a formação dos núcleos de gelo. Aliás, a presença e a proporção de elementos químicos como alumínio, silício, manganês e ferro permitem confirmar a origem saariana da poeira analisada por Artaxo e colaboradores.
“A proporção desses elementos nas partículas de Manaus é a mesma encontrada na poeira do Saara. E há a correlação entre a presença desses aerossóis e o movimento das massas de ar, o que mostra que não se trata de poeira levantada por um caminhão em uma estrada próxima ao local da coleta, mas de transporte atmosférico de longa distância”, explica Artaxo.
Para o físico, ainda que a contribuição do Saara para a chuva se revele um fenômeno geral para a Amazônia, é difícil dizer o que isso significará num contexto de mudanças climáticas. Num planeta mais quente, chegará mais ou menos poeira até aqui? “Por enquanto precisamos obter mais dados experimentais para tentar responder isso com previsões quantitativas”, afirma.
Em outra publicação recente, desta vez na Science, Artaxo deixou de lado o contexto específico da Amazônia para, com pesquisadores de outros países, se debruçar sobre os efeitos do fogo sobre o clima e a biosfera do planeta ao longo do tempo. Incêndios grandes e pequenos ajudaram, por exemplo, a forjar as várias áreas da savana do mundo ao longo de milhões de anos. E parecem estar se intensificando, diz Artaxo. “É possível ver um aumento da incidência de queimadas no mundo todo nos últimos anos”, afirma.
A equipe calculou que os efeitos dos gases estufa produzidos pelas queimadas correspondem a 19% da contribuição humana para o aquecimento global desde a época pré-industrial. “As queimadas no Brasil geram cerca de 30% dos gases emitidos por queimadas no planeta”, ressalta o físico.
Números à parte, é bem prático: em termos de custo e benefício, reduzir ou eliminar as queimadas é provavelmente um dos melhores investimentos imediatos contra o aquecimento global causado pelo homem, superando planos como a ampliação da rede de usinas nucleares ou a troca da atual frota de automóveis movidos a combustíveis derivados de petróleo por veículos a biocombustíveis ou a hidrogênio. “Com o controle das queimadas, teríamos um retorno rápido em termos de redução de emissões de gases estufa com um investimento muito baixo. Também haveria outros benefícios, como a preservação da biodiversidade amazônica”, ressalta o físico. “A construção acelerada de usinas nucleares ou a renovação global da frota de carros demorariam décadas para reduzir significativamente as emissões de gases estufa.”
Segundo Artaxo, há uma relação indireta entre o crescente descontrole do fogo no planeta e a hipótese da savanização da Amazônia. Essa possibilidade, que aparece com certa frequência em modelos climáticos que tentam prever o futuro da floresta, é consequência da transformação de vastas áreas de mata fechada em formas de vegetação mais abertas e ecologicamente empobrecidas, que lembram superficialmente o Cerrado do Brasil Central. “Com o avanço do desmatamento e a possível redução na taxa de precipitação, talvez surja uma vegetação mais suscetível ao fogo e aumente a incidência de queimadas”, diz Artaxo. “Isso geraria uma realimentação positiva que impulsionaria o processo de savanização da Amazônia.”
O ouro de tolo
Exploração intensa de recursos naturais da Amazônia gera prosperidade passageira
O modelo de desenvolvimento econômico predominante hoje na Amazônia – que começa com desmatamento e exploração madeireira e culmina com o uso de vastas áreas para pecuária extensiva e agricultura – está mais para um gerador de pobreza do que para um motor de riqueza, ao menos no longo prazo. A conclusão resulta de uma análise conduzida por pesquisadores do Brasil, do Reino Unido, da Nova Zelândia e de Portugal, publicada na edição de 12 de junho da Science. Os municípios amazônicos onde não há desmatamento têm inicialmente um baixo índice de desenvolvimento humano (IDH), indicador que leva em consideração a renda, a escolaridade e a expectativa de vida da população. Com a chegada da fronteira agrícola, esses municípios passam por uma onda de prosperidade e, quando seus recursos naturais se esvaem pela exploração intensa, voltam à situação inicial de IDH baixo.
A análise não avaliou a trajetória dos municípios ao longo dos anos, por não haver uma série temporal disponível, explica a bióloga portuguesa Ana Rodrigues, do Centro de Ecologia Funcional e Evolutiva em Montpellier, França, uma das autoras do estudo do qual participaram os brasileiros Carlos Sousa Júnior e Adalberto Veríssimo, do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Ante essa impossibilidade, a equipe comparou locais ainda não engolidos pela fronteira agrícola com outros nos quais a fronteira está muito ativa, além de áreas onde o desmatamento e a ocupação estão quase concluídos. “Nessa classificação, usamos duas variáveis: a porcentagem de área desmatada até 2000, que dá uma ideia da extensão do desflorestamento; e a proporção de floresta derrubada entre 1997 e 2000, que indica se o município estava na fronteira ativa ou não”, diz Ana. O ano 2000 foi usado como referência para coincidir com o do Censo brasileiro, que permitiu calcular o IDH dos municípios.
Os registros mostram que os municípios que desmataram até 60% de sua área – e 0,5% da área total entre 1997 e 2000 – alcançaram um IDH equivalente ao índice médio brasileiro. Já o IDH dos locais em que a proporção de floresta derrubada foi ainda maior e a devastação quase completa foi semelhante ao de regiões da Amazônia em que a floresta está preservada – nessas duas situações, o IDH é inferior ao índice de desenvolvimento humano médio do Brasil. “É provável que haja modelos em que a decadência econômica possa ser evitada apesar do desmatamento, embora eu suspeite de que eles dependeriam de injeções frequentes de investimento vindo de fora da Amazônia”, diz Ana. O desafio é criar um modelo de desenvolvimento com o mínimo de desmatamento. “Todos ganhariam: seria bom para as pessoas, para os ecossistemas e para reduzir as emissões de carbono responsáveis pela mudança climática global”, comenta. “A situação atual é ruim nessas três frentes.”
Revista FAPESP
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