terça-feira, 21 de julho de 2009

Na fronteira do terror

As notícias vindas do Paquistão são sempre desconcertantes: trata-se de um aliado dos EUA? Sendo assim, como é possível que a guerra no Afeganistão seja alimentada a partir do seu território? Por que há anos o exército paquistanês não consegue vencer os talibãs e outros fanáticos em seu próprio país? Uma equipe de repórteres abriu caminho no distrito de Khyber para descobrir as respostas
Por Dexter Filkins (Texto) e Lynsey Addario (Fotos)



UM INCIDENTE NA FRONTEIRA

Na tarde de 10 junho 2008, na fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, um grupo de soldados americanos cai em uma armadilha dos talibãs. A troca de tiros acontece diretamente sobre a zero-line, que separa o Afeganistão das remotas regiões tribais do Paquistão, chamadas FATA (Federally Administrated Tribal Areas). Essa parte da fronteira está sendo controlada nessa ocasião por três postos de tropas do exército paquistanês.

Cotidiano na guerra santa: membros da “brigada vício e virtude”, que domina grandes áreas das regiões tribais, fazem patrulhamento na aldeia Bar Kambar Khel


Os americanos pedem apoio de jatos de combate dos EUA, vindos de bases afegãs. Os aviões chegam, os talibãs fogem e os americanos estão em segurança. Mas os cadáveres de onze soldados guarda-fronteiras paquistaneses estão no chão, mortos pelos pilotos de combate de seus aliados americanos.

O ataque aéreo foi “infundado e covarde”, clamam os diplomatas paquistaneses. O governo americano lamenta o “erro trágico”. Mas a razão dessas mortes continua incerta. Até que, semanas mais tarde, quatro moradores do vilarejo Suran Dara, que fica nas proximidades, revelam a verdade: os soldados paquistaneses foram os primeiros a abrir fogo contra os americanos, porque queriam apoiar os talibãs no ataque.

“E por que não?”, perguntam os habitantes da aldeia. “Aqui todo mundo apoia os talibãs.” Especialistas asseguram que o incidente foi apenas um entre vários outros semelhantes. Muitas vezes os soldados dos EUA e do Paquistão, países aliados na luta contra o terror, se enfrentaram nas regiões da fronteira em batalhas sangrentas.

Para os americanos, se apresenta a cada vez mais premente questão: de que lado o Paquistão se encontra realmente nessa guerra?

O SENHOR DA GUERRA

Duas semanas mais tarde, viajo com a fotógrafa Lynsey Addario para o distrito de Khyber, um dos sete distritos tribais dentro da FATA. Estamos usando os trajes típicos da região, acompanhados de homens fortemente armados que devem nos proteger.

Perto da fronteira da província passamos por uma placa, onde está escrito “Acesso proibido a estranhos”. Nosso guia pede que nos mantenhamos afastados da rua principal até a noite. É sexta-feira de tarde e os espiões dos talibãs abordam todos que não estejam cumprindo as horas das orações.

Centenas, talvez até milhares de combatentes islâmicos estejam escondidos nessa região do noroeste selvagem do Paquistão. Há muito tempo os talibãs arrancaram o controle sobre todas as regiões da FATA das mãos dos governadores do Estado paquistanês.

Daqui eles enviam seus autores de atentados pela fronteira para o Afeganistão, onde eles desmoralizam as tropas da OTAN ali estacionadas. Segundo informações de serviços secretos ocidentais, daqui também teriam sido organizados pelo menos seis grandes atentados da Al-Qaeda sobre alvos nos Estados Unidos e na Europa – inclusive o ataque com bombas ao metrô de Londres, no qual morreram 56 pessoas.

Mas, agora, os extremistas avançaram demais, deixando a FATA em direção ao centro do Paquistão: conquistaram vilarejos, fecharam escolas para meninas, explodiram barracas de venda de CDs e surraram barbeiros que não queriam parar de cortar as barbas, um ato contra Alá. Pouco antes de nossa viagem, uma tropa de insurgentes talibãs havia cercado a capital da província, Peshavar.

Em julho de 2008, o exército paquistanês quis intervir e expulsar os talibãs definitivamente do distrito de Khyber. Repórteres ficaram proibidos de acompanhar a ação militar, mas a televisão estatal mostrou imagens de transportes de tropas e caminhões do exército em avanço. Um porta-voz do Ministério do Exterior americano manifestou-se satisfeito com a determinação dos aliados. Nós queremos verificar o que essa determinação significa realmente.

Quando a oração da sexta-feira termina e nosso guia considera ser seguro, entramos novamente no carro, passamos por casebres de chapa ondulada enferrujada e por ruas quase desertas. Em nenhum lugar, qualquer sinal da ofensiva militar anunciada. Nada de soldados paquistaneses, nada de caminhões transportadores do exército, nada de tanques.

Alguns quilômetros depois entramos em um caminho de terra que leva a um casario murado e fortemente guardado: o vilarejo Takya, residência de Haji Namdar, um dos mais poderosos dirigentes dos talibãs no distrito de Khyber.

Ele chama seu grupo de insurgentes de “brigada para o combate do vício e preservação da virtude” – imitando aqueles policiais talibãs da moral que nos anos 90 do século passado barbarizavam as pessoas: batiam em mulheres nas ruas com varas, se tivessem saído sozinhas de casa, surravam crianças, se tivessem soltado pipas.

Nesse dia, homens jovens estão sentados com suas armas e seus lança-mísseis na carroceria de um caminhão, estacionado na sombra. Agitados, discutem sobre um “avião sem piloto”, que explodiu em um de seus arsenais. A descrição é de um UAV “Predator” (avião não tripulado), abatido no Afeganistão por uma base norte-americana – a única forma de presença militar que o Paquistão permitiu aos EUA em seu território.

Namdar está sentado em um canto do prédio principal, no chão. Ele se levanta e me cumprimenta, dando a mão. Para quebrar o gelo, eu lhe entrego um mapa do Paquistão.

“Informaram que há soldados a caminho, para enxotar o senhor e sua gente de Khyber”, digo-lhe. “Por que o exército ainda não está aqui?” “O governo paquistanês não pode fazer nada contra nós, porque nós lutamos a guerra santa”, responde o líder talibã. “Quando os americanos matam pessoas inocentes no Afeganistão, é óbvio que temos de nos vingar. Lutamos contra os estrangeiros porque é nosso dever.” Com um gesto, um ajudante lhe indica para escolher suas palavras com cuidado. Namdar altera seu tom.

Nas sete regiões tribais da fronteira com o Afeganistão, poderia ser decidida a guerra contra o terror – se o exército paquistanês a quisesse decidir

“Não estou dizendo que nós mesmos enviamos autores de atentados através da fronteira para o Afeganistão. Mas também não impedimos ninguém de fazê-lo.” Em seguida, Namdar ergue a mão, em sinal de que não revelará mais quaisquer detalhes.

Membros de sua “brigada” confirmam as suspeitas dos serviços secretos ocidentais: Namdar treinou centenas de combatentes, que se transformam em homens-bomba no Afeganistão, levando o maior número possível de pessoas com eles para a morte. Há alguns anos ele impôs uma idade mínima aos suicidas – quem tem menos de 20, ainda não viveu o bastante para se sacrificar.

O único homem que o senhor da guerra do distrito de Khyber talvez deva temer é seu poderoso correligionário Baitullah Mehsud, o líder talibã na região tribal do Vaziristão do Sul, inacessível para estrangeiros, que quer estender sua influência ao território de Namdar. Mas do exército regular, Namdar, o treinador de autores de atentados, não tem medo. Está sentado em seu sítio, sem ser molestado, a cinco quilômetros de Peshavar, capital da província paquistanesa, enquanto à sua volta está uma pretensa ofensiva militar, para promover o medo aos talibãs. O que estará acontecendo?

Agora, finalmente, Namdar ri. “Não quero mentir para você”, ele diz. “às vezes, o exército vem para cá e destrói algumas casas vazias. É apenas um show.” E quem deve ser entretido com ele?

“Obviamente a América.”

NOVO GOVERNO, NOVO RUMO

Com a eleição parlamentar em fevereiro de 2008, pela primeira vez, em nove anos, um governo assumiu o poder no Paquistão sem a participação dos militares. A votação ocorrera sob condições difíceis, logo após o assassinato da favorita Benazir Bhutto, que havia retornado do exílio pouco tempo antes.

Mesmo assim, o resultado deu motivo para esperanças: com a votação do povo na retaguarda, os novos detentores do poder declararam, escondido em frases diplomáticas, que irão finalmente cortar a influência dos militares e do serviço secreto. A ordem estatal na região da FATA de agora em diante deverá ser restaurada não pelo exército, mas pelo governador da Província Noroeste, fronteiriça, Owais Ahmed Ghani.

Faço uma visita ao governador em sua residência em Peshavar, um edifício majestoso, construído pelos britânicos no auge de seu poder imperial. O próprio Ghani tem inegáveis traços britânicos.

“O senhor conhece essa?”, Ghani pergunta, cumprimentando. “Quando um pachtun segura uma arma na mão, seu coração bate mais depressa, como se abraçasse uma mulher.” Isso resumiria o problema de Ghani – pois a maioria dos habitantes das regiões tribais, assim como a maioria dos talibãs, faz parte do povo pachtun.

O governador fica sério. “A estratégia dos militares faliu”, ele diz. “Nessa região, os soldados não podem contar com o apoio da população.” Em vez de soldados, pretende-se, de agora em diante, trazer dinheiro para as regiões tribais. Bilhões de dólares, para estimular o desenvolvimento econômico (os EUA já prometeram US$ 750 milhões). Desse processo não devem participar dirigentes militares paquistaneses nem combatentes talibãs. Apenas funcionários civis do governo e líderes tribais tradicionais.

“Queremos apartar a população dos extremistas”, diz Ghani. Como isso será alcançado?
“Não subestime a determinação do cidadão paquistanês de enfrentar os talibãs; 90% da população nos apoiam nesse propósito.” Quando saio da residência, o Sol está se pondo, soldados recolhem o estandarte paquistanês, enquanto um deles toca na corneta a canção escocesa “A Hundred Pipers”.

São os líderes tribais, os maliks, nos quais o governador Ghani e o novo governo paquistanês colocam sua esperança. A sua autoridade nas aldeias da FATA é independente dos talibãs; ela remonta aos senhores coloniais britânicos: esses pagavam aos maliks um salário, para que cuidassem da ordem, em nome dos britânicos, nas regiões afastadas, sem que houvesse a necessidade de envio de funcionários próprios para essas selvagens regiões montanhosas.

Ele me explicara como iria impor limites aos islamistas fanáticos, com a ajuda dos líderes tribais – assim como os americanos o conseguiram no Iraque. Acontece que as estruturas dos talibãs já estão inseridas nas tribos. Mehsud, o mais poderoso príncipe regional, é da tribo Mehsud, que continua representando. “Tribo e talibã agora são uma coisa só”, diz Yan, meu informante.

Mesmo se fosse possível encontrar na FATA interlocutores para o novo governo, eles não sobreviveriam. Os líderes talibãs não têm inibições, eles praticam assassinatos entre si. Namdar, o senhor da guerra do distrito de Khyber, é assassinado por um guarda-costas seis semanas após minha entrevista com ele. A suspeita é de que seu rival Mehsud esteja por trás da morte.

O JOGO MUDA

Se, portanto, o plano do governador Ghani não puder se concretizar, então certamente um novo jogo de estratégia deverá ser jogado nos bastidores. Mas quais serão as regras?

Para entender, é necessário que se faça uma diferenciação: existem dois grupos de dirigentes talibãs. Uns enviam seus com batentes pela fronteira ao Afeganistão, para realizar ataques contra os “infiéis” e seus ajudantes afegãos. Os outros operam dentro do Paquistão, enviam brigadas de combate da zona FATA para as aldeias e cidades da província fronteiriça Noroeste. E até para Islamabad. Em julho de 2007, dúzias de extremistas se entrincheiraram por oito dias em uma mesquita no meio da capital. Uma unidade especial do exército invadiu o templo. Oitenta e sete pessoas perderam a vida.

Os talibãs juraram vingança: somente no ano de 2007 eles praticaram 50 ataques suicidas no Paquistão. Provavelmente também foi Mehsud que, em dezembro de 2007, enviara o autor do atentado contra a candidata à presidência Benazir Bhutto. O serviço secreto paquistanês teve de reconhecer: os extremistas estavam fora de controle. O Estado teve de reagir.

Em janeiro de 2008, soldados do exército paquistanês entraram em Vaziristão do Sul com inusitada decisão, matando centenas de combatentes de Mehsud. Quinze mil famílias fugiram diante dos combates na região. Então, depois de três semanas, os combates cessaram abruptamente. O exército desmontou seus postos de controle. E os ataques suicidas no Paquistão pararam.

O que havia acontecido? O líder talibã Mehsud e o comandante do exército haviam fixado novas regras para o jogo. Em um acordo, nunca tornado público, os extremistas prometiam cumprir as leis em seu país hospedeiro e não enviariam autores de atentados para regiões dentro do país. Sobre ataques a território afegão não há menção nesse acordo.

Fato é que as atividades dos talibãs no lado afegão da região de fronteira aumentaram desde o início de 2008. Os paquistaneses desviaram o caos, comprando a paz no próprio país à custa da paz de seu vizinho. O exército só ataca agora aqueles talibãs que não mantêm a nova rota de marcha e dirigem suas ofensivas das regiões tribais para o lado errado, o paquistanês.

Foi essa também a razão pela qual o líder talibã Namdar, no distrito de Khyber, se sentia tão seguro diante dos soldados paquistaneses. A “guerra santa” de Namdar seguia exatamente como combinada – ele enviava seus combatentes para o Afeganistão. A grande ofensiva paquistanesa, da qual eu não conseguira encontrar nenhum sinal durante minha viagem pelo distrito de Khyber, não era contra ele, mas contra outro senhor da guerra talibã, que não seguira as regras, enviando combatentes em direção a Peshavar.

Mas o acordo não protegeu Namdar de seu rival Mehsud. Mesmo assim, os estrategistas do exército e do serviço secreto parecem acreditar que poderão controlar futuramente esse Mehsud. E, ao que tudo indica, não estão se valendo para tanto da iniciativa dos políticos paquistaneses eleitos, que estão entrando em contato com os líderes tribais na FATA.

Yan, o malik do Vaziristão do Sul, por exemplo, nada sabe das negociações do governador Ghani com os líderes tribais. “As únicas conversas de que tenho notícia ocorrem entre Mehsud e o exército. Políticos não estão participando. Líderes tribais também não – bem, eu teria de saber, sou um deles.”

O CAMINHO DA JIHAD

A paisagem montanhosa na região de fronteira está molhada pela monção, quando alguns jovens talibãs me levam com eles pela rota dos autores de atentados. Após fortes chuvas, em todo lugar descem novos riachos pelas encostas. O Afeganistão está a uma distância de um dia de marcha.

Foi essa região que Obama bin Laden atravessou, após fugir em 2001 de seu esconderijo nas cavernas em Tora-Bora. Uma rota semelhante também foi percorrida por um rapaz paquistanês de 18 anos, de nome Mudasar, antes de voar pelos ares no Afeganistão, após acionar uma bomba. Isso foi em 2006. A morte do jovem foi informada aos seus familiares no distrito de Khyber por telefone, e o funeral teve de ser realizado sem o corpo.

Nesse dia, o irmão de Mudasar, Abu Omar, fala-me de sua própria missão terrorista. Após a morte do irmão, ele havia se candidatado em um dos campos de treinamento que o líder talibã Mehsud mantém no distrito de Khyber. Neles, os jovens aprendem a construir bombas, têm esclarecimentos sobre os inimigos e sobre o manuseio de armas de grosso calibre. O grupo de Abu Omar recebeu uma metralhadora pesada, “tão grande, que se podem abater helicópteros com ela.”

Abu Omar conta sem emoção, mas com riqueza de detalhes. No campo, a maioria havia sido de paquistaneses, mas havia também um inglês convertido, de cabelo loiro e barba comprida. Ao contar isso, escapa-lhe seu único sorriso nessa tarde: “O britânico era um bom muçulmano.” Certa vez, ele diz, atravessou a fronteira com seu grupo, avançando sobre a província afegã de Kunar. A metralhadora prestou bons serviços; os combatentes atacaram quatro postos do exército afegão e mataram sete soldados. “Infelizmente não havia americanos lá.” Quando retornava ao Paquistão com sua brigada de combate, o sol nascia por sobre as montanhas. “Na primeira luz vimos um posto de fronteira paquistanês. Os soldados nos deram água para beber e continuamos nosso caminho para casa.”

O JARDIM DAS ROSAS

Sete soldados afegãos foram mortos por Abu Oomar e seu grupo de combate além da fronteira. “Pena que não havia americanos”, ele diz



Washington, 28 de julho de 2008. No Jardim das Rosas da Casa Branca vê-se pela janela o perfil do primeiro-ministro paquistanês Yousaf Raza Gilani no Salão Oval. É sua primeira visita aos EUA. Nesse mesmo dia, tropas americanas haviam atirado um foguete sobre território paquistanês, matando em uma aldeia no Vaziristão do Sul um especialista em bombas da Al-Qaeda.

Segundo opinião de um especialista, a delegação paquistanesa nada sabia do ataque militar, ao chegar a Washington. Mas durante as conversações, os americanos acusaram Gilani de que seus militares e seu serviço secreto estavam fora de controle, ameaçando a segurança das tropas dos EUA no Afeganistão.

Na coletiva de imprensa que acontece no Jardim das Rosas, nada se vê da desavença. Lado a lado, os dois chefes de governo saem do Salão Oval e se dirigem para os microfones. “O Paquistão é um forte aliado e uma democracia viva”, diz Bush. “Falamos sobre o fato de que a fronteira para o Afeganistão deve tornar-se segura. O Paquistão assegurou que irá cumprir essa obrigação.” Gilani titubeia. “Muito obrigado”, ele diz. “Devo agora?” “Oh, por favor, por favor, com certeza”, diz o presidente norte-americano.

Gilani desempenha seu papel. “Estamos comprometidos com a luta contra os poucos terroristas que ameaçam a paz”, ele diz. “Eu prometi ao presidente que trabalhamos em conjunto pela democracia, o bem-estar e a paz no mundo.” Em seguida, os dois homens se viram e retornam para a Casa Branca.

Revista GEO

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