por Eustógio Wanderley Correia Dantas*
A presença do comércio ambulante está ligada à vida das cidades. Em trabalhos e relatos desenvolvidos por cientistas, pintores e escritores encontram-se menções a este tipo de atividade que se desenvolve nas ruas de todas as cidades do mundo.
O comércio ambulante está presente nas cidades brasileiras desde os primórdios, construindo e fazendo parte do drama cotidiano urbano.
Pinturas do francês Jean-Baptiste Debret ilustram o comércio ambulante nas ruas do Rio de Janeiro no século XIX.
No Brasil, textos de escritores e poetas como Aluísio de Azevedo e Adolfo Caminha contêm informações sobre a presença do comércio ambulante na cidade já no século XIX. Ademais, ainda encontram-se registros feitos por artistas como Debret, cujos quadros documentaram a venda feita pelos escravos, que se deslocavam de porta em porta das casas do Rio de Janeiro em meados do século XIX para venderem aves, leite, frutas, carne defumada, pão-de-ló, linguiça, sonhos, café torrado, refrescos, cadeiras, cestos e ainda prestavam serviços de barbeador e carregador.
Por meio desses relatos, tem-se o registro da presença do comércio ambulante nas cidades brasileiras desde os seus primórdios, fazendo parte e construindo o drama cotidiano das cidades com suas cores, cheiros e sons característicos. Entretanto, a caracterização da atividade no passado — e que lembra o comércio ambulante atual exercido nas cidades brasileiras — passa por uma série de mudanças. Dois fatores são responsáveis por essas modificações: a ampliação do número de comerciantes e, posteriormente, a atividade passar a ser considerada ilegal.
Hipóteses sobre o comércio ambulante
Buscando resolver essa questão, são levantadas algumas teses. Uma delas é a de que o comércio ambulante acabaria tão logo o país atingisse certo grau de desenvolvimento. Tal argumentação baseava-se na ideia de que o comércio ambulante deixara de existir nos países desenvolvidos. A partir daí, cunhou-se a teoria do dualismo estrutural ou tecnológico nos países subdesenvolvidos e que atribuía a permanência de atividades como o comércio ambulante somente enquanto resquícios de atividades e formas herdadas do passado e, portanto, com o desenvolvimento do capitalismo nos países subdesenvolvidos, seria consubstanciada a suplantação deste terciário arcaico pelo terciário moderno.
Fenômeno Internacional
Embora tais considerações tenham sido colocadas enquanto verídicas nos países desenvolvidos, o historiador francês Fernand Braudel as desmistifica quando constata a continuidade do comércio ambulante em países como França e Inglaterra. Para o autor, caso o comércio ambulante estivesse fadado ao fim, na “Inglaterra teria desaparecido no século XVIII, e em França, no século XIX. Todavia, a venda ambulante inglesa conheceu um recrudescimento no século XIX, pelo menos nos arredores das cidades industriais mal abastecidas pelos circuitos normais de distribuição”.
Henri Lefébvre
Sociólogo e filósofo francês, foi um dos maiores estudiosos da vida urbana do século XX. É considerado por muitos um geógrafo da cidade, embora não tivesse formação como tal. Uma de suas maiores preocupações e objeto de grande parte de seus estudos é a importância da reprodução das relações sociais e da produção do capital no espaço.
Opiniões dos estudiosos
O economista peruano Hermano de Soto é um dos teóricos a analisar o comércio ambulante conforme este pressuposto. Para o autor, “no caso do comércio ambulante, as pessoas começaram a invadir a rua pública para nela dispor e realizar operações comerciais sem ter licença, nota fiscal nem pagar impostos, ainda que em alguns casos tenham sido favorecidas for algum regime de exceção legal que (…) proporciona a tolerância municipal”. A segunda tese consiste uma ruptura em relação às perspectivas anteriores, ao colocar em evidência as características do processo de desenvolvimento do capitalismo nos países subdesenvolvidos.
Assim, para alguns teóricos – como o sociólogo Emanuel Bandeira de Souza – a existência do comércio ambulante, resiste enquanto atividade (re)criada pelo capital. Para o autor, “a história do capitalismo revela que ora o capital recria, ora estimula a reprodução de trabalhos não assalariados como recurso para sua ampliação. O seu objetivo principal é a produção de mercadorias e não, necessariamente, a reprodução do trabalho assalariado, embora seja esta a sua relação de trabalho ideal”. Por meio da teoria do desenvolvimento desigual e combinado do capital, passa-se a considerar o processo de modernização ocorrido nos países subdesenvolvidos, processo que, por ser poupador de mão-de-obra, gera por um lado o desemprego e o subemprego.
A compreensão dessas transformações dá-se por meio da consideração da história do espaço como condição para compreensão da realidade, pois, conforme defendia o sociólogo e urbanista francês Henri Lefébvre , “toda realidade dada no espaço se expõe e se explica por uma gênese no tempo”. Nesses termos, envereda-se numa análise do processo de constituição da cidade moderna, a qual resulta de uma tendência posta à transformação do lúdico, do local de encontro e da festa em “locus” de consumo, dado que vai levar à redefinição da centralidade no tempo com a transformação do centro das cidades brasileiras em “locus” privilegiado do consumo, principalmente das classes de menor poder aquisitivo da sociedade brasileira.
Esse processo denota uma nova articulação entre as diversas partes da cidade e o centro, que perde sua hegemonia em relação às áreas nobres e tem seu uso redefinido a partir da inserção desses “novos usuários”, que geram um conflito inter e intra usos. Estes conflitos serão os determinadores da intervenção do Estado, visando estender a todos os espaços controle e fiscalização, ao adotar sua racionalidade, a do idêntico e do repetitivo. Com isto, ele não vai tentar resolver os problemas existentes, mas estabelecer e consolidar o espaço da circulação através da lógica formalista e funcionalista de intervenção no espaço.
Segundo essa lógica acena-se para o comércio ambulante com a legalização e fixação de sua atividade. São feitos cadastramentos e destinados pontos próprios para o exercício do comércio ambulante na maior parte das cidades brasileiras, fato que leva à incorporação de parte substancial dos comerciantes ambulantes a esta política de fixação, inaugurando- se uma ambiguidade que merece ser tratada: a do comércio ambulante fixado.
Conformismo e resistência
Livro de 1994 da filósofa Marilena Chauí. Ela entende a cultura popular como algo que se realiza, inerente à cultura dominante. Seria, assim, uma mescla de conformismo e resistência. Conformismo pois está inserida na cultura dominante e, resistência pois é, de certa forma, o contrário da cultura dominante.
Modificações quantitativas geradoras e inter-relacionadas a modificações qualitativas que levaram à alteração no atributo de mobilidade do comércio ambulante, bem como, no consequente caráter ambíguo que este mo(vi) mento adquire, por poder, em dados momentos e contextos, embora móvel, fixar-se e, embora fixo, movimentar-se pelo centro. Tudo como resultado dos embates que se dão inter e intra usos e da resultante perspectiva de intervenção racionalizadora do Estado.
Mobilidade e ilegalidade
Resultado do processo de normatização do espaço público, o que a fixação do comércio ambulante representaria? O fim do comércio ambulante ou uma estratégia de resistência adotada pelos envolvidos nesta atividade, visando sua reprodução? A perda de mobilidade com a fixação de parte substancial do comércio ambulante pode servir de argumentação poderosa para anunciar o seu fim, ao significar a incorporação do ideal de dados comerciantes ambulantes em tornarem-se pequenos comerciantes. No entanto, existem outros que aceitam a fixação, mas, nos momentos próprios, deslocam parte de seus produtos para comercializar em pontos melhores, adotando uma perspectiva de aceitação da ordem estabelecida como estratégia capaz de garantir o deslocamento quando possível. Seria o que a filósofa Marilena Chaui denomina de conformismo e resistência , por ser mais interessante considerá-lo ambíguo “(...) capaz de conformismo ao resistir, capaz de resistência ao se conformar. Ambiguidade que o determina radicalmente como lógica e prática que se desenvolvem sob a dominação”. Ambiguidade, nestes termos, que não seria carente de um sentido rigoroso, mas constituída de dimensões simultâneas.
São estas dimensões simultâneas as determinadoras da necessidade de relativização de estudos que consideram o comércio ambulante como móvel e ilegal. O contexto atual impõe a necessidade de ruptura com estas formas rígidas de compreender o comércio ambulante no centro, ao se constatar a incorporação da política de fixação e o aceite do cadastramento como estratégias capazes de viabilizar sua reprodução.
*Eustógio Wanderley Correia Dantas é professor pós-graduado em Geografia pela UFC (Universidade Federal do Ceará) e bolsista de produtividade do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)
Revista Geografia
Um comentário:
Oi Eduardo!
Votei no seu Top Blog que não sei para que serve.
É verdade o que o texto diz. antigamente, em países como França, as pinturas e obras de arte feita por artesãos, eram o que predominava.
Sou contra esse tipo de comércio, principalmente agora, que os logistas pegam suas mercadorias e as põe nas mãos de camelôs.
Não compro e não estimulo, embora tenha consciência do alto nível de desemprego.
Mas por ter trabalhado por 22 anos em uma loja , gerenciando, vi o prejuízo e a ruína da loja que já timha mais de 100 anos de tradição.
Todos dizem que estou errada, não sei. Sou mulher, mas não sou consumista. E se o fosse não seria o preço que me atrairia, mas o ponto de partida do objeto a ser comercializado.
Se estou certa ou errada, não sei. Mas os princípios morais devem sempre prevalecer. Pelo menos para mim.
Bela postagem!
Parabéns
Beijos
Mirse
Postar um comentário