BOLÍVIA: LONGE DE DEUS, LONGE DO MAR
Palácio Quemado, em La Paz, sede do governo boliviano, de onde Evo Morales dita as regras do país em grave crise interna
Desde suas origens, a Bolívia é uma região espoliada, invadida, conquistada. Antes da chegada de Colombo, a Bolívia foi sede da civilização de Tiahuanaco, notável por sua construção civil. O Império Inca invadiu esse território, no século XV, matando e escravizando os habitantes. A região passou a ser chamada de Collasuyu.
Os espanhóis, assim que chegaram à América do Sul, no início do século XVI, trataram de esmagar o Império Inca e de se apropriar das minas de ouro e prata, muitas delas localizadas onde hoje é território boliviano. Como a Bolívia ficava longe do mar, os espanhóis decidiram submetê-la ao vice-reino do Peru, com sede em Lima, e mais tarde ao de La Plata, com sede em Buenos Aires. Os moradores da Bolívia, quíchuas e aimarás, foram submetidos à servidão, praticamente nos mesmos moldes de exploração praticados pelos antigos invasores incas.
No começo do século XIX, a América Espanhola foi sacudida por um processo de independência, liderado pela aristocracia fundiária branca, que morava no continente. Os criollos (os brancos latifundiários, nascidos no continente americano) eram relativamente raros na Bolívia. Por isso, a independência tardou: embora a luta tenha começado em 1809, no território boliviano, a região continuou sob domínio da Espanha até 1825. A Bolívia só deixou a situação de colônia graças aos soldados venezuelanos, peruanos e chilenos, liderados por Simón Bolívar, a quem o país deve o seu nome.
A HERANÇA DOS CAUDILHOS
Em princípio, a Bolívia estava unida ao Peru. Mas os quíchuas e aimarás não se submetiam às decisões do governo de Lima, nem tinham importância econômica para a jovem nação peruana.
Disso resulta a soberania boliviana, que ocorreu mais porque os peruanos não viam utilidade naquele território de índios ariscos e macambúzios, e menos por interesse daqueles que se tornavam totalmente independentes.
Quíchuas e aimarás não tinham motivos para estar juntos, exceto para serem explorados economicamente, passarem por uma severa opressão social, sofrerem humilhante dominação política. Os caudilhos - aristocratas criollos que chefiavam bandos de delinqüentes - se sucederam na presidência da Bolívia, vendendo partes do território do país e embolsando o dinheiro. A situação fica ainda mais trágica, nos anos seguintes, quando Chile e Peru iniciam a Guerra do Pacífico (1879 - 1881). A Bolívia ficou do lado do Peru: perdeu a guerra e sua saída para o mar.
Será que a Bolívia, com os seus quase dez milhões de habitantes e mais de um milhão de km2, é um país inviável? Será que essa colcha de retalhos de etnias quíchuas, aimarás e européias, com apliques de mestiços chollos, não possui uma referência unificadora, uma identidade nacional? Será que os bolivianos são incapazes de compreender que o todo antecede os interesses das partes e das facções?
Os descendentes de europeus, que habitam a media luna (os departamentos de Pando, Beni, Santa Cruz, Chuquisaca e Tarija), realizam dominação econômica, trazendo para dentro do território boliviano o colonialismo praticado, a partir de fora, pelas grandes potências econômicas mundiais. A media luna possui um terço da população boliviana, mas detém mais de dois terços do PIB do país. A prosperidade da media luna se dá às custas do altiplano. Os brancos "civilizados" dominam os índios "bárbaros".
SOCIALISTAS DE CLASSE MÉDIA
Exército chileno durante a Guerra do Pacífi co (1879-1884); o apoio da Bolívia ao Peru custou a única saída boliviana para o mar
A imbecil polarização entre civilizados e bárbaros alimenta uma nova (e igualmente equivocada) dinâmica: a do socialismo contra o capitalismo.
Os socialistas de classe média latino-americanos não conseguem perceber as limitações históricas e as insuficiências econômicas do nosso subcontinente. Aqui, o capitalismo ainda não chegou: nossos empresários são guiados por uma mentalidade feudal e nossos trabalhadores resignam-se a um comportamento servil.
O socialismo de classe média é pobre de teoria e cego para a realidade regional. Seu produto mais característico foi a revolução foquista e desenraizada, produzida por Ernesto Che Guevara. Não por acaso, o foquismo mostrou-se tragicamente equivocado em pleno território boliviano. O curioso é que essa teoria, mil vezes desmentida pelos fatos, continua a ser a orientação dominante das idéias e práticas da esquerda latino-americana. Alguns intelectuais pressupõem que os pobres precisam de quem os libertem, já que são incapazes de se libertarem a si próprios e de lutarem por seus interesses.
O socialismo de classe média latino-americano, na prática, amplia o confl ito de nacionalidades inconclusas, e instrumentalizam novas personificações da barbárie, como é o caso do socialismo cocaleiro de Evo Morales. O que se passa na Bolívia é a propagação do sentimento de revanche, como se fosse equivalente de socialismo e revolução. Não é. A vingança não liberta e não revoluciona. Não é possível refundar raças; não é possível apagar séculos de iniqüidades, usandose a borracha da insurgência dos oprimidos. O socialismo de classe média latino-americano nega a diversidade, que é própria do mundo contemporâneo e da democracia; não aceita a convivência entre os diferentes.
Ao se aproveitar, de maneira oportunista, dos confl itos sociais e étnicos bolivianos, o socialismo de classe média gerou, na Bolívia, um pesadelo chamado Evo Morales. Esse mestiço fortaleceu- se na economia marginal da coca e no atraso que ela representa. Evo utiliza-se do socialismo, em seu discurso, apenas para encobrir seu populismo em uma embalagem de luta de classes. Em sua ansiedade de aproveitar o momento promissor da economia boliviana, por conta do gás natural, Evo Morales agiu rápido demais e de maneira inábil: corre o risco de afundar o país em uma guerra civil.
A Bolívia não tem dinheiro para investir na extração de gás, pois não possui a tecnologia necessária. Precisa tratar bem os parceiros. Se isso não ocorrer, a Bolívia, que está longe do mar, ficará também longe de sua redenção econômica. E bem perto do inferno: da guerra fratricida.
Revista Leituras da Historia
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