sexta-feira, 31 de julho de 2009

O berço da humanidade - lago Turcana

Uma viagem ao árido lago Turcana, no noroeste do Quênia, é uma volta ao passado, quando nossos ancestrais saíram das árvores e se aventuraram pelo mundo

Texto: Airton Ortiz

Uma das paisagens mais espetaculares da África, o lago Turcana apresenta águas esverdeadas que contrastam com as ilhas vulcânicas no seu interior


Para onde caminha a humanidade, é uma incógnita. Mas de onde viemos, já sabemos: África. Para lá nos dirigimos, mais precisamente ao Quênia, uma viagem ao Jardim do Éden, o mítico lago Turcana, no noroeste do país, uma vasta região sem lei, infestada por refugiados sudaneses e etíopes em pé de guerra, salteadores armados com fuzis AK-47 e tribos em constante conflito.

Uma pequena parte das suas margens serviu de cenário para o filme O Jardineiro Fiel, de Fernando Meireles, que deu a Rachel Weisz o Oscar de melhor atriz coadjuvante em 2006. Algumas cenas aéreas do filme mostram a aridez e a violência do lugar. Tanto que a Organização das Nações Unidas, ONU, desaconselha os estrangeiros a cruzar pela região e os Estados Unidos proíbem seus cidadãos de entrarem no território turcana, especialmente na área próxima ao Sudão.

Uma vez por semana, os caminhões que saem de Nairóbi, no Quênia, e se dirigem a Adis-Adeba, capital da Etiópia, formam um longo comboio e seguem até a fronteira protegidos pelo Exército queniano. Mesmo assim, ataques acontecem. Quando eu estava preparando a expedição, ainda em Nairóbi, chegou a notícia de que rebeldes de duas tribos haviam atacado um comboio, retirado quatro pessoas de um caminhão e matado uma delas a pedradas. Segundo o código de honra local, quando os conflitos irrompem, o importante é lutar, qualquer que seja o saldo de mortes.

Diante disso, pela primeira vez em minhas expedições africanas, fui obrigado a contratar, além de um motorista e um cozinheiro, dois mercenários para me dar cobertura durante a viagem. Ex-guerrilheiros, eles mudaram de lado e agora ganham a vida vendendo proteção a quem puder pagar. É um negócio mais rentável do que a luta pela criação de um país independente entre o norte do Quênia e o sul da Etiópia. Armados com fuzis russos, um deles sempre viajava do lado de fora do carro, um aviso prévio de que, se fôssemos atacados, reagiríamos. Morreríamos todos, naturalmente, mas não sem lutar, como manda a tradição turcana.

A terra da mamba-negra

Aluguei material de acampamento e um possante jipe com tração nas quatro rodas, comprei mantimentos e lá fomos nós nessa bela e desafiadora jornada pela África selvagem, completamente fora dos tradicionais circuitos turísticos. O objetivo era conhecer a terra de nossos ancestrais. Se voltaríamos vivos para escrever o final dessa reportagem era mais uma das tantas incógnitas que acompanham uma aventura desse porte.

No caminho, passamos à direita do vulcão Longonot, costeamos lagos imensos de nomes estranhos e, pouco depois do meio-dia, ultrapassamos a linha do Equador. A paisagem, antes verde, estava sendo substituída por uma aridez de dar dó. Dormimos junto ao lago Baringo e, na manhã seguinte, continuamos o périplo. Praticamente despovoada de almas humanas, a vasta área em que estávamos entrando parecia nos ter arrancado do século 21 e jogado nas páginas dos extraordinários relatos dos primeiros exploradores africanos.

Pernoitamos ao lado de um pequeno rio, na cabeceira de um cânion ao pé do monte Ngiro. Embora estivéssemos em um dos lugares mais ermos da África, rodeado por montanhas cobertas de animais selvagens e tribos hostis, minha maior preocupação eram as cobras. No Quênia vive a mamba-negra, uma das peçonhentas mais venenosas do mundo, e nossas barracas tinham furos por todos os lados.

O Vale do Rift corta o Quênia de norte a sul. Esse desfiladeiro guarda os segredos da origem e dos ancestrais humanos

A duras penas nosso jipe foi vencendo uma área desértica, outrora submersa sob as águas do lago Turcana. A aridez do solo, os pequenos cones de vulcões extintos há milhões de anos e a ausência completa de qualquer tipo de vegetação foi minando nossas resistências psicológicas e emocionais. Quando veríamos algo menos árido?

Fiquei imaginando a reação de espanto e medo dos nossos ancestrais sempre que as florestas verdejantes, os lagos e os rios caudalosos da região fossem invadidos pela lava incandescente proveniente dos vulcões, esparramando-se por todos os lados, destruindo seu hábitat e rasgando uma nova geografia no mundo em que viviam.

De repente, vejo uma das paisagens mais espetaculares da África, as águas esverdeadas do lago Turcana realçadas pela terra acobreada das ilhas montanhosas em seu interior e pela negrura rude das pedras vulcânicas em suas margens. Não admira que, no passado, o lago Turcana fosse conhecido como Mar de Jade.

Com 250 quilômetros de extensão por 50 de largura, o maior lago do Quênia e o maior lago em deserto do mundo, tem seu extremo norte na Etiópia, alimentado pelo rio Omo. Sem escoadouro, seu nível depende da evaporação, o que faz dele também um dos mais alcalinos do mundo. Em suas margens vive uma superpopulação de crocodilos-do-nilo, uma ameaça a mais para as tribos ribeirinhas e os visitantes mais curiosos, além de centenas de espécies de aves, zebras, gazelas e seus caçadores, como leões e leopardos.

Ironicamente, um dos berços da humanidade é hoje um dos lugares mais áridos, despovoados e de difícil acesso do planeta. Mas na época em que viviam nossos ancestrais, o lago e seus arredores estavam repletos de vida animal e vegetal. Poderia ser considerada uma grande e movimentada encruzilhada de todos os habitantes da África. A abundância de animais e a provável origem do homem nas margens do lago resultou na suposição de que ali ficava o Jardim do Éden citado na Bíblia. As descrições do Velho Testamento coincidem com certas áreas do Quênia e, atualmente, vários textos arqueológicos e teológicos corroboram essa teoria.

Os sedimentos depositados ao longo dos milênios, provenientes da erosão das encostas vulcânicas, formaram um ambiente propício à conservação de despojos orgânicos. Por essa razão, ali foram realizadas as mais importantes descobertas de fósseis de diversos hominídeos – desde nossos primeiros antepassados até o homem moderno.

As tribos à margem do lago

Continuamos pela margem do Turcana, onde avistamos aqui e ali famílias nômades pastoreando suas cabras e conduzindo seus pertences no lombo de burros esqueléticos. Hostis, quando diminuímos a velocidade do jipe, eles nos jogaram pedras. Se vissem a câmera apontada, mostrariam machetes, arcos e flechas. Nosso motorista pediu para que não fossem fotografados, corríamos o risco de sermos emboscados mais adiante.

No meio da tarde chegamos a Loyangalani, o povoado onde vivem moradores de diversas tribos – turcana, el-molo, rendille e samburu. O calor armazenado pela topografia rochosa emanava em ondas quentes semelhantes às que irradiam de fornalhas siderúrgicas. Meu consolo é que, no passado distante, a vida na região não era tão difícil, coberta por florestas, cachoeiras e rios caudalosos.

Como os costumes entre os habitantes daquela região são diferentes, às vezes há motivo para confusão. Ngiri, o simpático rapaz que acompanhou nossas caminhadas pela aldeia e pelas margens do lago, servindo de intérprete, era rendille. Para casar com uma mulher da mesma tribo, precisaria dar ao pai da noiva oito vacas. Mas ele estava namorando uma moça turcana e precisaria dar ao futuro sogro um dote de 100 cabras, o que ele evidentemente não tinha. Lembrei que mais felizes eram os nossos ancestrais que não precisavam pagar nada para casar, bastava dar uma paulada na cabeça da fêmea e arrastá-la para o mato.

As últimas expedições promovidas pelo Museu Nacional do Quênia à bacia do Turcana mostraram que ali havia vestígios de hominídeos com cerca de 4 milhões de anos. Escavações na margem ocidental, mais ao norte de onde estávamos, trouxeram à tona fragmentos fósseis que estavam enterrados vários metros abaixo do solo, indicando serem de espécies mais antigas do que a camada de cinza vulcânica endurecida que cobria a colina há mais de 3,9 milhões de anos.

Em volta do lago, cabanas redondas e baixas, feitas com folha trançada de palmeira sobre um chão de seixos vulcânicos formavam a aldeia el-molo

No outro lado do lago, a sudoeste de Loyangalani, encontra-se Kanapoi, um dos principais sítios arqueológicos da região. Seus fósseis foram preservados por depósitos de um rio que, no passado, desaguava em um antigo lago bem maior do que o atual. O lago alcançou seu maior tamanho há cerca de 4,1 milhões de anos e minguou à medida que se enchia de sedimentos.

Todos os vestígios sugerem que os fósseis pertenciam a uma espécie bípede, que poderia ser classificada como hominídeo, pois o bipedalismo é a principal característica da linhagem humana. Esses ancestrais foram chamados de Australopithecus anamensis.

O anamensis vivia no campo, embora não se afastasse muito da mata ciliar, mantendo sua tradição de subir nas árvores. Essa postura ereta desencadeou mudanças profundas, pois ele era capaz de olhar ao longe e analisar o que estava vendo, controlando assim a presença de inimigos em seu território. Além disso, podia usar as mãos tanto para manipular objetos quanto para atirar pedras e assim afugentar os predadores. O tamanho do cérebro, em torno de 385 centímetros cúbicos, era semelhante ao dos macacos, embora o rosto fosse bem mais largo. Seus fósseis ainda incluíam vários ossos e estruturas das articulações típicas de animais que sobem em árvores.

Os australopitecos se ramificaram em diversas espécies anatomicamente distintas, uma delas dando origem ao Homo habilis, cujo fóssil mais antigo encontrado no lago Turcana foi estimado em 2,3 milhões de anos.

Os homens magros

Continuando para o norte, fomos visitar a aldeia Lyeni, onde vivem os pescadores el-molo, uma tribo que deve sua existência ao Turcana. Pescam e caçam crocodilos, tartarugas e mesmo hipopótamos. Nosso primeiro contato com esse povo resultou de uma carona dada a uma jovem mãe que encontramos caminhando em direção à aldeia. Ela era magérrima e sua altura a deixava ainda mais esguia, imagem ampliada pelas dezenas de colares amarelos e vermelhos que envolviam seu pescoço e as inúmeras fitinhas que adornavam seus braços.
Coberta apenas com uma canga verde estampada com enormes flores róseas, envolta na cintura à guisa de saia, e uma faixa rosada atravessada no dorso, a mulher deixava à mostra pequenos seios nos quais amamentava um garotinho de pouco mais de 1 ano.

Na aldeia, vimos homens e mulheres ainda mais magros, tão secos quanto a aridez do solo onde vivem, natureza humana e mineral camuflada em um mesmo ambiente. Suas peles negras reluzem ao sol equatorial, parecendo brotar da terra junto com o cascalho vulcânico acumulado nas margens do lago.

É um povo valente. Em pequenas canoas construídas com folhas de palmeiras, os guerreiros locais costumam perseguir hipopótamos usando apenas arpões. Quando conseguem matar um grande animal adquirem status na tribo, podendo se sentar ao lado dos anciãos durante os rituais. A região é extremamente desolada e seus moradores vivem em cabanas redondas e baixas, feitas com folha trançada de palmeira sobre um chão de seixos vulcânicos. Apesar da pobreza, são constantemente atacados por outras tribos, sobretudo turcana e samburu.

O Garoto de Turcana

O Homo ergaster – os primeiros hominídeos totalmente erectos da África, por isso também chamados de Homo erectus africano – surgiu há 1,75 milhão de anos, Supostamente pertence a uma ramificação genética bem-sucedida do Homo habilis, pois, além de manter as características desse ancestral, tornou-se uma espécie bípede bem mais ágil, principalmente por causa de sua postura.

Atraídos pelos peixes do lago, milhares de espécies de aves, como os flamingos, formam um espetáculo a mais da paisagem


Embora seu esqueleto fosse parecido com o do homem moderno em tamanho físico, seu cérebro media pouco mais da metade do nosso. Tinha crânio redondo, com ângulos pronunciados na parte de trás e salientes arcadas supraciliares na frente. Mesmo se alimentando de carne, seus dentes eram relativamente pequenos.

O exemplar mais conhecido dessa espécie é o Garoto de Turcana, a ossada de um menino que viveu há 1,6 milhão de anos nas margens do lago. Seu esqueleto é o melhor exemplo de que esses humanos primitivos eram dotados de estrutura óssea capaz de uma locomoção corporal moderna.

Muito magra e alta, a jovem mãe el-molo chamava a atenção por usar dezenas de colares e fitas sobre o seu corpo magro, demonstrando a pobreza e a aridez da região

O garoto morreu ainda na pré-adolescência, tinha entre 10 e 12 anos, com 1,68 metro. Supõe-se que, se tivesse vivido até a maturidade, teria alcançado 1,83 metro de altura, com seu cérebro chegando a 909 centímetros cúbicos. Tinha um nariz proeminente e membros longos e magros, semelhante aos dos povos que ainda hoje vivem nos climas quentes e áridos da África, como os rapazes que encontrei em Layeni.

Os jovens el-molo da aldeia, com seus braços longos, moviam-se com tal graça e beleza que pareciam flanar sobre o cascalho vulcânico, demonstrando a familiaridade milenar que tinham com o lugar. Capazes de sobreviver e se desenvolver com um mínimo de calorias, os atuais moradores das margens do Turcana não diferiam muito do seu famoso ancestral.

Com o Garoto de Turcana, a humanidade adquiriu condições de se sentir à vontade na savana aberta. Registros arqueológicos sugerem que a machadinha de mão, ferramenta simétrica cuidadosamente moldada em ambos os lados para ter a forma de uma gota, talhada a partir de grandes cernes de pedra, foi o primeiro instrumento a se adaptar a um molde mental existente na cabeça do seu fabricante há 1,5 milhão de anos.

A partir dessa época, ocorreram mudanças ambientais significativas na África. Esse período coincide com o desenvolvimento dos esqueletos mais parecidos com os dos homens atuais. O cérebro adquiriu maiores dimensões. Nossos ancestrais desenvolveram a indústria lítica, passaram a controlar o fogo, consumir carne com regularidade e organizar caçadas coletivas, primeiras manifestações genuinamente humanas.

A evolução acabou levando a nós aqui de volta nesse pedaço da África. Se para alguns somos o ápice da evolução humana, para outros podemos ser apenas a ponta de algum dos galhos da árvore da espécie. Nesse caso, seremos extintos tão logo outra espécie, mais bem adaptada a viver na Terra, ou nas estrelas, surja entre nós e nos suplante. Se eu precisasse escolher um lugar para sediar o surgimento desse novo animal, apostaria uma vez mais no lago Turcana, onde vivem tribos capazes de sobreviver ao colapso climático criado pelo homem moderno.

O explorador e fotógrafo Airton Ortiz é escritor profissional, com oito livros publicados, entre eles Na Trilha da Humanidade, da Editora Record

O chifre do rinoceronte

Situado no leste africano, o Quênia é banhado pelo Oceano Índico e cercado por uma vizinhança tensa, principalmente ao norte, onde fica o lago Turcana. Ali estão a Etiópia,
que no fim de 2006 mobilizou tropas para defender o governo transitório de outro país vizinho, a Somália, atacado por milícias islâmicas. Esta, por sua vez, tem o apoio da Eritréia e, segundo os Estados Unidos, da Al Qaeda. No norte, fica também o Sudão, há anos em guerra civil que opõe o governo muçulmano a guerrilheiros cristãos e animistas no sul do país, além de enfrentar uma seca prolongada responsável por 2 milhões de mortos nos últimos anos.
Refugiados de todas essas tragédias se misturam na região conhecida como “chifre de rinoceronte”, pela sua aparência no mapa. Ali também etnias rivais vivem em confronto. Todas essas facções estão envolvidas na luta pelo poder e não faltam armas. Elas acompanham os desertores que cruzam as fronteiras e se organizam em bandos violentos que aumentam a violência na região. Hoje, as desavenças não são mais protagonizadas com arcos, flechas e facões, mas com fuzis AK-47.

A origem do homem

Há 40 anos, se acreditava que a evolução humana seguia uma progressão linear, com um ancestral seguindo outro, até chegar ao homem moderno. Assim, nossos antepassados e dos macacos teriam dado origem aos australopitecos, que resultariam no Homo erectus, que por sua vez evoluiu para o Homo habilis e daí para o Homo sapiens. Hoje se sabe que a evolução foi bem mais complicada do que isso. Durante milhões de anos, diversas espécies de hominídeos – os ancestrais do homem – conviviam na África e disputavam espaço entre si. Fósseis de locais diferentes indicam que várias dessas espécies haviam se tornado bípedes e assim ganharam vantagem evolutiva à medida que o clima das savanas se tornava mais seco e as florestas diminuíam – o que ocorreu entre 6 e 4 milhões de anos atrás.
Boa parte desses fósseis foi encontrada no Grande Vale do Rift, um estreito e profundo rebaixamento da crosta terrestre iniciado há 35 milhões de anos com a separação das placas tectônicas africana e arábica, que corre no sentido Norte-Sul da África por mais de 6 mil quilômetros. Os sedimentos depositados ao longo do tempo, proveniente das margens desse vale, formaram um ambiente propício à conservação de fósseis. Por essa razão, ali foram feitas as mais importantes descobertas dos ancestrais humanos. Alguns dos mais significativos foram encontrados em torno do lago Turcana.



Revista Horizonte Geográfico

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