sábado, 25 de julho de 2009

Desglobalização


por Márcia Pinheiro
A recessão mundial ressuscita práticas protecionistas, como o Buy American, e fortalece comportamentos xenófobos

A crise mundial catalisou discursos e iniciativas que, há poucos anos, teriam sido tachados de retrógrados. O protecionismo comercial e financeiro, para a preservação de empregos em Estados Nacionais, voltou à pauta, com o inevitável fortalecimento de comportamentos xenófobos. Vozes a favor do protecionismo econômico são um forte subproduto dos tempos bicudos. Por pouco a heterodoxia não venceu o neoliberalismo nos Estados Unidos. No pacote que pode atingir 1 trilhão de dólares, aprovado pela Câmara dos Representantes na quarta-feira 28 de janeiro, há um artigo denominado Buy American (Compre produtos americanos), que causou rebuliço nos parceiros comerciais.

Na versão original, a medida previa que o aço e o minério de ferro usados nos projetos de infraestrutura fossem comprados apenas de empresas americanas. Mas houve uma reviravolta. Na quarta-feira 4, o Senado atenuou o artigo, ao aprovar uma emenda que deixa fora do protecionismo a União Européia e o Canadá, os que mais criticaram a iniciativa.

De acordo com The Wall Street Journal, os europeus tiveram a seu favor o lobby de grandes empresas, como Caterpillar e General Electric, que temiam retaliações quando fechassem contratos no Velho Continente. Antes de o Senado dar o seu veredicto, a Casa Branca havia anunciado que revisaria a cláusula de proteção. O ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, pedira a Obama coragem para usar a prerrogativa do veto. Em Davos, o ministro do Comércio da Índia, Kamal Nath, afirmara que o protecionismo “seria uma resposta de puro pânico”, um malefício tanto para os países desenvolvidos como para os em desenvolvimento.

Obama ficou temporariamente em maus lençóis. A iniciativa da Câmara teve claro apelo popular e a ideia não é nova. Desde 1999, o site buyamerican.com exorta os consumidores a adquirir apenas produtos americanos. E lista uma série de empresas “que mantêm a América trabalhando”. Além disso, foi uma bandeira da campanha presidencial do democrata e naturalmente contou com o apoio do Instituto Americano do Ferro e do Aço. Pesquisa realizada pela organização junto a mil cidadãos detectou que 86% apoiavam a iniciativa da Câmara, ou quase nove entre dez americanos.

Todo mundo entrou na discussão. Paul Krugman, economista ganhador do Nobel de 2008 e blogueiro de The New York Times, tem feito malabarismos para justificar a legitimidade de uma intervenção tão forte do Estado em assuntos da esfera privada, na contramão de um período em que o livre comércio foi a palavra de ordem.

“O argumento contra o protecionismo é que ele distorce o mercado: cada país produz bens com desvantagem comparativa e consome poucos produtos importados. Em condições normais, este é o resultado da história. Mas não estamos em condições normais. Estamos em meio a um colapso e todos os governos têm dificuldades de dar uma resposta eficaz”, diz um recente post em seu blog.

Como ninguém sabe o fundo do poço da recessão e do protecionismo, o Fundo Monetário Internacional (FMI) segue rebaixando as estimativas sobre o comércio mundial. De acordo com o World Economic Outlook, divulgado na quinta-feira 29 de janeiro, as trocas comerciais cairão 2,8% neste ano, uma revisão para baixo de 4,8 pontos porcentuais das estimativas de dezembro de 2008. As importações recuarão 3,1% nas economias desenvolvidas e 2,2% nos países emergentes.

Diversas organizações americanas encontraram eco para proteger o trabalhador local. No Congresso, o republicano Chuck Grassley sugeriu que o plano de demissão da Microsoft se concentrasse em trabalhadores estrangeiros. A Coalizão para o Futuro do Trabalhador Americano, uma espécie de nicho de grupos anti-imigração, está em plena campanha na tevê com um link direto entre o desemprego e a mão-de-obra estrangeira.

Corta para a Europa. Trabalhadores de vinte regiões na Grã-Bretanha promoveram uma série de manifestações com o slogan “Os trabalhadores britânicos primeiro”. Foi uma reação à contratação de algumas centenas de italianos e portugueses pela empresa Irem, para a construção de refinarias. A luta por empregos é apenas um dos itens da fatura da recessão, assim como o protecionismo comercial.

Xenofobia? Seumas Milne, articulista e editor do Guardian, discorda. Em texto publicado na sexta-feira 30 de janeiro, ele opina que “a disputa por empregos em uma recessão e a posição contrária dos trabalhadores à desregulamentação do mercado de trabalho são fruto do modelo neoliberal defendido por Gordon Brown há mais de uma década”.

Os protestos encurralaram o primeiro-ministro. Ele havia discursado em alto e bom som, em 2007: “Empregos britânicos para os britânicos”. Os tempos eram outros e o premier nem imaginava que suas palavras seriam usadas contra ele. No Fórum Econômico Mundial, Brown fez um alerta vigoroso sobre o que chamou de protecionismo financeiro, o terceiro elemento do tripé do desespero, ao lado do comercial e do mercado de trabalho. Ele até cunhou um neologismo para explicar a situação mundial: estaríamos assistindo a um processo de “desglobalização”.

O primeiro-ministro referiu-se principalmente aos países em desenvolvimento, que estariam se defrontando com bancos reticentes em manter as linhas de crédito. Mas a Grã-Bretanha também se vê sufocada e a grande questão, segundo o WSJ, é se o estatizado Royal Bank of Scotland e grandes instituições privadas, como o HSBC, terão fôlego para suprir a demanda por empréstimos. Em coro com seus colegas europeus, a chanceler alemã, Angela Merkel, manifestou-se contra a cláusula Buy American. “Devemos evitar o protecionismo. É a resposta errada” à crise econômica mundial, disse em entrevista coletiva na terça-feira 27 de janeiro.

O Institute of International Finance (IIF), associação dos maiores bancos mundiais, prevê o declínio do investimento estrangeiro em países emergentes, de 466 bilhões de dólares em 2008 para 165 bilhões neste ano. Em relação ao boom de 2007, quando as inversões somaram 929 bilhões de dólares, a retração será de 82%. Situação dramática vão vivenciar os emergentes europeus. Rússia e Ucrânia, grandes dependentes de capital externo, serão os países mais afetados, de acordo com o instituto.

Toda essa discussão deve embaralhar ainda mais a Rodada de Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC). O diretor-geral, Pascal Lamy, alertou, na segunda-feira 2, contra medidas protecionistas. Citou Mahatma Gandhi, que disse “olho por olho torna o mundo cego”. Lamy exortou os empresários a apoiar Doha, “que pode ser parte da solução para a crise econômica”.

Em remissão histórica, Lamy lembrou o Smoot and Hawley Act, de 1930, que elevou drasticamente as tarifas de importação dos Estados Unidos sobre mais de 20 mil produtos. “Seguiu-se então a Grande Depressão”. Ele teme que formas mais sofisticadas de taxar as importações levem o mundo ao mesmo caminho.

Não foram apenas os europeus e asiáticos que levantaram as vozes contra o Buy American. O jornal Times também carregou nas tintas e comparou a cláusula ao protecionismo dos anos 30, alcunhado de beggar-thy-neighbour (políticas nacionais que beneficiam o país em detrimento dos vizinhos). O argumento da colunista Rosemary Righter é bastante discutível.

Segundo ela, a globalização foi a principal responsável pela prosperidade do mundo atual. “Em um nível simplificado, as camisetas baratinhas de Bangladesh fazem sobrar mais dinheiro para comprarmos outros bens.” Difícil digerir uma visão tão parcial. Nem tanto à política arrasa-quarteirão dos parceiros comerciais, nem tanto à completa liberdade dos mercados.

Revista Carta Escola

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