quarta-feira, 15 de outubro de 2008

O sertão, 70 anos depois



por Cynara Menezes

Um cineasta e um fotógrafo revisitam o cenário de Graciliano Ramos

Como retirantes na contramão, um cineasta e um fotógrafo vão ao sertão nordestino rever a paisagem árida que inspirou duas criações do passado. Rodolfo Nanni, diretor bissexto, revisita um curta que ele mesmo fez em 1958 em O Retorno, documentário com estréia prevista para o fim de agosto. Evandro Teixeira segue as pistas deixadas por Graciliano Ramos ao escrever Vidas Secas, há 70 anos. O resultado sairá no fim do ano, em uma edição fotográfica do romance.
O mais curioso é que, em ambas as voltas, contam para trás os ponteiros, não para a frente. A rusticidade e a desolação dos tempos idos persistem no cenário. Sob encomenda da editora Record, Evandro vai embrenhar-se pelo sertão de Pernambuco e de Alagoas. Nanni esteve no agreste e no sertão pernambucanos. O que informam esses visitantes do futuro é que pouca coisa mudou por ali além das parabólicas sobre os telhados das casas de taipa, com as paredes caiadas de branco e chão de terra batida. Bom, teve também o Bolsa Família.
O documentário em preto-e-branco O Drama das Secas, apresentado e narrado por Josué de Castro, o autor do clássico Geografia da Fome, na versão original, tinha 17 minutos e se perdeu. Do pouco que restou, uma versão em vídeo que Nanni havia copiado de uma fita da cinemateca, também danificada, foram aproveitadas algumas cenas. O geógrafo e o cineasta se conheceram em Roma, em 1954. Nanni fora apresentar seu primeiro filme, O Saci, no Festival de Veneza, e ficou.

Castro era o presidente do Conselho da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) e convidou o diretor para fazer a parte brasileira de um filme sobre a falta de alimentos no mundo. “Imagina que Josué falava da fome na Espanha, na Itália. Lugares onde a gente pensa que a fome nunca existiu, enquanto no Nordeste a coisa continua feia...”, diz Nanni, de 83 anos.
O cineasta paulistano não conhecia o sertão nordestino até percorrê-lo num jipe cedido pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) ao lado do fotógrafo Ruy Santos. O lugar vivia uma seca enorme e os dois iam avistando pelo caminho, de Pernambuco até o sul do Ceará, centenas de retirantes, homens, velhos, mulheres, crianças, todos em busca de água.
“Isso não se vê, já não é tão seco”, conta. “Mas a família-símbolo de O Retorno tem onze filhos pequenos, a casa está caindo. Um tipo de coisa indesculpável que ainda existe. Um matuto, Antonio Magro, deu a receita: o Bolsa Família ajuda, mas é preciso financiamento para plantar.” Para exibir os contrastes, Nanni filmou em cor, com fotografia de Roberto Santos Filho, herdeiro do diretor do Cinema Novo.
Evandro Teixeira, um dos maiores fotógrafos brasileiros, optou por orientar sua percepção de Vidas Secas em preto-e-branco. “Nada de cor, o preto-e-branco dá mais dramaticidade ao sertão, é mais realista”, diz. O fotógrafo, baiano de Irajuba, não acha que vai deparar-se com grandes mudanças desde que fotografou Canudos ou mesmo de quando Graciliano Ramos publicou seu romance. Só lamenta, de certa forma, o sumiço dos retirantes. “O caminhão pau-de-arara era triste e lindo, visualmente fotogênico.”
A região que mais inspirou Graciliano ao escrever o livro foi a de Buíque, em Pernambuco, cidade onde passou a infância. Vidas Secas foi publicado primeiro em capítulos, depois reunidos em um único volume, em 1938. “É por isso que, embora tenha seqüência temporal, é definido como um romance desmontável, que pode ser lido a partir do capítulo que se desejar”, explica o professor de Teoria Literária da UFMG, Wander Melo Miranda, que organiza a reedição das obras do autor alagoano para a Record. A editora renovou os direitos de publicação dos livros de Graciliano, e planeja comemorar com pompa o 70º aniversário de Vidas Secas em agosto, na Bienal do Livro de São Paulo.
O primeiro conto do que seria o romance é justamente o que fala da cadelinha Baleia, um dos personagens mais emblemáticos do livro. Consta que o escritor concebeu Baleia à imagem e semelhança de uma cachorra que tinha visto ser sacrificada quando menino, em Buíque. Graciliano vislumbrou então o céu dos cães, cheio de preás. “Fala-se na humanização de Baleia e na animalização dos outros personagens, mas não vejo assim”, diz Miranda. “Eles não falam, mas têm outro código de entendimento. Todo gesto em Vidas Secas é muito medido, tem muita economia. Até de saliva, num lugar onde falta água.”

Para o professor mineiro, autor de dois livros sobre Graciliano, a interioridade dos personagens garantiu longevidade à obra, que não ficou datada como outros representantes da chamada literatura regionalista, caso de O Quinze, de Rachel de Queiroz. “Graciliano demonstra compaixão pelo ser humano, o que é atualíssimo. O retirante de hoje é qualquer despossuído que o progresso foi abandonando à própria sorte.”
Os romances de Graciliano Ramos sobrevivem ao tempo e às adaptações para outros meios, como o cinema. Vidas Secas, o filme que Nelson Pereira dos Santos lançou em 1963, é considerado uma obra-prima, uma das raras versões literárias para o cinema de inteira felicidade na transposição de personagens, trama e paisagem. Memórias do Cárcere (1984), outro de Nelson Pereira, e São Bernardo (1971), de Leon Hirszman, também foram muito bem tratados pela crítica.
A própria mescla texto-foto que Teixeira vai fazer com Vidas Secas agora foi experimentada em 2006 pelo jornalista Audálio Dantas, conterrâneo do escritor, e pelo fotógrafo cearense Tiago Santana. O projeto, mais amplo, começou com uma exposição e se transformou no livro O Chão de Graciliano. Com fotos de Santana e texto de Dantas, percorria todos os áridos rincões que fertilizaram a inventiva do velho Graça. Tudo continuava quase igual.
“Sinceramente, quanto mais entramos no sertão mais profundo, mais temos a sensação de que não mudou nada”, conta Santana, para quem a fotografia combina muito com o universo de Graciliano. “Ele era sucinto, preciso, dizia que ‘a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer’. Ou seja, como a foto, é uma síntese. Às vezes é mais forte mostrar com uma imagem só do que com dez.”
Se nos cafundós pouco mudou, a grande transformação notada pelos enviados às pequenas cidades do Semi-Árido foi trazida pela tevê. Quando esteve na região para fazer o livro sobre Canudos, Teixeira conta ter se espantado ao ver as meninas sertanejas trajadas como as mocinhas da novela das 7 global. “Era o mesmo penteado, a mesma roupa, iguaizinhas...”, diz. O cineasta Nanni relembra a adolescente sertaneja a quem perguntou qual era o seu sonho na vida. “Meu sonho é ser modelo”, respondeu a menina, magricela que só ela, mas não por causa da seca.

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