quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Agenda Doha: o que esteve em jogo na Genebra de 2008




por Carlos Nogueira da Costa Júnior

As grandes formas de contato entre povos de diferentes origens foram motivadas, na longa duração histórica, sob duas formas básicas: a divergência de interesses e a convergência de objetivos. A primeira forma, por conseguinte, gera controvérsias que são decididas sob dois modos, quais sejam, a solução pacífica - negociada ou forçada pela dissuasão - e a medida bélica, na qual o resultado é imputado por uma parte, compulsoriamente, à outra. A segunda motivação que leva ao estabelecimento de contato é a convergência de interesses. Nesse caso, um modo comum é a troca de bens e serviços para satisfação de necessidades mútuas. Trata-se, destarte, do próprio ato de comércio. Segundo os teóricos do sistema-mundo, como Arrighi, Braudel e Wallerstein, as relações comerciais engendraram a internacionalização do capitalismo e tornaram possível o processo contínuo de globalização, entendido aqui como a compressão do espaço-tempo.
Após a II Guerra Mundial, visto pela historiografia das Relações Internacionais como o mais profundo e nefasto contato entre Estados, o do tipo bélico motivado pela dissonância de interesses entre os atores internacionais, deu-se início a uma reestruturação do comércio internacional. Lideradas pela potência norte-americana, os acordos de Bretton Woods, assinados em New Hampshire no ano de 1944, deram nascimento ao tripé da economia mundial contemporânea. Sob tal ocasião, foram criados três regimes internacionais que tinham como objetivo ulterior a consagração e manutenção do equilíbrio econômico, como meio para satisfazer as necessidades humanas e, portanto, defender a paz internacional. Salienta-se que esta é vista, pragmaticamente, não como um cenário impérvio aos meandros dos conflitos e divergências próprias das relações sociais, mas como um ambiente ausente de soluções bélicas aplicadas às controvérsias.
Esse tripé fora constituído, em um primeiro momento, por três instituições, das quais uma sofreu reveses e mudanças ao longo de sua atuação. O primeiro regime é o Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento - BIRD, criado primeiramente para auxiliar a reconstrução econômica de países da Europa Ocidental, inserido na estratégia norte-americana de contenção do avanço do socialismo real sob espaços geopolíticos. Ao longo de seu exercício, o BIRD teve seu escopo de atuação ampliado para países em desenvolvimento e subdesenvolvidos, ganhando novas instituições e tornando-se o atual Banco Mundial. O segundo regime gestado em Bretton Woods é o Fundo Monetário Internacional, cujo objetivo é a manutenção do equilíbrio de reservas monetárias no sistema financeiro internacional, por meio do saneamento de desequilíbrios no balanço de pagamentos dos Estados-membros, evitando imbalances e desvalorizações cambiais artificiais, as quais poderiam alterar o fluxo normal do comércio. Por fim, uma vez acordado o sistema que auxilia economias em crise e outro sistema que protege o equilíbrio no sistema financeiro internacional, restava, ao cabo, a criação de um sistema para o comércio internacional. Esses três elementos - contas nacionais, desenvolvimento econômico e comércio - são interpretados, pela historiografia européia e americana, como fatores relevantes que, quando mal gerenciados, auxiliaram a condução das relações internacionais para o cume do conflito bélico, traduzido nos flagelos da I e II Guerras Mundiais.
Todavia, o regime de comércio envolvia, desde sua origem, ganhos, perdas e interesses demasiados estratégicos para a política e economia doméstica, engendrando, assim, uma arena de difícil diálogo, onde divergências tendiam superar convergências. Tanto é assim, que o projeto da Organização Internacional do Comércio - OIC, constante na Carta de Havana de 1948, não vingou, não sendo sequer submetido ao Congresso dos Estados Unidos, malgrado os esforços desprendidos ao longo das negociações. O que restou e prevaleceu para o comércio internacional, como arcabouço normativo e guia das expectativas e perspectivas, foi o Acordo Geral de Tarifas e Comércio, mais conhecido por sua sigla em inglês, GATT (General Agreement on Trade and Tariffs). O GATT foi assinado em 1947, e foi desenhado inicialmente para orientar e auxiliar a formação da OIC. O sistema GATT-47 é menos ambicioso que o projeto da OIC, prevendo a queda de tarifas comerciais por meio de rodadas de negociação entre as partes, e seu meio de solução de controvérsias era flexível e lacunoso o suficiente para que não exercesse efeitos na economia real. Estava assim composto o tripé organizacional para a economia mundial de 1944 a 1994.
Entre 1947 e 1994, ocorreram oito rodadas de negociação no âmbito do GATT, das quais as cinco primeiras - Genebra, 1947; Annecy, 1949; Torquay, 1950-51; Genebra, 1055-56; Dillon, 1960-61 - versaram, tão somente, sobre a redução de tetos tarifários objetivando o alcance do livre comércio. As rodadas seguintes trataram ainda de tarifas, contudo, incluíram temas novos em suas agendas. A sexta rodada de negociação, Kennedy (1964-67), tratou de medidas antidumping, e a sétima rodada, Tóquio (1973-79), regulamentou sobre barreiras não-tarifárias (como exigências sanitárias e fitossanitárias) e cláusula de habilitação (que reconhecia o direito de países em desenvolvimento ao uso do Sistema Geral de Preferências).
A oitava rodada de negociação, a Uruguai (1986-94), foi a mais longa, considerando, além dos pontos acima aventados, aspectos de propriedade intelectual, agricultura, serviços, medidas de investimento e, o mais importante, um novo regime para o comércio internacional. Em Marrakesh, 1994, foi assinada a carta constitucional da Organização Mundial do Comércio - OMC. A OMC é um avanço institucional inegável quando comparado à estrutura jurídica do regime de 1947. Além de incluir os novos temas, possui secretariado, servidores, Diretor-Geral, que atualmente é o francês Pascal Lamy, e um Órgão de Solução de Controvérsias, que reproduz um sistema completo de julgamento, com instituição de panels, convocação das partes, produção da defesa e de pareceres, julgamento da causa e apelação da mesma, cuja decisão final é definitiva, irrecorrível e inapelável. Trata-se, destarte, de um regime mais complexo e adequado às novas demandas comerciais, informando aos registros históricos que o projeto da OIC, malgrado seu fracasso em 1948, revive hodiernamente sob um novo cenário e sigla.
Após o início de seus trabalhos, em 1º de janeiro de 1995, a OMC realizou quatro Conferências Ministeriais: Cingapura (1996), Genebra (1998), Seattle (1999), Doha (2001). Nessas conferências, reúnem-se chefes de Estado e ministros de todos os Estados-membros para a negociação comercial.
A quinta rodada de negociações, lançada na capital de Qatar, Doha, em 2001, tem como principal objetivo a liberalização comercial para o desenvolvimento dos Estados, mormente daqueles que não pertence ao grupo dos países já considerados desenvolvidos. Nessa ocasião, foi lançada a Agenda Doha para o Desenvolvimento, que possui metas de liberalização com prazo de conclusão para 2005, o que não foi alcançado. O que diferencia esta rodada das demais é o enfoque específico para países em desenvolvimento e subdesenvolvidos. Frisa-se, a esse respeito, que em 51 anos de regime de comércio, é a primeira vez que uma rodada é estipulada para a geração sustentável e garantida de renda em países menos desenvolvidos; daí sua singular e ímpar relevância.
Ao longo da Rodada Doha, foram realizados quatro conferências ministeriais: Cancún, em 2003; Genebra, em 2004; Hong Kong, em 2005; e Genebra, em 2008. Dentre essas reuniões, a que se destacou foi aquela realizada no México, uma vez que deu nascimento a uma nova geopolítica comercial, caracterizada pela bipolaridade em torno dos temas agrícolas. Em Cancún, as delegações entraram em impasse quanto à liberalização do setor agrícola, na ocasião, especificamente sobre o mercado de algodão. Também, o diálogo travou quanto aos temas de Singapura (medidas de investimento, política de concorrência, compras governamentais, medidas de simplificação das trocas comerciais).

O Impasse de Doha

Malgrado o fato de que é a primeira rodada no âmbito do GATT/OMC que possui enfoque no desenvolvimento econômico e social de países não-desenvolvidos, a rodada de Doha chama mais atenção pelo impasse nas negociações comerciais.
Tal impasse só é compreensível se se levar em consideração o atual estágio de desenvolvimento econômico dos Estados-membros envolvidos na negociação, de tal modo que essa questão reflete a própria estrutura hodierna do sistema capitalista e a economia política doméstica dos Estados.
Nos eventos de Cancún, dois grandes blocos destacam-se na Rodada Doha, formando uma espécie de bipolaridade comercial na arena agrícola, embora na OMC existam várias coalizões formalizadas para o setor primário.
De um lado, com nascedouro na reunião de Cancún, em 2003, está o G-20, grupo esse que conta atualmente com 21 países, e é liderado pelo Brasil, Índia e China, considerados potências emergentes. Seu nascimento tem como justificativa a formação de uma coalizão coesa e uníssona para barganhar maiores benefícios comerciais ao tempo da contemporânea rodada de negociações comerciais. Essa barganha, desenhada pelo G-20, figura na estratégia de ceder maior liberalização comercial para os setores de manufaturados e serviços, em troca de maior liberalização para o setor agropecuário.
O outro grupo possui como atores proeminentes os Estados Unidos, a União Européia e o Japão, que defendem maior abertura de mercados para os setores secundário e terciário, e, ao contrário dos países-membros do G-20, possuem elevadas barreiras tarifárias e não-tarifárias para importação de produtos agropecuários. Ademais, esse bloco também possui como perfil comum uma acentuada política de subvenção à sua produção agrícola doméstica, destacando-se os subsídios norte-americanos e a Política Agrícola Comum da União Européia, cujo maior defensor é o governo Sarkozy.
Visto a distribuição dos grandes atores da Rodada Doha, faz-se necessário entender o porquê de tal divisão política internacional.
Os subsídios, tanto no caso norte-americano como no europeu, visam à defesa da segurança alimentar, mas também da defesa da ordem interna. Nunca a dependência total de Estado em relação ao cenário externo gerou externalidades positivas sustentáveis. O Brasil sustentou-se das rendas geradas pelas exportações do café até a crise de 1929, quando, após os prejuízos da queda do preço do café no mercado mundial e a conseqüente falência de alguns produtores, inicia-se um movimento político em direção à diversificação da pauta de exportação, orientado por um programa de investimentos concentrado no desenvolvimento industrial do setor de bens de capital.
Considerados assim, os subsídios do Japão, do bloco europeu e dos Estados Unidos exercem dois efeitos fundamentais para a ordem política nessas regiões. Primeiramente, os subsídios ao setor agropecuário satisfazem um grupo de pressão política relevante, tanto nos países-membros da União Européia como nas potências japonesa e norte-americana. Segundo, os investimentos no setor primário retêm o fluxo emigratório do campo para as cidades. Esse aspecto ganha notoriedade quando se insere na análise a atual situação demográfica na região européia.
A União Européia possui instrumentos de convergência macroeconômica para Estados-membros menos prósperos, com o objetivo de manter o equilíbrio econômico do bloco, a estabilidade política entre as partes e evitar intensos fluxos migratórios de regiões escassas em oportunidade para regiões mais promissoras. Frisa-se, como exemplo, o fluxo de poloneses para a França, haja vista que na Polônia ainda restam insuficientes os investimentos para atração e retenção da mão-de-obra polonesa.
Ademais, tal fluxo gera atualmente problemas políticos para o bloco europeu, denotado no inchaço das cidades e no processo de deseconomia urbana. Essa controvérsia pode ser sanada por meio de uma redistribuição de investimentos na União Européia, e pelo enrijecimento das leis que tratam da movimentação de capital humano. Quanto a este último tópico, a reforma das leis de imigração da União Européia, ocorrida em 2008, foi a resposta mais rápida, legitimada e menos custosa do ponto de vista político, evitando regulamentar a liberdade de deslocamento dos europeus, em detrimento dos imigrantes.
Nos Estados Unidos, a situação não é no todo diferente, todavia, a questão da imigração está mais atrelada aos problemas econômicos do que à controvérsia da urbanização acentuada.
Uma vez apresentadas as partes, é possível compreender o que ocorreu no último encontro da Agenda Doha, em Genebra. Nesta reunião, os grandes temas em pauta foram justamente as demandas dos dois blocos que lideram o processo negociador, isto é, abertura de mercados dos países desenvolvidos para os produtos agropecuários dos países menos desenvolvidos, e por complementação da barganha, a abertura de mercado de Estados não desenvolvidos para exportações de manufaturados e serviços de países desenvolvidos.
Desde Cancún, em 2003, o cenário usual das negociações da agenda Doha refletia essa bipolaridade comercial, entre o G-20 de um lado e Estados Unidos, União Européia e Japão do outro. Desse status quo foram gerados avanços e retrocessos, que na chegada do último encontro em Genebra encerraram por, de fato, diminuir o protecionismo nos três setores econômicos. Houve uma desgravação tarifária para manufaturados e serviços e queda nos tetos de subsídios agropecuários. No início das negociações, o principal tema restava nos subsídios concedidos ao setor primário. Dada essa ordem comercial internacional, houve uma intimorata inflexão, na qual um determinado fator teria irrompido em Genebra para quebrar a coalizão do G-20, em princípio percebido como um grupo impérvio às instabilidades e uníssono em suas demandas.
Tal fator emergiu no tema das salvaguardas. No que tange os processos de defesa comercial, o instituto da salvaguarda visa à proteção para indústrias nacionais contra surtos imprevisíveis de importações, permitindo, para tal, que o Estado alvejado pela alta acentuada de importações aumente os direitos aduaneiros ou as restrições quantitativas. Ora, um surto de importações só pode ocorrer por três variáveis: forte valorização da taxa de câmbio do Estado importador; queda vigorosa do preço internacional do produto importado, em razão de aumento de competitividade e melhoria tecnológica da produção; ou por quedas em barreiras protecionistas. Visto assim, é possível explicar, tendo como moldura a questão das salvaguardas, por que o Brasil dissociou-se dos líderes do G-20, como Índia e China, e aquiesceu em torno de um acordo comercial com os Estados Unidos, União Européia e Japão.
No encontro de Genebra, em julho de 2008, um grupo de sete atores destacou-se quanto à questão das salvaguardas: Estados Unidos, União Européia, Japão, Austrália, Brasil, China e Índia. Esse G-7 dividiu-se em torno do princípio de ativação do mecanismo especial de salvaguardas (em inglês - SSM, ou seja, special safeguard mechanism), o que explica a dissensão entre Brasil e o G-20.
Países como Austrália, Brasil, Estados Unidos, Japão e o bloco europeu entendem que o SSM é um instrumento a ser utilizado temporariamente para alcançar a liberalização, limitado no tempo (período da medida) e no espaço (país), sendo ativado somente quando há um surto imprevisível e incomum nas importações agrícolas; por conseguinte, não pode ser invocado quando existem flutuações normais no preço ou na expansão do comércio internacional. Ainda, a salvaguarda não pode implicar em aumento de tarifas de importação acima dos tetos acordados em negociações anteriores a Doha. Destarte, é visto como um meio de garantir o caminho à liberalização reduzindo custos políticos em países menos competitivos no setor agrícola.
Na vertente contrariante, países como Índia e China defendem que o SSM deve ser invocado de forma livre e menos burocrática - não precisando, por exemplo, provar nexo causal entre o prejuízo do setor agrícola nacional e o surto de importações -, e que a salvaguarda pode implicar aumento de tarifas de importação superior aos tetos pré-Doha.
É nesse aspecto que o atual impasse de Doha reflete a geografia e a economia política dos atores envolvidos, como afirmado ao início desta análise. Negociadores que desejam uso livre do SSM o fazem porque percebem um potencial considerável de danos nacionais com a rápida liberalização comercial no setor agrícola, utilizando o mecanismo como meio de ganhar margem para adaptarem-se ao nível de competitividade internacional; caso esse dos chineses e indianos.
Segundo dados do Banco Mundial, de 2006, o PIB da China alcançou US$2,644 trilhões, sendo que desse total, o PIB agrícola equivalia a 11,7%. A Índia, nesse mesmo ano, fechou o período com um PIB de US$991,8 bilhões, dos quais 17,5% correspondem à participação do setor agrícola. Outro dado relevante, neste caso quanto à questão demográfica, demonstra que China e Índia são países predominantemente de populações rurais. Em 2005, a população rural chinesa equivalia a 59,5% de sua população total de 1,312 bilhão de habitantes. Por sua vez, a Índia possui uma população rural igual a 71,3% de sua população total de 1,110 bilhão de habitantes.
Ora, se a participação do setor agrícola é considerável na produção de riqueza na China e na Índia, e se a população rural nesses dois países é maioria da população total, dois corolários são extraídos: produção agrícola de baixa competitividade e pressão social. Considerando que a produção agrícola nesses dois países ainda depende em demasiado da mão-de-obra humana, sendo pouco intensivo em capital, e originário de produção familial, um surto nas importações de produtos agrícolas - em razão de liberalização comercial para concorrentes mais competitivos - pode ocasionar sérios danos sociais para essas comunidades, e apontar para uma questão fundiária de proporções desestabilizantes para a política doméstica da China e da Índia, haja vista o tamanho de suas populações rurais.
Ao contrário desse cenário, estão os países restantes desse G-7, que já possuem uma produção agrícola competitiva e automatizada, e detêm um número pequeno de população rural em relação às suas populações totais, não implicando um setor social ameaçador à estabilidade e à ordem política doméstica. No ano de 2005, segundo dados do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, a parcela da população rural em relação à população total de Austrália, Brasil, Estados Unidos, Japão e União Européia, era de, respectivamente, 7,3%, 15,8%, 19,2%, 34,3% e 26,7%. Trata-se, portanto, de regiões predominantemente urbanizadas, e visto que a parcela da população rural é pequena, a produção agrícola desses espaços geográficos é intensiva em capital. Além disso, são países que apresentam redes de segurança social, tanto na forma de subsídios como na forma de programas de assistência social, como o Bolsa Família do Brasil.
Quanto à participação da produção agrícola no produto interno bruto, Austrália, Brasil, Estados Unidos, Japão e União Européia apresentaram, em 2006, índices de, respectivamente, 3,1%, 5,1%, 1,2%, 1,5% e 1,8%. Destarte, são regiões economicamente caracterizadas pela predominância dos setores industriais e de serviços. Destarte, a vulnerabilidade desses países quanto à abertura comercial no setor agropecuário é menor que aquela verificada na Índia e China, pois nesse o PIB é menor em relação à população rural dependente da economia do campo.
Dessa forma, só é compreensível a divisão, na questão do SSM, entre China e Índia de um lado, e Austrália, Brasil, Estados Unidos, Japão e União Européia do outro, porque existem dois tipos específicos de estruturas de produção agrícola. Os dois primeiros atores possuem produção agrícola pouco competitiva, com grande participação de capital humano, alta dependência social da produção familial, e contingente elevado de seus habitantes dependendo do campo. Inversamente, os quatros atores seguintes detêm uma agroindústria, intensiva em capital, com competitividade e baixo custo de produção, além de pequenas parcelas da população dependendo da economia rural. Daí, concluí-se que coalizões transitam e se formam em razão de convergências de interesses, que são reflexos das demandas das estruturas agrícolas dos países. Isso também reflete a heterogeneidade do G-20, que reúne países de diferenciados níveis de industrialização do setor agrícola. Posto que os Estados-membros desse grupo desejam acesso de mercado para suas produções agrícolas, suas economias possuem graus dissonantes de competitividade, que implicam diferenciados potenciais e intensidades de ganhos e perdas.
Tem-se, conseqüentemente, por que o Brasil firmou uma convergência em Genebra dissonante dos líderes do G-20, especificamente Índia e China. Com uma liberalização mais profunda do setor agrícola no mercado internacional, o Brasil teria vantagens competitivas para se mover nas transações comerciais, enquanto que China e Índia teriam maiores custos sociais, econômicos e políticos para adaptar sua agricultura à concorrência externa, transitando sua produção para métodos de automação e, por conseguinte, gerando desemprego de massas populacionais, que para não se tornarem uma lide política, deveriam possuir redes de segurança social que as inserisse em outros setores econômicos.

A Posição Brasileira

Além do fator estrutural, ou seja, da influência dos modos de produção e da população rural dos países aqui enumerados, há de se levar em consideração o papel do homem de Estado e sua relação com os setores privados nacionais, tratando-se, portanto, da própria economia política interna singular de cada Estado.
No caso brasileiro, dois temas são relevantes no programa de política externa da administração Lula. Primeiramente, o empenho em conquistar uma cadeira permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, no qual se tem como meios: o papel de liderança regional do Brasil na América do Sul (ao promover a estabilidade política na região); a proposição da formação de um Conselho de Defesa da América do Sul - projeto conjunto do Ministro da Defesa, Nelson Jobim, em parceria com o Itamaraty; a participação brasileira na intervenção no Haiti; e uso de contatos diplomáticos em busca de apoio a tal candidatura, como o diálogo do G-4 (Brasil, Índia, Alemanha e Japão).
O outro ápice da política externa brasileira está em conseguir um acordo comercial benéfico para a economia brasileira no âmbito da OMC. Neste caso específico, por duas razões emerge a figura do Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. O Ministro Amorim possui um histórico singular em negociações comerciais, o que explica em parte sua indicação para a pasta das relações exteriores. Também, o próprio Ministro tomou para si o tema das negociações na OMC como uma das prioridades da diplomacia brasileira, na percepção de que um sucesso de Doha poderia trazer para o Brasil extensas externalidades positivas, gerando maior nível de renda e emprego nos três setores econômicos. Essa percepção da diplomacia brasileira é verificada na não aceitação do Brasil de um fracasso da Agenda Doha. Após o último encontro em Genebra, tanto o presidente Luís Inácio Lula da Silva, como seu ministro Amorim, acionaram contatos internacionais para restabelecer o diálogo entre as partes, convictos na realização dessa possibilidade.
Dado a pressão do setor agropecuário brasileiro, para que o governo defenda a produção brasileira e consiga abertura de mercados, mormente o norte-americano e o europeu, e visto o empenho e prioridade dispensados pela chancelaria brasileira, fechar um acordo em Genebra poderia exercer um impacto político positivo, ainda mais em meio a um cenário de crescente inflação, por causa do preço dos alimentos. Inclusive, este foi um dos argumentos da política externa brasileira para diminuir o protecionismo internacional, pois que a incidência de tarifas e quotas encarece os alimentos transacionados no mercado externo.
Por tais razões, a posição brasileira foi dissonante do G-20, e não deixou de gerar alguns benefícios temporários para o Brasil (como a queda dos subsídios agrícolas norte-americanos de um teto inicial de US$17 bilhões para um de US$14,5, malgrado a demanda da Índia e China por um teto de US$13 bilhões; outro ponto da discórdia), não obstante não seja ainda a liberalização almejada pela agroindústria brasileira.
Em entrevista coletiva em Genebra, o Ministro Celso Amorim resumiu de forma clarividente que o acordo aquiescido pelo Brasil era: “o melhor que se pode ter pelo preço que se pode pagar. É tudo o que a gente queria? Não é. É o ideal? Não é. Mas isso é uma negociação. Não estamos fazendo um mau acordo, na minha opinião. Pelo que eu entendo, em consultas com nossos exportadores, os tetos [para os cortes de tarifas de exportação] todos são satisfatórios para permitir que nossas exportações ocorram.”
Há de realizar aqui um esclarecimento. Segundo o Diretor-Geral da OMC, Pascal Lamy, com o impasse na reunião de Genebra, os países-membros teriam deixado escapar um pacote de ganhos de US$130 bilhões em redução de tarifas agrícolas e industriais ao longo de dez anos. Desse total, US$35 bilhões seriam ganhos com reduções tarifárias no comércio agrícola, e os US$95 bilhões restantes seriam gerados com reduções de direitos nas trocas de manufaturados e serviços.
Desses números, o Brasil estaria perdendo US$4 bilhões ao ano com a não conclusão de Doha, sendo um dos países-membros que mais perderiam com o contínuo protecionismo internacional nesse setor. Ora, devem-se dissociar as perdas econômicas das sociais. O Brasil é um dos líderes no comércio agropecuário, destacando-se no comércio de laranja, milho, soja, algodão, etanol - proveniente da cana-de-açúcar -, carne bovina, suína e na avicultura. Contudo, a possível perda desses benefícios, caso a Rodada Doha permaneça inconclusa, impõe uma demanda dos produtores do setor agropecuário por uma reação do governo brasileiro, o que não chega a se tornar uma questão social ampla, a ponto de gerar instabilidade política doméstica, dada a pequena população rural. Ainda, considerando o nível de competitividade da produção brasileira, é possível no médio prazo responder à problemática do protecionismo no mercado internacional. Conseqüentemente, o Brasil perde economicamente com o impasse em Doha, mas possui uma estrutura produtiva com margem de adaptação à concorrência internacional, o que mitiga o protecionismo e elimina possibilidade de convulsões sociais no campo. Por outro lado, países como Índia e China possuem uma estrutura agrária menos competitiva, e consideráveis contingentes populacionais que dependem da economia rural.
Por fim, resta um terceiro e último aspecto para tornar essa análise lógica e satisfatória: verificar o impacto para a economia brasileira, dada a discórdia em Genebra.

Reação à paralisia de Doha

As negociações comerciais no âmbito das Conferências Ministeriais da OMC ficarão temporariamente inertes para o comércio exterior brasileiro, por quatro razões. Primeiramente, a presidência do Conselho da União Européia passará para a França - cuja administração de Sarkozy enviesa pela assumida proteção do setor agrícola europeu, e aprofundamento da Política Agrícola Comum, sob as alegações da segurança alimentar e de desenvolver o campo, evitando fluxos migratórios par áreas urbanas já saturadas de imigrantes europeus e estrangeiros, como a própria Paris.
Outro aspecto refere-se às eleições norte-americanas, que no final de 2008 e início de 2009 determinará um novo presidente norte-americano, o qual estará iniciando seus trabalhos, e só definirá uma base clara e sustentada de política comercial após avaliar os reveses da economia doméstica - mediante as externalidades negativas do mercado imobiliário - e após auscultar os setores comerciais e seu peso, a favor ou contra a aprovação de ações e projetos do Executivo perante o processo legislativo do Congresso norte-americano.
Um terceiro fator encontra-se também na instância eleitoral, tratando-se das eleições gerais na Índia, que devem estabelecer ainda neste ano um processo de transição política, figurada na chegada de um novo corpo executivo. Destarte, as eleições indianas deixarão a arena externa menos privilegiada, concedendo espaço a temas domésticos, como economia, terrorismo, inclusão social e a questão separatista da Caxemira.
Por fim, em 2009 o presidente Lula estará trabalhando arduamente para gerar um substituto para o Planalto, o que fará priorizando temas nacionais em detrimento de temas internacionais, entre eles as negociações na OMC.
Em razão desse quadro político, atualmente o governo brasileiro se esforça para retomar as negociações de Doha antes que os fatores acima se materializem, e provoquem uma paralisia negocial inexorável no médio prazo. Destaca-se aqui não apenas a ação diplomática de Amorim, mas também a diplomacia presidencial. Após o fracasso das tratativas em Genebra, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acionou seus contatos com o presidente norte-americano George W. Bush, com o primeiro-ministro indiano Manmohan Singh, com o primeiro-ministro inglês Gordon Brown, e o chefe de Estado chinês Hu Jintao. Por sua vez, Amorim trabalha na reconstrução do diálogo da reunião em Genebra, envolvendo contatos com a representante comercial dos Estados Unidos, Susan Schwab, com o Comissário Europeu para Comércio, Peter Mandelson e o Ministro do Comércio da Índia, Kamal Nath.
Além das ações na arena da política externa, outras medidas serão necessárias enquanto não existem movimentações para diminuir o protecionismo no mercado agropecuário. A retomada das negociações comerciais bilaterais e inter-regionais é uma forma de manter a dinâmica de liberalização de mercados. Por essa razão, o fortalecimento do Mercosul e a revisão de sua inserção internacional tornar-se-ão temas prioritários na agenda do governo brasileiro. A importância das negociações multilaterais para o Brasil reside no fato de que o país ainda possui poucas condições de impor suas posições e opções no meio externo, daí a relevância das coalizões, como o G-20, o IBAS ou G-3 (diálogo Índia, Brasil e África do Sul) e G-4 para a reforma da ONU. A negociação bilateral só é vantajosa quando a outra parte possui poderes de barganha, persuasão e dissuasão menores. Reconstituir o Mercosul, como um bloco harmônico para negociações com União Européia e Estados Unidos, será um requisito para o sucesso das políticas externa e comercial brasileiras.
Outras reações ocorrerão também, todavia, com origem e repercussão doméstica, ao contrário das supracitadas. Considerando que o nível de protecionismo tende a continuar, no curto e médio prazo, a outra forma restante para deprimir o preço dos produtos agropecuários no mercado externo é diminuir os custos de produção. Esse momento de crise na Rodada Doha pode ser um ponto de inflexão positivo para a agroindústria brasileira. A competitividade do produto no comércio internacional reside no preço acessível e na qualidade ofertada. Se existem barreiras comerciais que tornam o preço dos produtos brasileiros artificialmente altos, então a resposta deve ocorrer em duas vertentes.
Quanto ao preço, a reação brasileira deve emergir em melhorias tecnológicas e de métodos de produção, o que exige capacitação em Pesquisa e Desenvolvimento, um câmbio valorizado para importar maquinários para agricultores e pecuaristas, isenção tributária para o setor rural, seja eliminando impostos para importar máquinas, seja extinguindo tributos para as exportações. Ademais, será fundamental diminuir o nefasto custo Brasil, ou seja, diminuir os custos brasileiros para a produção e escoamento desta no mercado externo. Neste aspecto, o Programa de Aceleração do Crescimento adianta essa reação, pois prevê o aumento de oferta e redução do custo de energia, reforma de portos, aeroportos, rodovias, ferrovias, hidrovias, e integração logística para formação de uma rede de deslocamento de produção intermodal. Com essas medidas, as exportações brasileiras de produtos primários ganharão competitividade na concorrência internacional, e deprimiram os preços internacionais pela via da oferta, já que na via da demanda - países importadores - existem barreiras protecionistas.
No que tange à qualidade, a resposta tem efeitos mais perenes que os elencados acima. Trata-se dos investimentos em pesquisa e educação. O desenvolvimento de produtos agropecuários demanda competência em variadas áreas, como engenharia genética, engenharia de produção, marketing internacional, agronegócios, agronomia, medicina veterinária, entre outros ramos científicos. Além disso, a educação gera inclusão social, na medida em que profissionais qualificados penetram mercados em ascensão.
Um último tópico deve ser salientado. No Brasil prevalece o regime de câmbio flutuante sujo (regime cambial livre com pequenas intervenções do Banco Central), não havendo espaço para mecanismos de manipulação cambial de modo a provocar artificialmente desvalorização da moeda nacional em relação à estrangeira para facilitar exportações, ou valorizá-la para facilitar importações de maquinários. Isso torna mais premente a melhoria dos processos produtivos no setor agropecuário, de modo a diminuir o custo de produção e repassar tal queda para o preço de exportação, aumentando a competitividade da produção brasileira no mercado externo.
O cenário acima descrito demonstra que, no palco das negociações comerciais internacionais, questões técnicas são manipuladas e subjugadas por interesses políticos, que por sua vez refletem a estrutura da ordem internacional, e, principalmente, como os recursos econômicos, naturais e a renda estão assimetricamente distribuídos nos espaços geográficos. Essa assimetria enseja como corolário posições diferenciadas na argumentação comercial, criando uma flexibilização de coalizões, dependendo dos ganhos e perdas políticas, econômicas e sociais.
Conquanto a administração Lula tenha defendido, ao tomar posse, que ensejaria uma nova geografia econômica, a Rodada Doha demonstra que a assimetria de poder na arena comercial perpetua-se, dificultando uma mudança na divisão internacional do trabalho, pois que tal ordem desigual não é fruto do simples voluntarismo político, mas originado de óbices materiais ao desenvolvimento. Nesse ambiente, em que a teoria do livre comércio não é integralmente adotada pelos Estados, por causa da economia política interna aos mesmos, na qual determinados interesses privados não se coadunam harmonicamente com a abertura comercial, o Brasil pode desenvolver um novo programa inovador para o setor agropecuário. Isso dependerá da vontade nacional para implementar reformas estruturais, arcando com seus custos de curto prazo, porém gozando de seus benefícios de longo prazo.

Carlos Nogueira da Costa Júnior é Mestre em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília - UnB e professor do Centro Universitário do Distrito Federal - UNIDF (carlos.costajr@gmail.com).

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