domingo, 5 de outubro de 2008

Aos trancos e barrancos


José Murilo de Carvalho
"O pouco de democracia que conquistamos
terá de servir como método de navegação para os
novos tempos. O combate à violência, à corrupção
e à degradação da representação política exige profundas
reformas na lei, nas instituições e nas mentalidades"


O Brasil é um país sem revolução. Não houve revolução na Independência. Boa parte da elite que comandou o processo a partir do Rio de Janeiro tinha sido educada em Coimbra e quase toda a alta burocracia era luso-brasileira. Não houve, naquela conjuntura, alteração na sociedade. Manteve-se a escravidão e até mesmo aumentou o tráfico de africanos. As revoltas do Primeiro Reinado e, sobretudo, da Regência eram provinciais e foram sufocadas com relativa facilidade, à exceção da Farroupilha, que durou dez anos. Não houve revolução na abolição da escravidão, votada pelo Congresso quando já era reduzido o número de escravos. Não houve revolução na proclamação da República. Antes, como observou Sérgio Buarque de Holanda, o que se deu foi a implantação do império dos fazendeiros. Não houve revolução em 1930, apenas uma troca de guarda. Em 1964, o movimento que se auto-intitulou revolução foi o oposto do proclamado.

O Brasil é um país de drásticas e cada vez mais rápidas mudanças, sobretudo a partir da segunda década do século XX. Mudanças demográficas. Os 30 milhões de habitantes de 1920 dobraram em 1960 e chegaram a 170 milhões em 2000 e a 187 milhões hoje, um crescimento de mais de 500%. A mobilidade geográfica foi profunda. Em 1920, 80% da população morava no campo; em 1960, 55%; em 2000, apenas 19%. O Sudeste era 90% urbano nesse último ano. Uma virada completa. E mudanças na ocupação. De um país agrícola em 1920, tornou-se uma economia de indústria e serviços. O que restou da agricultura rapidamente se transforma em moderno agronegócio.

Mesmo na educação, em que sempre fomos lentos, chegamos ao fim do século XX com 16% de analfabetos, quando a porcentagem era de 75% em 1920. A inclusão social fez progressos a partir de Vargas. A cobertura previdenciária hoje atinge quase todas as categorias sociais. A esperança de vida passou de 43 anos em 1950 para 68 em 2000. Na última década, a telefonia celular e a internet têm incorporado rapidamente milhões de brasileiros ao mundo da mídia eletrônica. Mudança radical também se deu na incorporação do povo na política. Até 1945, votavam 5% da população; em 1960, votaram 22%; em 2002, 66%. Hoje quase 70% dos brasileiros estão alistados. A República, afinal, ganhou o povo que lhe faltava.
Grandes mudanças sem revolução, eis nosso predicamento, que é nosso mérito e nosso drama. Nosso mérito, na medida em que as mudanças se fizeram sem os imensos custos sociais que em geral as acompanham. Nossa independência causou poucas mortes, enquanto a dos Estados Unidos e a das colônias espanholas da América custaram anos de luta e milhares de mortos. Nosso movimento abolicionista quase não produziu baixas; a Guerra Civil Americana matou 600 000 pessoas. Nosso dramático processo de urbanização das décadas de 70 e 80 foi comparado ao da União Soviética sob Stalin, que ceifou milhões de vidas.

Nosso drama. As mudanças fizeram-se sem alterar as bases da sociedade e criaram problemas tão sérios quanto os que resolveram. O campo despovoou-se, mas em pleno século XXI ainda há movimentos sociais reclamando terra para trabalhar, e partes do norte do país vivem clima de faroeste. O crescimento explosivo das cidades produziu imensos bolsões de pobreza e facilitou tal expansão da violência que inviabiliza a convivência civilizada. Os avanços recentes não impediram que ainda haja 11 milhões de pobres e 3 milhões de indigentes só nas regiões metropolitanas, que mais da metade dos trabalhadores permaneça no setor informal da economia, que apenas 25% da mão-de-obra seja sindicalizada. A massiva e rápida democratização do voto, boa parte dela feita durante a ditadura, não levou à criação nem de um eleitorado reivindicante, nem de uma classe política competente e responsável. Várias práticas corruptas minam o corpo político como um câncer. As instituições, sobretudo as representativas, perderam a credibilidade que um dia tiveram. Como coroamento dos males, as grandes mudanças não eliminaram, antes agravaram, nossa dificuldade de viver sob o governo da lei, uma condição indispensável a qualquer República que mereça o nome.

Não tivemos uma revolução capitalista que nos levasse a uma República democrática pela redução da desigualdade dentro da liberdade, graças ao dinamismo do mercado. O crescimento econômico não eliminou desigualdades e a liberdade por duas vezes foi suprimida. Nossos empresários fogem da competição e do risco e não dispensam a proteção do estado. Nossos operários ainda recorrem ao guarda-chuva corporativo da legislação do Estado Novo, encarnado no sindicato único e no imposto sindical. Não tivemos uma revolução socialista que também nos transformasse em uma República democrática, como sucedeu com países da antiga União Soviética, que reduziram fortemente a desigualdade pela ação autoritária do estado e depois restauraram a liberdade. Nossos avanços sociais deram-se entre nós em períodos ditatoriais, e os mais recentes ainda guardam fortes traços paternalistas. Sobretudo, foram insuficientes para produzir uma República democrática em que a liberdade fosse garantida pela redução da desigualdade. Forjamos um híbrido social que não peca por ser híbrido, mas por não ser social.

Mudança aos trancos e barrancos, como foi a nossa, não é mais um processo aceitável para os tempos de hoje, se algum dia o foi. Os cenários externo e interno colocaram o país, neste começo de século, diante de horizontes nunca antes realisticamente divisados. Não por acaso, ressurgiu, sob o impacto das descobertas de grandes reservas de petróleo, nosso quase bissecular sonho de grandeza. Para que o sonho não se frustre mais uma vez, a mudança terá de ser mais consciente, mais negociada entre governo e sociedade. O pouco de democracia que conquistamos terá de servir como método de navegação para os novos tempos. A desigualdade exige políticas de correção. O combate à violência, à corrupção e à degradação da representação política exige profundas reformas na lei, nas instituições e nas mentalidades. Até mesmo as grandes promessas do petróleo poderão tornar-se maldição na ausência de um adequado planejamento da distribuição de seus benefícios. O potencial para a grandeza, a natureza sempre nos deu e nos dá de novo no pré-sal. Cabe ao país ser capaz de torná-lo real, a começar pelo respeito à própria natureza.

José Murilo de Carvalho é professor titular de história da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e doutor em ciência política pela Universidade Stanford (Estados Unidos).
Sua obra inclui, entre outros títulos, Os Bestializados, ensaio sobre o nascimento
da República, e a biografia D. Pedro II. É membro da Academia Brasileira de Letras.

http://veja.abril.com.br/especiais/veja_40anos/p_194.html

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