domingo, 5 de outubro de 2008

O milagre da Sibéria

Preocupado com a necessidade de desenvolver outros setores econômicos o petróleo responde por 90% da economia da capital , Filipenko convenceu cerca de 80 pesquisadores de Akademgorodok, um renomado centro de pesquisas científicas, a se mudar para a sua capital regional e ali estabelecer um instituto especializado em tecnologia da informação. O instituto fornece serviços de consultoria para as empresas petroleiras, mas também desenvolve projetos em outras áreas, como a de nanotecnologia.

Este é o início de uma "Taiga do Silício", como diz Alexander Sherbakov, um matemático de 60 anos, em referência ao Vale do Silício, na Califórnia. Quando chegar ao fim a era da riqueza fácil do petróleo, ele afirma, "estaremos produzindo nossos próprios especialistas", criando postos de trabalho na economia da informação para a geração mais jovem. Ao contrário do que ocorre no setor petroleiro, o investimento em ciência, diz Sherbakov, pode assegurar um futuro promissor para a economia e os habitantes da região.

Embora a riqueza do petróleo ainda não tenha feito da Sibéria um ímã para os tecnólogos de ponta da Rússia, ela já vem atraindo muitos outros forasteiros, sobretudo imigrantes empobrecidos vindos do exterior. Esses indivíduos são chamados pelos russos, que tomaram o termo emprestado do alemão, de gastarbeiters, "trabalhadores convidados". Eles estão por toda parte em Khanty-Mansi. A maioria é formada por muçulmanos do Tadjiquistão, a ex-república soviética na Ásia Central cuja economia acabou destroçada pela guerra civil em meados da década de 1990. Os tadjiques chegam na primavera e voltam para casa antes do começo do inverno. Não é todo dia que encontram trabalho, mas quando isso ocorre conseguem ganhar cerca de 20 dólares por dia carregando sacos de cimento em uma obra ou fazendo faxina em casas.

Os homens deveriam ter documentos comprovando o local em que residem, e no entanto acabam ficando em lugares não autorizados, como garagens sem aquecimento alugadas à margem da lei. Um capataz um tipo mafioso consegue documentos mediante suborno das autoridades competentes, mas tais registros, nos quais constam endereços falsos, deixam os gastarbeiters à mercê da polícia. Quando surpreendidos, às vezes eles são obrigados a pagar no ato uma multa (leia-se "suborno"), e os reincidentes estão sujeitos à deportação. Recentemente, o governo da Rússia transferiu para os empregadores a responsabilidade de registrar os trabalhadores e verificar se seus documentos são genuínos, mas é pouco provável que tais medidas tenham resultado, pelo menos enquanto prosseguir a febre do petróleo.

As cidades petroleiras da Sibéria Ocidental também estão atraindo uma onda de russos oriundos das cidades economicamente deprimidas situadas a oeste dos montes Urais. Quarenta anos atrás Surgut não passava de um aglomerado de barracos de madeira em um lugar cujas temperaturas podem chegar a 50 graus negativos e onde, no inverno, há apenas algumas horas de luz por dia. Hoje, com 300 mil habitantes, é uma das maiores cidades da Sibéria Ocidental.

O brilho e a prosperidade evidentes em Surgut eram antes inconcebíveis no interior da Rússia. Uma instituição que é tanto creche como pré-escola, reformada pela prefeitura ao custo de 5,2 milhões de dólares, agora conta com piscina interna aquecida e outra de hidromassagem. Quando o tempo não permite exercícios ao ar livre, as crianças podem se divertir com carros de brinquedo em um salão envidraçado com temperatura controlada. Depois, os pequenos se aquecem com bebidas quentes na cafeteria. Sei muito bem que, na condição de "estrangeiro", estão me mostrando o melhor jardim-de-infância da cidade, mas a verdade é que não dá para simular tanta riqueza. Presos nos congestionamentos, lá estão os incontáveis Hondas, Toyotas e Nissans, assim como os baratos Ladas produzidos no país.

Na Rússia, a principal forma de habitação nas cidades são os imensos (e horrendos) conjuntos com prédios de concreto. Surgut, porém, exibe subúrbios com casas unifamiliares, destinadas à nova classe média alta formada por gerentes das petroleiras, funcionários de bancos e empresários. De tijolos vermelhos, as casas, com jardim e quintal, custam em média 400 000 dólares.

Surgut poderia muito bem ter se desintegrado, tal como ocorreu com outras cidades russas, durante o caos subseqüente ao colapso da União Soviética. O fato de isso não ter acontecido é uma prova da estabilidade de sua liderança política e empresarial. "Eu nasci em Surgut, tal como meus filhos e meus netos", declara orgulhoso Alexander Sidorov, que acumula vários mandatos como prefeito da cidade cuja âncora econômica é a companhia petroleira Surgutneftegas, a quarta maior empresa do setor na Rússia. E, ao contrário da maioria dos grandes barões do petróleo que controlam seus impérios de Moscou, o diretor-geral da companhia, o bilionário Vladimir Bogdanov, continua a viver em Surgut.

A Surgutneftegas vem aproveitando o surto petrolífero para implantar um programa de modernização de sua atividade. No centro administrativo do campo, engenheiros informáticos projetaram e construíram um enorme mapa digital para monitorar o desempenho dos poços.

O mapa exibe dados das estações de bombeamento, dos poços em operação e dos oleodutos transmitidos por sinais de rádio codificados. Com base nessas informações, os administradores podem dizer quanta energia elétrica está sendo consumida, ou se um poço necessita de reparos.

À medida que passaram a atuar em âmbito global, as companhias petroleiras russas também se tornaram mais receptivas às preocupações internacionais com o ambiente. Os elevados preços do petróleo são um incentivo para reduzir o desperdício, assim como os contratos de exploração que prevêem multas substanciais para qualquer vazamento. Lubov Malyshkina, responsável pelo departamento ambiental da Surgutneftegas, é membro eleita do Parlamento regional. No período soviético, o Ministério da Energia, em Moscou, indiferente às condições locais, costumava enviar produtos químicos ineficazes contra vazamentos de petróleo. Agora o departamento de Lubov dispõe de orçamento de quase meio bilhão de dólares. Entre suas aquisições está o veículo anfíbio Truxor, fabricado na Suécia, dotado de lagartas e capaz de romper pedaços de turfa impregnados de petróleo, tornando possível assim a limpeza dos derramamentos.

Mas uma característica do setor petroleiro aqui não mudou em nada: o trabalho do neftyaniki continua a ser duro e perigoso. Em um poço que fica a cerca de uma hora de carro de Surgut, os moradores de um vilarejo, enquanto colhem cogumelos, parecem anões ao lado das imensas bombas cujo movimento ritmado sugere um gigantesco pássaro bicando o solo. Escadas metálicas escorregadias por causa do petróleo levam a uma plataforma em que uma perfuratriz está atravessando a camada de rocha com uma broca cuja ponta tem quase 30 centímetros de diâmetro e é revestida de diamantes. Há muito barulho, e o ar cheira mal, mas dizem que é um bom lugar para estar no inverno, já que a plataforma fica envolta em vapor dágua. Os homens trabalham em turnos de oito horas por até 30 dias seguidos, dormindo em trailers, e depois tirando folgas de até 30 dias. O álcool é proibido. Bebam quanto quiserem durante as folgas, mas voltem sóbrios para o trabalho é a orientação recebida pelos neftyaniki. Apesar das dificuldades, tais empregos abrem caminho para uma prosperidade inimaginável poucos anos atrás. Os trabalhadores menos experientes ganham salário mensal equivalente a 1 000 dólares, ao passo que os mais habilitados chegam a receber quatro vezes mais.

Tudo isso é impressionante. Mas a questão mais importante para a Surgutneftegas e para todas as outras companhias petroleiras em Khanty-Mansi é saber se estarão à altura dos desafios políticos, econômicos e técnicos que despontam no horizonte. Acredita-se que a Sibéria Ocidental será a principal fonte de petróleo russo pelo menos nas próximas duas décadas, mas os campos da região estão envelhecendo. A taxação excessiva toda renda bruta superior a 25 dólares por barril vai para os cofres federais e os jogos de poder promovidos pelo Kremlin tornam o ambiente inóspito para investimentos. Para sentir isso, basta visitar Nefteyugansk, cidade de 114 mil habitantes à margem do rio Ob e a uma hora de carro de Surgut.

Um mar de lama negra foi o que o petróleo proporcionou a Nefteyugansk, que tem a aparência de um parque industrial em decadência. Na praça principal se acumulam canos de ferro e, mais abaixo, vê-se boiando no rio um barril amassado da Shell junto do cais deteriorado.

A poucos passos do portão de entrada do cemitério da cidade está a sepultura de seu mais famoso morador: Vladimir Petukhov. Em 1996, os habitantes locais colocaram Petukhov à frente da prefeitura. Dois anos depois, ao seguir para o trabalho em uma manhã de junho, o prefeito foi assassinado por uma dupla de pistoleiros.

Por mais de uma década o petróleo esteve no centro de uma violenta luta pelo poder na cidade. As dificuldades tiveram início nos anos 90, quando um banqueiro novo-rico de Moscou arrematou uma das principais petroleiras russas e a única grande empregadora na cidade em um leilão de privatização. O banqueiro, Mikhail Khodorkovsky, transformou a unidade de Nefteyugansk em principal subsidiária de sua nova empresa petroleira, batizada de Yukos. Mas ele se indispôs com a cidade ao deixar de pagar impostos, provocando com isso atrasos de meses nos salários dos funcionários municipais. O prefeito Petukhov, um ex-neftyaniki, liderou os protestos públicos contra os novos donos da empresa, que, nas palavras dele, haviam "cuspido no rosto da gente, no rosto dos petroleiros". O assassinato de Petukhov, então com apenas 48 anos, enfureceu os moradores, que associaram o crime à sua postura contra a Yukos. "Este sangue mancha a mão de vocês", diziam os cartazes contra a Yukos exibidos no velório de Petukhov.

Durante cinco anos ninguém respondeu pelo crime. Nesse período, a cidade foi governada por um sujeito corrupto que acabou preso por ludibriar petroleiros com um esquema de aposentadoria na amena região russa à beira do mar Negro. Enquanto isso, os preços do barril de petróleo subiam, aumentando o valor da empresa de Khodorkovsky. Mas aí a Justiça se manifestou.

Em junho de 2003, promotores de Moscou detiveram o chefe de segurança da Yukos sob a acusação de organizar a execução de Petukhov. E, quatro meses depois, prenderam o próprio Khodorkovsky por fraude fiscal. As autoridades assumiram o comando da subsidiária em Nefteyugansk e depois o transferiram para a Rosneft, uma empresa controlada pelo Kremlin. Khodorkovsky foi enviado a uma prisão no sudeste da Sibéria, onde teve o rosto cortado por outro preso. Nesse ínterim, o chefe de segurança foi condenado. Os promotores anunciaram em fevereiro de 2008 que o co-proprietário da Yukos, Leonid Nevzlin, também seria acusado do assassinato de Petukhov.

Seja como for, o resultado é que uma galinha dos ovos de ouro até hoje o sustento econômico da cidade passou das mãos de um oligarca moscovita para as mãos do pessoal do Kremlin. Quando visitei Nefteyugansk, Sergey Burov ocupava o cargo de prefeito havia quatro meses. Antes fora vice-diretor da Rosneft e, antes disso, alto funcionário da Yukos. Também ele não escapou à violência: em 2005, ao caminhar em direção a seu carro pela manhã, foi alvejado com um tiro na barriga. Aquilo tinha todo o jeito de um trabalho sob encomenda, mas os promotores encerraram o processo sem incriminar ninguém.

Burov demonstra interesse em falar do futuro da cidade, mas não de seu passado sanguinolento. Em parceria com a Rosneft, conta ele, a prefeitura tem planos para reconstruir Nefteyugansk. Não é o que pensam os moradores. "Talvez a Rosneft esteja confortável aqui", comenta Vasily Voroshilov, técnico de poços de petróleo de 52 anos. "Mas nós não sentimos isso."

A despeito de toda a riqueza proporcionada pelo petróleo, ele pode ser uma bênção ou uma maldição para países como a Rússia. No início da década de 90, antes do surto petrolífero, Boris Yeltsin insistiu em que as províncias conquistassem a maior autonomia possível. Foi o auge do aparente potencial da Rússia para o pluralismo político e a democracia de estilo ocidental. Quando os preços do petróleo dispararam, no fim daquela década, o Kremlin deu-se conta de que essa fonte de riqueza poderia sustentar o ressurgimento de uma Rússia humilhada. Hoje, as reservas russas se prestam a exaltações patrióticas que adquirem tom quase místico. Nas festividades do Dia do Petroleiro, uma das canções, que saudava a força dos neftyaniki, proclamava que "somos os dedos fechados em um punho forte".

"Hoje a Rússia deve sua condição de superpotência aos recursos energéticos, e não aos militares", diz Julia Nanay, diretora da PFC Energy, empresa de consultoria com sede em Washington, DC "Nas mãos do Kremlin está o destino do petróleo da Sibéria Ocidental. O objetivo deles é controlar a produção e as exportações de modo a ampliar a relevância geopolítica da Rússia."

Assim como no passado os czares detinham o monopólio de produtos valiosos como peles e sal, o Kremlin quer manter o controle direto sobre o petróleo e sobre os oligarcas que o produzem. Sobrevivem aqueles que se mantêm na linha.

Os outros correm o risco de ter o mesmo destino de Khodorkovksy, ou um fim ainda pior.

Um desses sobreviventes é Vagit Alekperov, presidente da maior empresa petrolífera particular da Rússia, a Lukoil. Tendo iniciado sua carreira nos poços de petróleo próximos a sua cidade natal, Baku, Alekperov foi enviado à Sibéria no fim da década de 70 como chefe de uma equipe de petroleiros. Notório pela postura rígida e paternalista, enfureceu seus homens ao proibir o comércio de bebidas alcoólicas no vilarejo. Vários deles chegaram a agarrar seus rifles de caça e disparar contra o barraco de Alekperov este, com sua sorte de sobrevivente, não estava lá no momento. Nos derradeiros dias da União Soviética, Alekperov criou a Lukoil com valiosos ativos petrolíferos na Sibéria Ocidental. Hoje a companhia é uma multinacional com reservas de hidrocarbonetos que ficam atrás apenas das da ExxonMobil e possui cerca de 2 mil postos de gasolina só nos Estados Unidos. Embora grande parte das reservas da Lukoil esteja na Sibéria Ocidental, Alekperov controla seus negócios em um edifício localizado a apenas 3 quilômetros do Kremlin. Tal como outros sobreviventes, ele conhece bem o valor de se manter atento a qualquer mudança política capaz de afetar, para o bem ou para o mal, as perspectivas da Lukoil.

Alekperov sempre está vestido com ternos impecáveis. Acostumado ao jogo duro, também é capaz de se mostrar encantador. Quando insisti em perguntar se os consumidores poderiam ficar tranqüilos agora que a Rússia domina grande parte do suprimento mundial de petróleo, ele abriu um sorriso e perguntou: "Você me acha com cara de urso?" Não pude deixar de rir. "Tudo o que queremos é ganhar dinheiro."

Depois de ter absorvido a Yukos, o pessoal do Kremlin não passaria agora a ficar de olho na Lukoil? "Não creio que o governo tenha interesse em uma companhia como a Lukoil", replicou Alekperov. Naquele momento, achei melhor não mencionar que Khodorkovsky havia me dito a mesma coisa pouco antes de ser detido.

A base das operações da Lukoil em Khanty-Mansi é a cidade de Kogalym. Um canteiro de flores à beira da estrada ostenta o nome da empresa não muito longe das cúpulas douradas de uma catedral ortodoxa russa e do minarete esverdeado de uma mesquita. Em uma maternidade reformada uma instituição conhecida na Rússia pelo termo roddom , a doutora Galina Pustovit exibe orgulhosa seus avançados equipamentos médicos. Em um país em que a maioria das mulheres ainda dá à luz em edifícios da época soviética, horrorosos e malcheirosos, essas instalações reluzentes são de fato excepcionais.

Quando menciono à doutora Pustovit que o setor petroleiro russo é famoso por ser corrupto, ela me lança um olhar de censura. "Tudo isso veio do petróleo", diz. "Os petroleiros ergueram este hospital. Tudo que há nesta cidade foi feito com dinheiro do petróleo." Não nos julgue com tanta severidade, diz o olhar dela: nesta região, nunca as condições de vida foram tão boas.



Por: Paul Starobin Foto: Gerd Ludwig
Matéria publicada na Revista National Geographic

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