quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Crise global aponta era de intolerância

Pela primeira vez no século, a classe média parece incapaz de garantir aos filhos o mesmo nível de vida
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
Especial para a Folha

1645. Munster, província de Wesphalia, oeste da Alemanha. Começam as negociações para pôr fim ao conflito generalizado -verdadeira primeira guerra mundial- que ensanguentava há décadas a Europa e suas colônias ultramarinas. Quase duas centenas de plenipotenciários, agindo em nome de outros tantos grandes e pequenos governos europeus, punham sobre a mesa os assuntos do planeta.
Em pauta, lá no fim da lista, estavam também Pernambuco e Bahia, onde se engalfinhavam luso-brasileiros e holandeses. De Amsterdã e Paris, a figura glauberiana do padre Antônio Vieira seguia os eventos com o mapa na cabeça e um ábaco na mão. Enojado pelas guerras e pela intolerância cultural, Vieira, como a maioria dos diplomatas ocidentais, fazia uma leitura pragmática da religião e da política internacional. Estava disposto a entregar Pernambuco aos hereges holandeses em troca de um acordo que garantisse as fronteiras européias de Portugal contra a ameaça espanhola.
Laboriosas discussões desembocam em 1648 nos Tratados de Wesphalia. Terminava a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). Acaba a hegemonia católica na Europa. Três religiões cristãs -a luterana, a calvinista e a católica- foram institucionalizadas no Ocidente. Criava-se o Direito Internacional, o concerto de negociação diplomática permanente das nações. Nasciam os países que, com remodelagens diversas, marcam a história contemporânea da Europa. Vingava uma concepção mais contraditória, tolerante, racional da cultura e dos direitos políticos.
Até bem recentemente, até os meados da década passada, a grande maioria dos historiadores ocidentais pensava que o mundo inteiro havia entrado, depois dos Tratados de Westphalia, numa evolução contínua. As sociedades e o poder político conheciam um processo irreversível de laicização. As nações acabariam por se entender e se reincorporar no seio de entidades supranacionais, como a ONU, e, mais concretamente no caso do Velho Mundo, a União Européia. Enfim, as forças da natureza estavam definitivamente domadas: graças ao progresso científico, as epidemias e as doenças contagiosas regrediam pelo mundo afora.
De uns anos para cá, tudo desandou. Retornaram epidemias antigas e surgiu uma nova, imbatível, a Aids. Se estraçalharam alguns países. O nacionalismo vesgo, paroquial, se exarcebou a ponto de ressurgir em plena Europa, na antiga Iugoslávia, a política asquerosa da "faxina étnica". Enfim, voltam as formas intolerantes de religiosidade. Aqui e acolá surgem aventureiros brandando que o remédio de todos os males -a salvação da nacionalidade, da saúde pública, da religião- repousa sobre a crença integral, integrista da liturgia e dos textos sagrados.
O integrismo, como o fundamentalismo, se baseia na interpretação literal dos textos sagrados e das supostas tradições. Ora, uma das vias essenciais do progresso ocidental se concretizou através da liberdade de reflexão que levou ao afastamento do sentido literal dos textos canônicos.
Como lembra em boa hora o historiador Jacques Le Goff, desde a Idade Média, autores, escolas, correntes filosóficas e políticas avançaram outras interpretações possíveis -além daquela de caráter estritamente literal- às Escrituras, aos costumes, às tradições religiosas. Nesse sentido, a leitura tapada, formalista e linear dos textos sagrados cristãos, judaicos ou muçulmanos se apresenta hoje como uma perigosa regressão. Como um estímulo constante e intolerância e ao enfrentamento cultural.
Das grandes religiões, o fundamentalismo do Islã é, sem dúvida, o que conhece hoje em dia o maior destaque. Durante muito tempo se achou que a decadência do Império Otomano trazia de cambulhada o declínio do islamismo. O próprio ressurgimento da Turquia, nos anos 1920, sob a direção do movimento republicano kemalista (de Mustafá Kemal Ataturk), parecia confirmar essas análises.
Laica, reformista, a república turca rejeitava o fanatismo religioso e reconhecia, desde 1934, o direito de voto às mulheres. Raiaram, entretanto, outros pólos regionais de proselitismo que trouxeram o fundamentalismo de volta à Turquia. Evento altamente simbólico, no último mês de março os muçulmanos radicais ganharam as eleições em Istambul, um centro do kemalismo histórico.
Novos países árabes, como a Argélia, são engolfados pelo fanatismo religioso. Dois milhões de lares argelinos que dispõem de antenas parabólicas -ou "paradiabólicas", na expressão dos radicais muçulmanos- estão ameaçados de represálias. Por um efeito de ricochete, estes acontecimentos criam tensões em outros países.
Assim, o avanço do integrismo islâmico na Turquia acentua a rivalidade entre esse país e o Irã xiita, no Azerbaijão e nas zonas muçulmanas do Cáucaso, onde o refluxo do domínio exercido pela ex-União Soviética abriu espaço à influência conflitante de Teerã e de Ancara. Assim, o êxodo para a França de argelinos perseguidos pelos fanáticos islamistas açula ainda mais o racismo antiárabe dos franceses.
Sobretudo quando aparece que o Islã já se apresenta como a segunda religião mais importante no país de Voltaire. Dando azo à paranóia galopante que toma conta da Europa ocidental, um diplomata francês, num artigo recente da revista oficiosa "Défense Nationale", aponta o Islã como o inimigo principal das democracias no século 21, da mesma forma que o comunismo o terá sido no decurso do nosso século. Com uma diferença: como o Islã conta com múltiplos focos de propagação, o avanço muçulmano será ainda mais ameaçador que o do comunismo engendrado pela Revolução de 1917.
Noutra escala, noutros lugares, o integrismo judaico e o católico também assustam. Preso a um desenho bíblico, mitológico, das fronteiras internacionais na Palestina, o fundamentalismo judaico torna totalmente inviável a paz na região, como o próprio governo de Israel já se deu conta.
Na Europa oriental, todo um bando de gente assustada com os novos ricos e com os novos pobres embarca na canoa de demagogos racistas. Nesse quadro, a palavra de ordem do Vaticano, que pretende reevangelizar aquela parte do mundo, fazendo do catolicismo o cimento espiritual dos países ex-comunistas, suscita inquietações. Tal política ignora as realidades de uma laicidade que data do Iluminismo setecentista, como também fatos religiosos muito mais antigos, muito mais consistentes, enraizados nos territórios onde reina a Igreja ortodoxa.
Tudo seria mais fácil, mais propício ao entendimento dos diplomatas e às práticas democráticas se os problemas econômicos que envolvem o Ocidente fossem um desses destrambelhos passageiros do capitalismo, ou mesmo uma crise cíclica violenta, mas bem demarcada, como a do final dos anos 20. Na verdade, duas características distinguem a crise iniciada em 1974 da que estourou em 1929.
Em primeiro lugar, ao contrário do que ocorreu em 1929, a crise desencadeada em 1974 não parou tudo. O comércio internacional continuou aumentando. Os "tigres asiáticos" e depois a Indonésia, a Tailândia, a Índia e a China conheceram em vinte anos um forte desenvolvimento, penetrando em mercados antes dominados pelos velhos países industriais.
Nesse sentido a crise atual se assemelha àquela do século 17, que os Tratados de Westphalia procuraram colmatar: um país se retrai, seu rival logo aparece: quando Espanha e Portugal recuavam, a Holanda avançava; quando a Holanda falhava, a Inglaterra ocupava os vazios no comércio do Oriente e do Ocidente. Num contexto destes, a guerra comercial é para valer. Não há mais aliados perpétuos nem amigos definitivos.
No último mês de maio, o presidente Clinton, renegando uma série de promessas eleitorais, renovou as franquias alfandegárias americanas concedidas à China. Além disso, prometeu que os EUA não condicionariam mais as relações comerciais sino-americanas aos progressos realizados pelo governo de Pequim no campo dos direitos humanos. No mesmo dia, a indústria de aviões Boeing, concorrendo contra o consórcio europeu Airbus, anunciava a conclusão iminente de um contrato de US$ 5 bilhões com a China.
Sabe-se que as trocas entre os Estados Unidos e a China dão emprego a 200 mil americanos. Entretanto, os dirigentes chineses continuam executando "marginais" com um tiro na nuca, não prometem nenhuma "transição para a democracia" e, mais ainda, põem banca de truculentos. Um deles, um desses patifes que -vem ditadura, vai ditadura- sempre ficam por cima da carne seca não trepidou em declarar recentemente ao semanário "Newsweek" a respeito dos supliciados pelo regime: "Quando as famílias não vêm procurar os corpos, usamos as cinzas deles como adubo".
Além da desbragada guerra comercial que a caracteriza, a crise atual também se distingue daquela dos anos 1920 num segundo ponto essencial. Malgrado o fato de que os países avançados não dispusessem na época de mecanismos adequados de proteção social, o ritmo de contratações na indústria retomou logo, em meados dos anos 1930, derrubando os índices de desempregados para perto dos níveis anteriores a 1929.
Ao inverso, hoje em dia o desemprego estrutural e de longa duração veio para ficar. Nos grandes países industriais, o desemprego não recuou mais para os níveis registrados antes de 1974 e a tendência destes três últimos anos desenha um novo movimento de alta. Centenas de milhares de postos de trabalho nas indústrias foram definitivamente destruídos. Segundo os especialistas, a chegada dos novos computadores de comando vocal vai ainda aumentar o subemprego e o desemprego no setor de serviços.
Jovens sem acesso ao mercado de trabalho, adultos ameaçados de aposentadoria antecipada ou de desemprego. Nos anos 1940, muita gente acreditava que os Planos Quinquenais da União Soviética romperiam o círculo fatal da estagnação em certas partes do mundo, enquanto as políticas keynesianas de investimentos e gastos públicos fariam outro tanto no Ocidente. Agora não há mais nada disso. Apesar da arrogância dos economistas oficiais, principalmente em países crédulos como o nosso, espalhou-se a crença de que as políticas econômicas não dão mais conta do recado, não conseguem analisar a extensão da crise e propor soluções para resolvê-la.
Pela primeira vez neste século, vastos setores das classes médias ocidentais não conseguirão efetivar a proeza social -cimento da democracia e do capitalismo- realizada pelas gerações precedentes: garantir a seus filhos um nível de vida igual ou superior ao que seus pais haviam desfrutado. Ensino universitário, contas de poupança nos bancos, investimentos em ações e imóveis não asseguram a transmissão do patrimônio familiar dos pais para os filhos.
Esse quadro de inseguranças e de incertezas que já dura há duas décadas contribui para transformar o integrismo, o racismo, a intolerância política num formidável desafio ao sistema democrático neste nosso fim de século.
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO, historiador, é pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e professor do Instituto de Economia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

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