Restos de computadores: a liderança do Brasil entre os emergentes / Foto: Marcos Santos/USP Imagens
REGINA ABREU
Com a Copa do Mundo, as pessoas correm para comprar uma televisão dessas bem sofisticadas (mesmo que seja em 58 prestações) e colocam a velha no quarto – a que estava no quarto vai para o quartinho de bagunça, junto com uma porção de coisas sem serventia. Nas gavetas, guardam uma infinidade de carregadores e celulares fora de uso e fora de moda. Afinal, ninguém quer ser excluído da última tecnologia, nem negar ao filho o pedido de um tablet ou de um iPhone: a nova classe média está ávida por consumir e ter acesso ao conforto da vida moderna. Um belo dia se joga fora o que não serve mais. E assim vai crescendo o lixo eletrônico, também chamado e-lixo ou lixo tecnológico.
Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), só no primeiro semestre de 2013 foram vendidos no país 10,4 milhões de unidades de computadores desktop, notebook e tablet. Como, em geral, quem compra um equipamento se desfaz de outro, o Brasil acabou se convertendo em um dos campeões mundiais na geração de lixo eletrônico de informática. E assim, de descarte em descarte, o volume desse entulho cresce a olhos vistos, e abrange também tudo o que funciona a eletricidade, pilha ou bateria, e que perdeu utilidade. O Brasil pôs no mercado em 2012, 2 milhões de toneladas de equipamentos elétricos e gerou, pasmem, 1,4 milhão de toneladas de lixo eletrônico – 7 quilos por habitante. Esse é o tipo de resíduo que mais avança em solo pátrio.
Preocupa o fato de que a maior parte das pessoas ainda não sabe como reutilizar e reciclar esses apetrechos e não se incomoda com o destino dado a eles. Os brasileiros – assim como os povos das nações desenvolvidas ou em desenvolvimento – preferem se atualizar sobre as novidades do mercado e, sempre que possível, trocar seus eletroeletrônicos antigos por novos. Poucos, porém, se interessam em descobrir como usar de meios sustentáveis para dar um fim correto aos equipamentos obsoletos. Resultado: todos os dias, toneladas de lixo eletrônico são descartadas de forma indevida em lixões e aterros sanitários.
Além dos imensos prejuízos ao meio ambiente, é toda uma riqueza que está sendo jogada fora porque a reciclagem é muito vantajosa: de acordo com o relatório “From Waste to Resources”, do Programa para o Meio Ambiente das Nações Unidas (Unep, na sigla em inglês), 1 tonelada de celulares sem baterias rende 3,5 quilos de prata, 340 gramas de ouro, 140 gramas de paládio e 130 quilos de cobre.
Então a culpa é do consumidor final? Em parte é, mas não podemos colocar tudo em suas costas. Tanto que a maratona experimentada pelos bens de consumo eletrônicos (percurso que tem início na indústria e segue para distribuidores, varejistas e, finalmente, consumidores finais) será regida pela logística reversa. Para ser mais explícito, é a responsabilidade compartilhada prevista pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Trocando em miúdos: a partir deste ano, fabricantes, importadores, distribuidores, serviços públicos de limpeza urbana e consumidores ficarão responsáveis pelos equipamentos eletrônicos em todo o seu ciclo de vida – inclusive quando eles não forem mais úteis.
No Brasil, ainda estão em curso negociações que, em breve, deverão culminar com regras mais claras, que definirão a participação de cada grupo. Para os especialistas, o bom é que a responsabilidade pela destinação do eletrônico descartado caberá a todas as partes envolvidas no processo e não apenas ao consumidor final. O caminho da logística reversa tem um custo, é claro, e ele deverá recair sobre o preço do produto. Mas, como acredita o professor titular do Departamento de Economia da Universidade de São Paulo (USP), Ricardo Abramovay, os países que conseguiram transformar o que era lixo em nova riqueza, reduzindo os impactos ambientais e dando-lhe destinação adequada, são aqueles em que o setor privado paga toda a conta, da coleta e do uso correto dos materiais recicláveis. No Brasil, isso já ocorre com baterias automotivas, embalagens de óleos lubrificantes, de agrotóxicos e pneus. São produtos que, durante muitos anos, foram descartados de forma predatória e hoje são encaminhados cada vez mais para a reciclagem.
Desmanches clandestinos
Enquanto isso não acontece com o lixo eletrônico, algumas iniciativas têm se mostrado eficientes para minimizar o problema. Um bom exemplo é o do Centro de Reúso de Resíduos de Informática (Cedir), entidade que integra a Coordenadoria de Tecnologia da Informação (CTI), da Universidade de São Paulo (USP), referência nacional no reaproveitamento de antigos aparelhos de informática e telefonia. A coordenadora geral do Cedir e do Laboratório de Sustentabilidade da mesma escola (Lassu), Tereza Cristina Carvalho, comenta que o Brasil é, na atualidade, o oitavo país que mais utiliza a internet e onde o tempo de uso de um computador dura, em média, de três a quatro anos. Estudos apontam que 98% da população tem aparelho de TV e há 1,33 celular por habitante. Nas classes sociais A e B, o celular costuma ser usado por apenas sete a nove meses; e, no restante da população, esse período se estende para um ano e meio. Por isso, o lixo eletrônico não para de crescer no país.
O Cedir recebe equipamentos de informática (computadores e servidores), de telefonia (celulares e telefones fixos) e eletrodomésticos, de pessoas físicas e da própria USP. São cerca de 12 toneladas por mês, e na desmontagem é feita a separação do plástico, do ferro, do alumínio e das placas, que são enviados a empresas de reciclagem. O projeto do Cedir é separar o lixo e firmar parcerias com recicladores que fazem o reaproveitamento de 98% dos componentes de computadores, impressoras e celulares. Os PCs em boas condições são encaminhados para o atendimento de projetos sociais, e os imprestáveis seguem o caminho do desmonte. O centro tem capacidade para desfazer mil micros por mês. A ideia é que os recicladores paguem o trabalho com a venda do material. Afinal, uma tonelada de placas de circuito impresso pode conter até 200 gramas de ouro. Mas isso não é tudo. Os equipamentos que ainda podem ser consertados são recuperados, passam porupgrade e são repassados pelo sistema de empréstimo à própria USP, a escolas públicas, entidades beneficentes, organizações não governamentais e igrejas, devidamente cadastradas, para projetos de inclusão digital.
Tereza Cristina destaca que a PNRS traz uma importante inovação: a inclusão dos catadores. Por isso, o Cedir já está oferecendo treinamento a esses profissionais. Esse trabalho recebeu vários prêmios, como o Mario Covas, o Iniciativa Verde, o Fecomercio de Sustentabilidade e o Von Martius (Brasil-Alemanha). No galpão do Cedir, na Cidade Universitária, em São Paulo (uma área de 200 metros quadrados), ficam armazenados os equipamentos doados e tudo o que já foi desmontado, em enormes sacos brancos, abarrotados. Alguns deles, movimentados por uma empilhadeira, estão cheios de partes metálicas; outros, de cabos e fios. O material está pronto para ser enviado a empresas de reciclagem de ferro e plástico. Ao lado, em uma sala separada por divisórias, as bancadas estão repletas de equipamentos em trabalho de montagem.
Na desmontagem dos aparelhos de TV, especial cuidado é tomado com um pó acinzentado, que é cuidadosamente guardado em frascos lacrados. Ele é formado por partículas finíssimas, altamente tóxicas, que se espalham no ar assim que o vidro de um tubo de raios catódicos é quebrado para se ter acesso aos componentes de cobre. Como este metal é atraente pelo valor de mercado, tem sido extraído pelos desmanches clandestinos. O resto é abandonado no solo, prática comum nas periferias dos grandes centros urbanos devido à falta de fiscalização e à expansão do mercado de peças e dos equipamentos eletrônicos descartados.
O exemplo da Suécia
As pessoas não sabem, mas os equipamentos eletrônicos contêm muitas substâncias tóxicas. Considerando só alguns componentes comuns em vários tipos de aparelho – por exemplo, os tubos de tevês e monitores; as placas de circuito impresso presentes na maioria dos artigos de informática; as lâmpadas de descarga usadas na iluminação, inclusive dos monitores de LCD; as baterias e os plásticos dos fios e cabos elétricos –, encontramos, ao menos, cinco substâncias nocivas à saúde, como bário, bromado, cádmio, chumbo e mercúrio. Quando esses resíduos são inadequadamente descartados, os contaminantes podem ser liberados e se incorporar ao solo, à água e ao ar. No entanto, muitos componentes eletrônicos podem ser reciclados, aproveitando os minerais presentes e diminuindo a pressão pela atividade de mineração, um ramo econômico com potencial para causar grande dano ao meio ambiente. De acordo com o relatório “From Waste to Resources”, o total de 1,2 bilhão de celulares comercializados no mundo, em 2007, foram empregadas 300 toneladas de prata; 29 de ouro; 11 de paládio e 11 mil de cobre. E as baterias de lítio (20 gramas) colocadas no mercado naquele ano teriam consumido 4.500 toneladas de cobalto.
A Universidade das Nações Unidas, baseada no Japão, estima que em 2017 o lixo eletrônico aumentará 33% em escala global, cravando em 65,4 milhões de toneladas, o equivalente a 200 edifícios do tamanho do Empire State Building, arranha-céu de 102 andares em Nova York, o maior e mais alto dos Estados Unidos. Na Europa, desde 2006, leis colocam limites ao volume de lixo eletrônico: por exemplo, a Alemanha, a nação mais bem-sucedida no campo da reciclagem, reutiliza 30% dos eletroeletrônicos descartados. Não é apenas o país de Angela Merkel que se sobressai nesse campo. Na Suécia a responsabilidade pós-consumo também avança muito: lá, 1.550 fabricantes e importadores fazem o depósito de um valor em uma conta controlada por uma agência pública, não estatal, como garantia financeira para cobrir parte das despesas futuras de coleta e reciclagem dos bens que elas produziram e foram comercializados no mercado. Além disso, ajuda a manter uma rede de 600 centros de reciclagem, 200 estações de coleta para pequenos eletrônicos, baterias e lâmpadas, além de 10 mil recipientes de lixo para baterias espalhados pelo país. Em 2012, informa-se, 147.684 toneladas de equipamentos eletrônicos foram recolhidas e ganharam novo destino, o equivalente a quase 15 quilos por habitante no período.
No Brasil, algumas empresas já coletam seus produtos ao término da vida útil, Claro, Dell, HP, Itautec, Philips e TIM são alguns exemplos. A Philips foi a primeira a fazer isso com eletrodomésticos. Na Itautec, 56% do custo com a reciclagem foi coberto, em 2009, com a venda de materiais usados e de matéria-prima. Quase sempre, cabe ao próprio consumidor levar o aparelho até um posto de recebimento. Assim, um dos desafios é convencê-lo a fazer isso. Dos 500 mil equipamentos vendidos pela Itautec em um ano, só oito pessoas devolveram os eletrônicos fora de uso.
Mas já se estipulam metas, dentro da PNRS, para combater a notória tendência de crescimento do lixo eletrônico. Uma delas obrigará o fabricante, daqui a cinco anos, a garantir que o equivalente a 17% de sua produção tenha destinação correta, devidamente certificada. Além disso, como outros países também estão criando legislação a respeito, as empresas exportadoras terão de se adequar. Como na lei da oferta e da procura quem manda é a procura, estão surgindo empresas especializadas que recolhem e separam o lixo eletrônico e assessoram os fabricantes que planejam se adequar às novidades que vêm por aí. Uma delas é a Lavra – Logística Reversa de Eletroeletrônicos, em São Paulo. A diretora comercial, Salete Pezzo, e a diretora executiva, Catarina Pezzo (mãe e filha), explicam que a companhia, com 12 funcionários e três veículos próprios, oferece serviços em três frentes: 1. pontos públicos de coleta na capital paulista (mercado municipal de Santo Amaro; unidade do Serviço Social do Comércio [Senac], na Avenida Tiradentes; Hospital Ruben Berta, no bairro de Indianópolis, e na sede da Lavra, Vila Socorro); 2. coleta gratuita agendada de quantidades maiores que 20 quilos, exceto de aparelhos de ar condicionado, geladeiras e freezers (nesses casos a coleta é cobrada); e 3. consultoria e assessoria a fabricantes, distribuidores e comerciantes de produtos eletroeletrônicos da Grande São Paulo e da Baixada Santista, para adequação às novas regras da PNRS e sistemas de logística reversa.
Salete esclarece que a coleta gratuita – feita na residência ou na empresa interessada – compreende equipamentos de informática (CPUs, impressoras, monitores, tablets e teclados), eletrodomésticos portáteis (batedeiras, fornos de micro-ondas, liquidificadores), aparelhos de reprodução de som e vídeo e celulares. “A ideia é montar um negócio do futuro”, explica. Ela acredita na responsabilidade compartilhada, sustentando que, após firmado e transformado em lei, o acordo setorial levará os fabricantes a contratarem os serviços da Lavra e de outras empresas do ramo, a fim de cumprirem com suas obrigações. Por isso, detalha Catarina, a Lavra se incumbe, ainda, da instalação e da manutenção de pontos de coleta, da desmontagem e encaminhamento dos produtos às empresas de reciclagem licenciadas a exercer a atividade. Também fornece aos clientes registro e certificação dos volumes coletados e destinados corretamente, ficando, assim, quites com o poder público e aptos a receber os créditos devidos.
Realidade pior que a ficção
Montanhas de aparelhos de ar condicionado, baterias, celulares, componentes, computadores, fios, geladeiras, notebooks, peças diversas, pilhas, secadores de cabelo, tablets e televisores completos e desmontados. Eletrônicos descartados que se desfazem lentamente e introduzem no solo e na água seus minerais venenosos, contaminando tudo. Algumas pessoas, esquálidas e macilentas, escalam o lixo e queimam parte dele para extrair cobre. Assim, envenenam a si e ao ar, um quadro dantesco que cheira a morte. E essa descrição, que nem Aldous Huxley em seu Admirável Mundo Novo ou George Orwell, autor de 1984, puderam imaginar para um futuro que nos espera, é real. O quadro tétrico está dolorosamente presente em algumas nações africanas e no Paquistão, lugares transformados em lixão eletrônico dos países ricos, que se livram dos dejetos jogando-os bem longe de casa. O drama dessa modalidade de entulho, um dos grandes problemas ambientais do nosso tempo, é alimentado pela obsolescência programada, que faz tudo ficar velho antes da hora.
Por isso, nos portos da cidade paquistanesa de Karachi, centro urbano quase do tamanho de São Paulo, cargueiros provenientes de Dubai transportam contêineres com peças velhas e quebradas de computadores. O lixo eletrônico recolhido vem da Arábia Saudita, da Austrália, dos Emirados Árabes, dos Estados Unidos, da Inglaterra, do Japão, do Kuwait e de Singapura. Esse material é revirado por pessoas humildes do bairro karachiano de Sher Shah, onde mais de 20 mil pessoas vivem da reciclagem feita sem cuidados com o ambiente e a saúde. Sher Shah tem o mais alto índice de casos de câncer de pulmão e de problemas respiratórios do Paquistão, por causa da inalação de gases tóxicos emitidos durante o processo de separação das peças. O quilo de metal extraído na reciclagem do lixo eletrônico é comercializado a 120 rúpias paquistanesas, ou US$ 1,40.
Em Gana, na África, o quadro é semelhante. O subúrbio de Agbogbloshie em Acra, a capital do país, é talvez o maior aterro de entulho eletrônico do planeta, sendo por isso mesmo chamado pelos moradores de “Sodoma e Gomorra”, em referência às duas cidades bíblicas próximas ao mar Morto e que teriam sido destruídas por ordem divina devido ao elevado nível de promiscuidade e corrupção de seus povos.
No local, gangues fazem pente fino em drives de computadores, laptops, palmtops, tablets e smartphones provenientes dos Estados Unidos e da Europa, à procura não apenas de material a ser vendido, mas também de informações sigilosas dos antigos proprietários. Os dados, que permanecem em geral intactos no computador, mesmo obsoleto, são usados depois em golpes pela internet.
Apesar de a Convenção de Basileia, na Suíça, em 1989, ter proibido o movimento entre fronteiras de resíduos perigosos (entre os quais o lixo eletrônico), a legislação é driblada por exportadores que nomeiam a carga como doação de equipamentos usados. O relatório ambiental de 2010 da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre lixo tecnológico prevê que, até 2020, o volume de entulhos de computadores abandonados crescerá 500% em países como Índia, China e África do Sul. Não há dados específicos sobre essa prática dos Estados Unidos, mas ativistas do Greenpeace estimam que de 50% a 80% das 400 mil toneladas de eletrônicos colocados para reciclagem nos EUA acabam indo parar em outros países.
Revista Problemas Brasileiros
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