Edu Silvestre de Albuquerque - UFRN
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O quadro internacional do pós Guerra Fria não era nada favorável para a continuidade das políticas de segurança e defesa dos países periféricos, onde chegava-se mesmo a afirmar a superação das fronteiras-limite e das estratégias de contenção pela intensificação do processo de fronteira-cooperação (ARROYO, 1995; RUCKERT, 2003). Assim, impressiona o fato de que os militares brasileiros tenham alcançado preservar a logística militar nas fronteiras meridionais, e ainda convencido aos governos civis da necessidade de políticas de defesa e segurança voltadas para a Região Amazônica2.
Desenvolvido no âmbito do Conselho de Segurança Nacional (SG/CSN) e do Serviço Nacional de Informações (SNI), o Programa Calha Norte (PCN) é criado em 1985, no governo de José Sarney, implantando uma política integrada envolvendo defesa e vivificação das faixas de fronteira da Amazônia3. No âmbito do PCN são desenvolvidas ações cívico-socias em comunidades de fronteira e reservas
Entretanto, a racionalidade econômica e social da política de colonização e de defesa no Brasil Meridional a partir das faixas de fronteira decorria das condições amplamente favoráveis do relevo para o estabelecimento de linhas de comunicação eficientes tanto para militares (organização da defesa com apoio na retaguarda) quanto para civis (desenvolvimento da pecuária extensiva).
A vivificação das fronteiras meridionais brasileiras foi extremamente favorecida pelo relevo plano e vegetação de gramíneas que caracterizam fisiograficamente o Pampa Gaúcho, garantindo a ligação terrestre entre os militares-pecuaristas e postos militares estabelecidos na fronteira e a rede urbana e portuária da costa gaúcha, além das menos distâncias a serem percorridas entre aquelas duas subregiões. A inexistência destas facilidades geográficas na Amazônia dificultam sobremaneira a replicação dessa política de vivificação de fronteiras, especialmente na Calha Norte do Amazônas, e tendem a pressionar o orçamento dos projetos militares e civis do PCN.
É compreensível que os militares brasileiros estejam apreensívos com a manipulação dos povos indígenas amazônicos para fins de fragmentação do território nacional, especialmente nas reservas indígenas que se projetam para regiões de países vizinhos, como os yanomamis na fronteira Brasil-Venezuela6. Também é compreensível que os militares estejam preocupados em manter uma agenda de segurança e defesa nos governos civis7. Entretanto, é preciso observar que o PCN representa um retrocesso mesmo em relação ao próprio conceito de Segurança e Desenvolvimento, que nasce no segundo mandato do governo nacionalista de Getúlio Vargas e se consolida com a criação da Escola Superior de Guerra (ESG) e implantação do regime militar de 1964.
Essa redução do desenvolvimento a escala local presente no PCN reflete a própria mudança de curso das políticas públicas brasileiras nas últimas décadas. De Vargas até o Regime Militar de 64, a meta do desenvolvimento estava associada ao projeto integrado nacional (industrializando a nação e a integrando territorialmente com redes de energia, comunicação e de transportes), e este era considerado essencial para a ampliação da segurança nacional8. Com o PCN ao contrário, o próprio Grupo de Trabalho Interministerial formado para lançar suas diretrizes reconhecia no relatório final apresentado ao presidente José Sarney que seria difícil avançar em termos de ampliação da infraestrutura viária e de energia hidrelétrica; na interiorização dos polos de desenvolvimento econômico; e mesmo na ampliação da oferta de recursos sociais básicos, alegando a urgência de implementação do programa. A questão, entretanto, não era a urgência do programa, mas não considerar os condicionantes geográficos do isolamento relativo das fronteiras na imensa faixa da Calha Norte.
A Amazônia Legal representa 59% do território nacional, onde vivem hoje mais de 24 milhões de brasileiros e cuja taxa de crescimento demográfico é o dobro da média nacional. Por conta desses milhões de amazônidas, o professor Milton Santos dizia que “a Amazônia não era uma coleção de árvores”. O renomado mestre enfatizava que a Amazônia representa um espaço já humanizado, embora os amazônidas sejam costumeiramente esquecidos no discurso acadêmico e, ultimamente, também no discurso político. Com efeito, esses milhões de amazônidas querem o mesmo que os demais brasileiros: energia elétrica, alimentos, bens de consumo, postos de saúde, escolas, estradas asfaltadas e cidades modernas.
O PCN já trás uma visão limitada de desenvolvimento amazônico, voltado para a criação de infraestruturas locais e o desenvolvimento de comunidades dispersas localizadas apenas na Faixa de Fronteira9. Mas a questão do desenvolvimento amazônico é atualmente ainda mais limitada pelo conceito ongueiro de sustentabilidade, bloqueando a expansão das infraestruturas físicas necessárias para uma economia regional moderna e intregrada ao restante do país.
A partir da conquista da opinião pública e da mídia, o onguismo ambiental logrou influenciar as políticas públicas no âmbito do Ministério do Meio Ambiente, de modo a representar uma crescente intromissão da agenda ambiental nas esferas econômica e social. As diretrizes do PCN indicam os riscos do uso do discurso ambiental internacional contra a soberania nacional nas áreas de fronteira, mas nem mesmo os militares foram capazes de reverter esse novo contexto político de congelamento das políticas desenvolvimentistas para a região.
A pesquisadora Nazira Correia Camely (2011) estudou a situação econômica e social dos camponeses das Reservas Extrativistas do Acre, consideradas modelo de desenvolvimento sustentável. Expulsos pelo IBAMA por abrirem pequenos roçados em meio a floresta para o cultivo de subsistência, esses camponeses acabam engrossando as periferias de Rio Branco. Curiosamente, a correlação de forças políticas é hoje amplamente favorável aos grupos de pressão ambientalistas, apesar da origem classista do partido governista federal. Esse discurso internacionalista de classe média fala mais alto que os interesses da maioria dos amazônidas, impondo inclusive uma legislação ambiental severá para a prática agropecuária no espaço amazônico.
2 O fim da Guerra Fria e a redemocratização brasileira impactaram negativamente o orçamento de defesa do país e o investimento público na indústria bélica nacional (RACY e SIBERFELD, 2003).
3 O PCN juntamente com o Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM) integram o Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM), com sede em Manaus, ao qual estão subordinados.
4Em sua dissertação de mestrado, Diniz (1994, p. 155-156). entende que “o PCN surge na esteira de uma competição intragovernamental entre duas concepções alternativas de política indigenista”, uma “formada, no plano interno, grosso modo, pelos indigenistas, sejam antropólogos ou parte da Igreja Católica, representada, no caso, pelo Conselho Indigenista Missionário - CIMI e grupos próximos ou simpatizantes; os índios e sua organização, basicamente a União das Nações Indígenas - UNI; e, no plano externo, amplos setores da opinião pública que vinham crescentemente influenciando os governos de seus países quanto à atuação do governo brasileiro no que se referia à política indigenista, o que repercutiria nos programas de ajuda financeira ao país, particularmente por parte do Banco Mundial”, e a outra “oposta a esta, era representada basicamente por setores das Forças Armadas, principalmente dentro do Exército (largamente coincidente com a Coalizão de Segurança Nacional), garimpeiros, mineradoras e políticos amazônidas nas esferas municipal, estadual e federal.” As articulações internacionais da primeira pseudocoalizão tornaram-na bastante expressivas junto a opinião pública, influenciando governos a implementarem políticas ambientais mais rigorosas: “Contudo, esse seu caráter internacional é também uma faca de dois gumes: ela faz recrudescer, nos setores nacionalistas brasileiros, o temor quanto à internacionalização da Amazônia. ” (DINIZ, 1994, p. 156).
5Segundo Diniz (1994, p. 159-160), “uma reformulação da Funai ocorrida em fevereiro de 1986 incorporou todas as propostas mencionadas no PCN. Essa reestruturação tornou a Funai antes um organismo subsidiário do Calha Norte do que propriamente uma agência de assistência às populações indígenas(...) O objetivo, de qualquer modo, continua sendo a vivificação das fronteiras, mas a mudança é significativa: a presença de índios na fronteira, que até ainda a década de 30, pelo menos, era considerada necessária para a guarda das fronteiras do Brasil, passa agora a ser considerada como óbice à consecução dos Objetivos Nacionais Permanentes, particularmente o de desenvolvimento e o de integridade territorial.(...) Com a única exceção da área do Alto Solimões, todas as outras áreas selecionadas para o PCN estavam, em 1987, tomadas por esta atividade, seja extraindo ouro, estanho ou outros minérios.”
6 Na origem do PCN, os militares temiam a projeção do antagonismo Leste-Oeste na região, através do Suriname, cujo ditador demonstrava sinais de inclinação à órbita de Moscou, conforme citação da Exposição de Motivos 18/85: “a conhecida possibilidade de conflitos fronteiriços entre alguns países vizinhos aliada à presente conjuntura no Caribe podem tornar possível a projeção do antagonismo Leste-Oeste na parte Norte da América do Sul.” (EM 18/85 de 19 de junho de 1985). Nessa perspectiva, de alguma forma, os militares acreditavam que a questão indígena poderia ser mobilizada segundo interesses externos no contexto da Guerra Fria. Em verdade, esse temor da cobiça internacional sobre a Amazônia remonta a quase 150 anos, não se reduzindo à Doutrina de Segurança Nacional (DINIZ, 1994).
7 Mais crítica em sua análise sobre o pensamento e a presença dos militares brasileiros na Amazônia, Marques (2007, p. 35) observa que: “não são as ameaças externas nem os interesses paroquiais que determinam a priori as opções estratégicas dos militares”, e sim crenças de que seriam os grandes “avalistas da integração nacional” ou a continuidade da missão colonizadora levada a cabo pelos portugueses.
8O binômio Segurança e Desenvolvimento emerge do período entre as duas guerras mundiais, a partir do conceito de guerra total adotado pelas potências centrais. Segundo o general alemão Ludendorff derrotado na Primeira Guerra, a guerra deixava de ser um instrumento da política; doravante, a política tornava-se a continuação da guerra por outros meios (DINIZ, 1994).
9 Para alguns autores, essa vivificação das fronteiras amazônicas no âmbito do PCN se ampara na atividade predatória da mineração: “A expansão da atividade econômica para a faixa fronteiriça norte do Brasil só seria realizada pela mineração, basicamente pelo garimpo.” (DINIZ, 1994, p. 85). Entretanto, “A expansão do garimpo atingiria regiões habitadas por indígenas, principalmente, em 1984, a área yanomami. Chame-se a atenção para o fato de que se estava então às vésperas do Projeto Calha Norte.” (DINIZ, 1994, p. 86).
Parte integrante do artigo A GEOPOLÍTICA DA AMAZÔNIA NO SÉCULO XXI
REVISTA GEONORTE, Edição Especial 3, V.7, N.1, p.945-964, 2013.
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