domingo, 5 de outubro de 2008

REBELIÃO NA GALÁXIA VERMELHA



A todo custo, a Rússia pretende ser, ainda e sempre, o sol

Durante os últimos vinte anos, o mundo comunista pretendeu ser uma grande galáxia, unida e brilhante, onde um sol poderoso e infálivel deveria dirigir o movimento de todos os planêtas. Essa galáxia, formada depois da explosão que foi a última guerra, estende-se desde as costas orientais do Pacífico até a cortina de ferro que divide a Europa ao meio. Ela sai mesmo dos seus limites naturais, chega até as Caraíbas, onde gravita um meteoro — Cuba. No seu centro, está a URSS, Moscou, o Kremlin. Dentro dela, catorze países, mais de 1 bilhão de habitantes — quase um têrço da humanidade.

Desde que a galáxia foi formada, o Kremlin tem-se esforçado, por diversas maneiras, em ser o sol único e incontestado. Aos países que lhe giram em volta, nem sequer foi reconhecido até hoje o papel de planêtas: de fato, no Ocidente, êles são chamados de satélites. Entretanto, nem tudo tem corrido de acôrdo com os planos do Kremlin: os satélites, ora um, ora outro, ensaiam há tempos sua rebelião. E o sol, a cada vez, fica menos luminoso.

Navios naufragados — Quando Berlim Ocidental se rebelou em 1953, quando Budapeste resistiu à invasão soviética em 1956, o mundo comunista sofreu sérios arranhões, mas o Oriente se fechou sôbre os acontecimentos que comoviam o Ocidente como o mar sôbre navios naufragados — e o sol do Kremlin ficou apenas um pouco menos brilhante. Quando a China, a partir de 1960, começou a se afastar da URSS, a cisão foi mais grave — eram 700 milhões de pessoas escapando à direção de Moscou — mas a galáxia continuou poderosa. Muito antes, em 1948, um satélite mais orgulhoso e distante — a Iugoslávia — já havia rompido com o centro do sistema. A partir de 1966, a Romênia começou a seguir o mesmo caminho. A última rebelião, entretanto, foi bastante forte para abalar tôda a estrutura do mundo comunista. A invasão da Checoslováquia rebelde, ainda que muito menos sangrenta que as repressões de Berlim e Budapeste, põe em xeque um dos pontos altos da retórica comunista: o "bloco monolítico" — como se autodefinia a compacta e afinada galáxia vermelha —, já não é mais monolítico.

Nem uma palha — A primeira prova dessa cisão geral está dentro da própria Checoslováquia: os tanques soviéticos vieram "salvar o socialismo", mas não encontraram nenhum socialista checoslovaco que os apoiasse — ao contrário da Hungria, onde houve Janos Kadar e seus burocratas ajudando os russos a eliminarem Imre Nagy e seus rebeldes. Nem as famosas "milícias operárias" — guarda pretoriana formada em 1947 nos modelos stalinistas, com o objetivo de sustentar os governantes impostos por Moscou — chegaram a mexer uma palha em apoio dos invasores. A segunda prova está na condenação quase geral feita à invasão pelo comunismo internacional.

Ao lado dos checoslovacos estão a Iugoslávia de Tito, aos 76 anos patriarca do comunismo europeu; a Romênia, que há anos escolheu o caminho do "comunismo nacional"; todos os grandes partidos comunistas da Europa ocidental, começando pelo italiano, o mais importante do mundo depois do soviético e do chinês, e passando pelo francês, freqüentemente acusado de fidelidade excessiva ao Kremlin. Na esteira dos partidos, grande número de personalidades de extrema esquerda — por exemplo o inglês Bertrand Russell, o filósofo que pretendia julgar Johnson por causa da guerra do Vietnam ou o francês Jean-Paul Sartre — estão do lado dos checoslovacos. Os cinco signatários do Pacto de Varsóvia, que determinou a invasão da Checoslováquia — URSS. Polônia, República Democrática Alemã, Hungria e Bulgária —, só conseguiram a aprovação de Fidel Castro, surpreendentemente disposto a louvar os tanques soviéticos, depois de ter, por muito tempo, definido uma posição bem próxima à da China — que, naturalmente, aproveita a situação para liberar mais um dos seus tradicionais ataques contra o Kremlin.

Entre os próprios invasores, chegou a haver divergências sérias. Janos Kadar, o húngaro, talvez atormentado pelos fantasmas de Budapeste, opunha-se francamente à intervensão armada. Êle ameaçou mesmo não entregar tropas húngaras para a operação e, na "reunião dos cinco", em Varsóvia, travou uma tempestuosa discussão com o mais duro entre os duros, Walter Ulbricht — e provocou a suspensão dos debates, pois o líder alemão oriental, 75 anos de idade, acabou se sentindo mal. Kadar só veio a concordar com a invasão mais tarde, por um acidente pessoal: exasperou-se com a publicação na imprensa checoslovaca de um artigo assinado por alto funcionário do Ministério do Exterior, louvando Imre Nagy e condenando sua execução — ordenada, ou permitida, pelo próprio Kadar.

Policentrismo, teoria e prática — A indignação de tantos comunistas exprime, na verdade, um sentimento que não chega a ser nôvo em fôlha. Pouco antes de morrer, em agôsto de 1964, o líder do PC italiano Palmiro Togliatti lançou uma palavra que no momento está muito na moda: policentrismo. Uma palavra difícil, aparentemente mais apropriada para resumir a teoria astrônomica de uma rebelião de planêtas. Mas, de certa maneira é isso mesmo: ela significa que Moscou deixou de ser o centro da verdade; o comunismo se torna plural e deve ser adaptado às condições, tradições e aspirações de cada povo. A teoria do policentrismo teve confirmação prática no fim de fevereiro dêste ano, na reunião dos partidos comunistas convocada na mesma Budapeste que em 1956 viu afogado em sangue o seu breve sonho de liberdade. Doze anos depois, ausentes os tanques vencedores, e os heróis derrotados. Moscou sofreu um abalo mais grave. Desde o início de 1964 — Kruschev ainda estava no poder — , a URSS vinha propondo uma conferência. Ela deveria, nos planos do Sr. K., condenar a China herética de Mao Tsétung. Tratava-se evidentemente de uma idéia muito pouco sedutora, mesmo para os partidos que menos simpatia manifestavam por Mao, como o italiano e o polonês. Condenar o comunismo nacionalista de Mao seria o mesmo que condenar o policentrismo.

O humor dos romenos — Caiu Kruschev, em setembro de 1964: o Kremlin não desistiu da conferência, porém mudou de tática. Passou a propô-la para discutir métodos de luta antiimperialista, usando o argumento da guerra do Vietnam. As negociações no caminho da conferência se arrastaram por anos. Finalmente, as delegações de 65 partidos comunistas — o total dos PCs espalhados pelo mundo é de noventa — apareceram em Budapeste. Na lista dos ausentes havia seis dos catorze PCs no poder: iugoslavo, chinês, coreano do norte, albânes, vietnamita do norte e cubano. Dos PCs da Ásia, presente só o indiano. Entre os europeus, não apareceram os suecos e os holandeses. E os romenos foram a Budapeste de rostos amarrados. Numa das primeiras sessões da Conferência de Budapeste, o delegado do PC Sírio, Kaled Bagdache, acusou a Romênia de praticar uma política "bairrista". Foi a deixa: os romenos levantaram-se com grande ruído e gestos mediterrâneos — êles tem sangue latino e sua língua é parecida com o italiano — e, diante da platéia atônita, retiraram-se para não mais voltar. Em casa, abriram as expressões em sorrisos e comentaram: "Depois de 1957, as conferências dos PCs são cada vez menos freqüentadas. Continuando assim, aonde chegaremos?" O sangue eslavo, que também corre nas suas veias misturado com o latino, lhes permite um certo humor amargo e impiedoso.

Quem invoca a liberdade — Apesar do incidente, o comunicado final da Conferência de Budapeste fala em "debates cordiais". Mas não anuncia "decisões unânimes". Nas intenções soviéticas, haveria de ser a conferência da unidade — foi a conferência das diferenças. Dois meses depois, as manifestações de 1º de Maio nas várias capitais comunistas mostravam ainda mais claramente essas diferenças. Em Moscou o tema das manifestações era "a luta pela disciplina e contra a subversão ideológicas": em Varsóvia, "a luta anti-sionista"; em Praga, "socialismo com liberdade". Ludvik Vaculik, escritor e jornalista checoslovaco, de 41 anos, dizia: " A liberdade só existe onde não é invocada". Do Mar Negro ao Mar Báltico a humanidade vive de privações, leva uma existência apertada, sem as pequenas satisfações cotidianas e as comodidades do Ocidente, que, no entanto, os países da Europa oriental já conheceram. Quem vive assim sonha com facilidade, e nos sonhos mescla o essencial ao frívolo. O nôvo comunismo que muitos comentaristas de política internacional viram surgir em Budapeste, cristalizado no malôgro da Conferência, é apenas a projeção dêsses sonhos num futuro que depende da eficiência do Estado. Ao mesmo tempo é a afirmação de um nacionalismo reencontrado.

Queda brutal — Êsses sonhos têm uma base real: se Marx estivesse vivo, provàvelmente diria que a crise provocada por êles no socialismo europeu é fundada em contradições sociais. Contradições que são negadas pelos países socialistas, mas que nem por isso deixam de existir. Provas: a crise econômica nesses países, os projetos de reforma para superá-la e a luta que desde então se desenvolve entre beneficiados e prejudicados por essas reformas. Desde 1948, as "democracias populares" do leste europeu aplicavam fielmente, em suas economias, o rígido sistema de planificação e gestão instaurado na URSS por Stálin na década de 30. Acontece que êsse sistema entrou em crise, com a diminuição do ritmo de produção. Se de 1948 a 1955 tudo foi bem — a renda nacional aumentava de 8 a 14 por cento em média, por ano, de 1956 em diante a queda foi brutal: os níveis baixaram até 3 por cento.

Aos olhos dos economistas do regime, êsses resultados assumiam proporções de catástrofe: com efeito, o objetivo de todos os países socialistas era alcançar e superar a produção e o nível de vida dos países capitalistas do Ocidente. Nada disso tinha acontecido: e se as coias continuassem no mesmo ritmo, nada aconteceria nunca. A URSS, por exemplo, progride, mas num ritmo muito inferior ao do Japão; seu progresso se aproxima ao dos Estados Unidos — o que significa que os americanos, que partiram na frente, se distanciam cada vez mais.

Preços arbitrários — Diante da catástofre, surgiram os gritos de reforma. O sistema stalinista não se adaptava à economia moderna: planificação muito rígida, produção determinada por métodos administrativos e não econômicos, sistema arbitrário de preços — 1 tonelada de carvão, por exemplo, era vendida na URSS a 24 rublos, enquanto seu preço de custo era de 62 rublos. Em compensação, o preço das roupas era altíssimo. Com a reforma — que da URSS saiu para os outros países do bloco — abrandava-se a planificação, descentralizava-se a gestão, dava-se maior autonomia às emprêsas, substituía-se a arbitrariedade pelas leis do mercado, reformava-se o sistema de preços.

Essas medidas pareciam puramente técnicas, mas traziam um grande significado políticos. Isso porque a reforma veio atingir em cheio os "apparatchiki", funcionários do PC engarregados de promover, administrar e fiscalizar a produção. Com a economia funcionando por si mesma, êles perdiam suas funções e, imediatamente, começou a luta entre os homens do aparelho e os dirigentes de emprêsas. Nessa luta, êsses últimos se aliaram aos intelectuais e aos estudantes: uma aliança natural, pois todos queriam mais liberdade de ação diante dos burocratas. Dessa luta nasceu a crise, e, quando, num dos países do bloco, os liberais venceram a batalha contra os "apparatchiki", a crise explodiu em interversão armada — em Moscou, são os burocratas que mandam, os liberais estão neutralizados, e a experiência da Checoslováquia poderia inverter essa situação.

Até onde o tempo parou — O visitante ocidental (no ano passado 2 milhões de ocidentais estiveram em países de além-cortina, 15 por cento a mais que em 1964) encontra às vêzes nas capitais comunistas da Europa o clima dos anos 30. Para os violinos que acompanham o jantar no Hotel Athenée Palace, de Bucareste, para os imponentes táxis prêtos de Budapeste (são Pobedas russos, na linha lembram o Plymouth de antes da guerra), ou para os casacos de pele que os homens vestem nas ruas de Varsóvia, o tempo parou. Um jornalista americano surpreendeu-se — e se comoveu — ao ouvir tocar, além-cortina, os velhos sucessos de Eddy Duchin, um pianista cuja vida foi filmada há muito tempo, na interpretação de Tyrone Power (morto em 1958). São as sombras do passado, em vago, irreal combustível para os sonhos. A realidade é outra. Em Bucareste há taxis lustrosos — e, na Romênia, 10 mil carros ao todo, para uma população de 19 milhões. (No Brasil circulam cêrca de 2 milhões de carros.) Nas ruas das cidades húngaras, romenas, polonesas, checoslovacas, o comércio é pobre, as vitrinas tristes, os preços de tudo muito altos.

Ainda as idéias do Sr. K. — Há as lembranças do passado — e há as experiências do presente, realizadas por quem teve coragem de livrar-se na medida do possível, das diretrizes do Comecon — o mercado comum vermelho. Fundado em 1949, como resposta ao Plano Marshall, que revigorou a Europa ocidental depois da II Guerra Mundial, o Comecon (Conselho para a Assistência Econômica Mútua) atualmente é formado pela URSS, Bulgária, Checoslováquia, Alemanha Oriental, Hungria, Polônia, Romênia e também a Mongólia Exterior. Objetivos: coordenar os planos de desenvolvimento econômico e comércio exterior dos países membros, promover a ampliação da ajuda econômica e encorajar os projetos de investimento conjunto. O Comecon é uma sociedade que atribui à URSS a parte do leão. Por exemplo, ela fornece aos demais países cêrca de 70 por cento do material bruto, a preços muito mais elevados do que os do mercado internacional. Desculpa usada pelos russos: as nossas minas mais próximas ficam a mais de 3.000 quilômetros das fronteiras dos nossos aliados. A URSS vende caro seu minério de ferro e seu petróleo, mas compra barato — e em rublos — os produtos mais sofisticados das indústrias checoslovacas, alemãs orientais e polonesas. E enquanto os países do Comecon não possuem divisas suficientes para comprar os equipamentos avançados dos países do Ocidente, sua evolução tecnológica vai sendo freada. As motocicletas checoslovacas são excelentes, seus caminhões Tatra aprovaram como nenhum outro nas trilhas norte-vietnamitas, mas a indústria química e eletrônica é rudimentar: os medidores de voltagem húngaros são ótimos, mas os telefones péssimos: a indústria de conservas polonesas é avançada, mas a indústria automobilística medíocre.

O mercado, uma descoberta — Onde o comunismo nacional deitou raízes mais profundas, os caminhos da autonomia atravessaram também o terreno econômico. O Vice-Primeiro-Ministro romeno Georges Gaston Morin fala num "aperfeiçoamento da economia". E admite: "Vamos levar em conta, em certa medida, as leis do mercado". No dia 1º de janeiro de 1968 entrou em vigor na Hungria a Nova Gestão Econômica, isto é, nova maneira de produzir e vender, muito mais próxima dos padrões ocidentais. A previsão é fácil: ela acabará provocando uma nova maneira de viver. A Nova Gestão se baseia nos seguintes pontos: a produção, livre dos moldes muito apertados dos planos, deve atender às exigências do mercado; a autonomia do chefe de emprêsa é muito ampliada: a concorrência entre as emprêsas é livre. Na emprêsa húngara, que não vende satisfatòriamente, os diretores têm os seus salários descontados em proporção direta à queda nas vendas. Podem ser até despedidos sumàriamente. Alguém começa a reconhecer que "o consumidor manda". E um dos economistas húngaros responsáveis pela Nova Gestão, Lazlo Imre, declara: "Procuramos nos convencer de que a introdução do mercado não destrói a planificação". Em Praga, o Professor Ota Sik, responsável pela linha econômica do Govêrno checoslovaco depois da deposição do stalinista Novotny, aplicou, desde janeiro até a véspera da invasão russa, novos modelos que condenam tudo o que foi feito no mundo comunista nos últimos vinte anos. Sik defende a descentralização da economia e o incentivo da produção, através de estímulos ao operário, como prêmios em dinheiro e redução das horas de trabalho.

Um símbolo: a Pepsi-Cola — Enquanto nas boates de Praga os jovens começam a dançar ao som dos Beatles, os governos de alguns países da Europa oriental pensam em abrir suas fronteiras também aos investimentos estrangeiros. Já foram abertas pela Romênia. Emprêsas alemãs, entre as quais a Siemens e a Krupp, chegaram com 50 milhões de dólares; a Pechiney francesa, com uma fábrica de alumínio. Chegaram também locomotivas suecas, chocolate italiano e carros (Renault) franceses. A Pepsi-Cola logo será engarrafada em terra comunista. Num lance de pura ironia, a Pepsi torna-se o símbolo de uma revolução. Sem grandes dificuldades, ela pode ser, para um comunista, o símbolo do capitalismo — mas entre o comunismo e o capitalismo existe há tempo uma coexistência oficialmente consagrada; o problema é a coexistência entre comunistas. "No campo ideológico, tôda coexistência pacífica é excluída", dizia o "Pravda", órgão do PC soviético, nas vésperas da invasão da Checoslováquia. É por isso que a experiência checoslovaca — nem "democracia burguesa", nem socialismo modêlo soviético, mas uma terceira fórmula criando o livre debate e a participação democrática em tôrno do PC — horrorizou os russos. Da mesma forma que "aventureiros" e "anarquistas" de Paris haviam feito o Kremlin tremer de indignação em maio. Anos atrás, Kruschev dizia a Maurice Thorez, então líder do PC francês (morto em junho de 1964): "Se não há unidade entre os PCs, não há mais unidade no PC". Kruschev enxergava longe. Pouco antes da invasão soviética, um dos dirigentes do PC checoslovaco, Joseph Sabata, afirmava: "Ao Govêrno cabe mandar. O Partido não representa todo mundo". Para o Kremlin, frases como essa e atitudes como a de Dubcek, o líder checoslovaco que pretende "um socialismo com liberdade", trazem riscos demais. Por isso, enquanto o teórico do PC russo Mikhail Suslov disserta em Moscou sôbre o verdadeiro marxismo, os tanques russos moem as ruas de Praga.

A fôrça do nacionalismo — Em outros tempos, através do Comintern antes, do Cominform depois, o PC Soviético — até o imediato pós-gerra o único Partido Comunista no poder — controlou tranqüilamente os demais PCs. Foram tempos em que ninguém ousaria duvidar do caráter internacional do comunismo, movimento global que recebia as senhas e as cadências diretamente de Moscou. Fundado em 1919 sôbre as cinzas da Primeira Internacional (organizada em Londres por Karl Marx, em 1864) e da Segunda (moderada, em 1889), o Comintern, também conhecido como Terceira Internacional, tinha como fim "promover revoluções contra os regimes capitalistas". Foi dissolvido no fim da II Guerra Mundial, como prova de boa vontade oferecida aos aliados ocidentais. Veio a "guerra fria", e êle renasceu com o nome de Cominform e funções mais amplas. Coordenava as atividades subversivas do comunismo internacional, mas era também uma arma usada por Stálin para dominar a Europa oriental. Por intemédio do Cominform, Tito foi excomungado como "revisionista", em 1948. Depois da morte de Stálin (1953) e da reaproximação de Tito ao Kremlin, o Cominform foi extinto, em 1956. O fim dêsse instrumento de poder, a morte do ditador e a liquidação do seu mito — anunciada por Kruschev em 1956, no XX Congresso do PC Soviético — e, ainda, as atitudes cada vez mais independentes de Mao Tsé-tung, advogado de caminhos diferentes para o socialismo, roeram as bases do internacionalismo comunista.

Hoje o nacionalismo é a grande fôrça no mundo comunista. Êle é mais forte que os próprios partidos, e mais forte que a ideologia. Ainda é mais fraco, entretanto, que o Pacto de Varsóvia — oficialmente, um instrumento de defesa externa contra os países capitalistas, mas, na prática, um meio de pressão interior nos países socialistas da Europa, uma fôrça de polícia que faz reinar a ordem moscovita dentro dêles.

Marx: a hora
dos trabalhadores

Além do leque, os tanques — A ideologia é, no mundo comunista atual, um leque manuseado com dicutível habilidade por Suslov — não chega a esconder os tanques, por exemplo. Muito mais que no Oriente, é no Ocidente que as idéias marxistas mobilizam intelectuais, excitam cientistas, engajam sentimentos. Pensadores como Herbert Marcuse, Ernst Bloch e Erich Fromm — todos de origem alemã — desencandearam com suas obras, inspiradas em Marx, embora modificadas por idéias psicanalíticas ou religiosas, o único movimento marxista espontâneo desde os tempos da Revolução Russa: a rebelião dos estudantes.

Em fins de março, o Partido Socialista-Comunista Unificado da Alemanha Oriental promoveu um congresso de filósofos, com o propósito de salvar a imagem comunista ortodoxa de Marx diante da investida dos inovadores marxistas ocidentais. A tentativa acabou em penosos acidentes, nos protestos checoslovacos e no mau humor húngaro. No entanto, Suslov repete que "o leninismo e o marxismo do século XX e a experiência soviética são a única encarnação do marxismo". Enquanto em Varsóvia o Professor Kolakowski, da faculdade de Filosofia, marxista convicto, aceita que os seus alunos discutam abertamente quaisquer ideologias, Suslov distribui rótulos de "revisionista" (para Tito), de "nacionalistas" (para romenos e checoslovacos) e "revisionistas e nacionalista" (para Mao). (Nas declarações de Mao, revisionistas são os soviéticos.) É a fórmula que o Kremlin elabora para justificar excomunhões ou "operações saneadoras", como na Checoslováquia.

De Marx a De Gaulle — Marx partia da idéia de que o mundo sòmente poderia ser transformado pela violência. Escrevia em 1848: "Os comunistas declaram que os fins sòmente poderão ser atingidos pela subversão violenta de tôda a ordem social preexistente". Contudo, Marx imaginava que o capitalismo criaria um mundo de pouquíssimos ricos e de uma multidão infinita de pobres. Assim, a maioria seria proletária, e a revolução, proletária e democrática. A previsão não se confirmou: o proletariado hoje deseja integrar-se numa classe média cada vez mais numerosa. A França fornece um exemplo recente. Em junho passado, diante da incerteza de uma revolta começada nas universidades e que poderia arrastar a nação para o caos, o proletariado optou pela solução "burguesa" e reelegeu o General De Gaulle. "O curso da história foi diferente do que Marx havia imaginado", constatou recentemente Max Horkheimer, diretor da Escola de Sociologia de Frankfurt, êle próprio, outrora, seguidor de Marx. O problema da falta de uma maioria disposta a fazer uma revolução já havia sido de Lênin. Foi êle quem forneceu uma solução sucedânea, mas também fatal, proclamando a revolução dos "revolucionários profissionais", organizados num partido chamado a substituir a massa sem consciência revolucionária. Êsse partido representava a consciência personificada, nêle manifestava-se a vontade de Lênin de ensinar "consciência de classe" a operários e camponeses. "A emancipação dos trabalhadores poderá ser sòmente obra dos próprios trabalhadores", dizia Marx. "Sòmente de fora a consciência política de classe pode ser introduzida no meio dos operários", dizia Lênin. Stalin apresentou a sua versão: o regime dos intelectuais, que pensavam pelos trabalhadores, foi depurado com o sangue e transformado no regime da burocracia.

As estrêlas vivas — As rebeliões de intelectuais, em todo o mundo comunista, são agora o reflexo tardio da tentativa de Lênin de obrigar os homens a encontrarem a sua consciência revolucionária. Mas o terreno das idéias é muito perigoso. Na própria URSS, o ponto de vista oficial de Kremlin é constestado. O grande físico Andrei Sakharov, 47 anos, membro da Academia de Ciências Soviética, divulgou recentemente um manifesto dizendo que a "divisão da humanidade provocará sua destruição" e que o socialismo deveria se aproximar do capitalismo numa tarefa fundamental para a sobrevivência dos homens. "Todo teórico marxista — dizia Sakharov — deveria compreender o significado profundo dos progressos econômicos realizados pelo capitalismo." Êsse afirma também que "nada permite sentenciar que os métodos de produção capitalistas conduzam a um impasse ou uma produção inferior a dos países socialista, nem à pauperização da classe operária". Dêsses princípios, êle parte para a pregação de uma coexistência profunda entre os dois sistemas: "Tanto o capitalismo como o socialismo são capazes de se desenvolver entre êles a longo prazo, emprestando-se mùtuamente elementos positivos e aproximando-se um do outro sôbre um certo número de problemas, entre os quais a liberdade intelectual". Há muitos intelectuais russos que hoje procuram essa liberdade. O homem não pode ser um parafuso do mecanismo social, êle tem direito à felicidade privada, à ética individual: é o que se lia num artigo publicado recentemente na revista "Questões de Filosofia", a mais importante publicação filosófica da URSS. O leque ideológico de Suslov é evidentemente hipócrita. A URSS de Brezhnev, Podgorny e Kossiguin, no momento de soltar os tanques, não é diferente da Rússia santa e dos czares que soltava a cavalaria. Ela não renega a sua vocação imperialista. A URSS pretende apenas salvar o que pode do seu império para ser, ainda, o sol da sua galáxia.

http://veja.abril.com.br/numero1/p_086.html

Um comentário:

Anônimo disse...

parabéns pela iniciativa de ajudar os jovens qto aos problemas globais

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