Apesar das críticas e dos atrasos, obras de transposição do Velho Chico avançam
ALBERTO MAWAKDIYE
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Iniciadas por destacamentos de engenharia do exército em 2007, as obras de transposição das águas do rio São Francisco para o chamado nordeste setentrional avançam devagar, mas vão inegavelmente se encaminhando para a conclusão. Com a perspectiva de construir mais de 700 quilômetros de canais, além de túneis, aquedutos, barragens e estações de bombeamento, os oito consórcios de empreiteiras contratados pelo governo já abriram frentes de obras em praticamente todos os trechos dos dois trajetos, os eixos leste e norte.
Esses trabalhos se encontram em diferentes estágios de execução e alguns até concluídos. As águas do eixo leste percorrerão uma distância de 287 quilômetros, a partir da barragem de Itaparica, no município de Floresta, no extremo sul de Pernambuco, e serão despejadas em rios, açudes e reservatórios desse estado e da Paraíba.
O outro canal – o chamado eixo norte, com 426 quilômetros – está com cerca de metade das obras executadas. Ele deverá levar a água desde a altura da cidade de Cabrobó, também no sul de Pernambuco, para o sistema hídrico do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.
Com um custo estimado em R$ 4,5 bilhões, o Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional, como foi batizado oficialmente o plano de transposição, prevê o abastecimento de cerca de 400 cidades do semiárido nordestino, além do uso da água em áreas de agricultura irrigada nos quatro estados alcançados pela obra.
Segundo cálculos do governo, a transposição poderá atender a 12 milhões de pessoas, um número equivalente a 30% da população da área mais atingida pelas secas no nordeste. O índice médio de disponibilidade de água naquela região é um dos mais baixos do planeta – 500 metros cúbicos por habitante/ano –, metade do mínimo estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) para a vida sustentável.
O projeto prevê a captação, pelos dois canais de transposição, de 26 metros cúbicos por segundo da vazão média de 2.850 do rio São Francisco – menos de 1%, portanto. Segundo o Ministério da Integração Nacional, é um volume incapaz de prejudicar o ecossistema natural do grande rio, que nasce em Minas Gerais, no sudeste, e cruza a Bahia, antes de demarcar a divisa desse estado com Pernambuco e a de Sergipe e Alagoas, no chamado nordeste meridional, e desaguar no oceano Atlântico.
Isso não isenta o projeto de críticas. Os adversários da transposição – e eles são muitos, reunindo desde políticos e ambientalistas até membros da igreja católica e acadêmicos (ver entrevista de Melquíades Pinto Paiva, nesta edição) – reconhecem que o volume hídrico a ser transferido pelos canais de transposição não é, em si, muito grande, mas advertem que o São Francisco está tão enfraquecido pela excessiva utilização humana que qualquer nova interferência no regime das águas poderá pôr o rio a perder.
De fato, com 2,8 mil quilômetros de extensão, o São Francisco sofre com intervenções devidas a várias atividades econômicas, que incluem a extração de carvão, programas de irrigação e de pecuária, pesca, turismo e usos industriais. Além disso, recebe toneladas de esgotos que vêm da terra firme.
De qualquer forma, o governo está desenvolvendo uma série de programas de recuperação e preservação ambiental na área do São Francisco localizada no nordeste meridional, de modo a compensar as perdas e garantir a perenidade do rio. É uma medida sensata. O Velho Chico responde sozinho por 70% da oferta de água da região e também é responsável por quase toda a energia elétrica consumida no nordeste e em áreas adjacentes do sudeste e centro-oeste, gerada por cinco grandes usinas hidrelétricas implantadas em sua calha.
As obras da transposição modificaram a paisagem do semiárido. Elas lembram duas grandes valas a céu aberto cercadas de trabalhadores e implementos – 3,2 mil máquinas e equipamentos estão sendo usados pelas empreiteiras nos dois trajetos. São obras típicas de engenharia pesada. Os eixos do projeto consistem em canais com, em média, 25 metros de largura por 5 de profundidade, impermeabilizados com geomembrana protegida por uma camada de 5 centímetros de concreto.
Para chegar a seu destino, a água terá de vencer as barreiras impostas pelo relevo. Nas áreas de travessia de riachos e rios estão sendo construídos aquedutos e, para ultrapassar as regiões de maior altitude, túneis. Nove estações de bombeamento elevarão a água nos pontos mais problemáticos. Está prevista ainda a construção de 30 barragens ao longo dos canais, que funcionarão como reservatórios de compensação para permitir o escoamento mesmo durante as horas em que o sistema de bombeamento esteja desligado.
Com tudo isso pronto em cada um dos canais, só restará abrir a torneira e deixar a água rolar. E um projeto que nasceu ainda durante o reinado de dom João VI, no começo do século 19, e foi refeito e atualizado por diferentes governantes desde então, até ser finalmente tirado do papel no começo do século 21 pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sairá do universo da fantasia em que quase se refugiara para virar realidade. E o sertão – ou pelo menos parte dele – enfim vai virar mar.
Fronteiras desmoronantes
Como toda grande obra pesada de infraestrutura, a transposição do rio São Francisco vem sendo importante geradora de empregos no semiárido. Estima-se que de 7 mil a 9 mil trabalhadores, uma boa parte de origem local, estejam participando da abertura dos canais, da construção de túneis e da montagem de barragens.
O impacto na economia tem sido igualmente significativo. O comércio nas pequenas cidades da região jamais conheceu tanto movimento. Os restaurantes nunca prepararam tantos pratos, nem os mercadinhos venderam tamanha quantidade de produtos de alimentação e de limpeza, e as lojas de materiais de construção têm sempre agora um estoque extra de sacos de cimento.
Trata-se, porém, de uma economia de “fronteiras desmoronantes”, marcada pela mutabilidade geográfica: obviamente, o movimento acompanha o avanço da construção dos canais em direção ao norte. Quando as empreiteiras deixam determinado local, a economia volta ao que sempre foi.
A maior parte dos empregos é também do tipo temporário. No ano passado, era quase impossível para as empreiteiras recrutar um único peão de obra em municípios como Cabrobó, Floresta e Custódia, em Pernambuco, de onde, por assim dizer, a construção partiu: todos os trabalhadores disponíveis já estavam nos canteiros. Quando o grosso da empreitada terminou ali, quem não quis ou não pôde acompanhar a obra ficou desempregado.
O mercado de trabalho no semiárido é caracterizado pelo desemprego endêmico, amortecido pela informalidade, e pela reduzida qualificação profissional. Praticamente não existem empresários industriais: quase todos são pequenos comerciantes ou produtores rurais.
O Sebrae de Pernambuco, principalmente, vem tentando modificar esse quadro pela base. O principal programa da entidade para a região visa estimular, via treinamento e noções de gestão, a instalação de microempresas de tecnologia de informação e de logística avançada nos 33 municípios que gravitam em torno de Salgueiro, que é uma espécie de capital do semiárido. “Estamos também estimulando a criação de mais oficinas mecânicas”, explica Pedro Lira, analista-gestor de vários projetos na região. “É um segmento muito mal atendido, apesar da enorme demanda potencial: todos os dias passam milhares de caminhões por aqui.”
Segundo Lira, empresários de fora já se aperceberam do fato e começam a montar suas próprias oficinas em cidades maiores, como Salgueiro e Cabrobó. “É um espaço que os microempresários locais deveriam ocupar.”
Salgueiro, a abençoada
Encravada no coração do semiárido pernambucano, a cidade de Salgueiro, a 514 quilômetros do Recife, é provavelmente a única que irá se beneficiar economicamente desde o princípio até o final das obras da transposição. É de um pequeno complexo localizado na área central desse município de 60 mil habitantes que o Ministério da Integração Nacional coordena a execução dos trabalhos. A cidade está lotada de técnicos do governo e das empreiteiras e fervilha de agitação tanto durante o dia como à noite. Em 2010, a prefeitura quadruplicou os rendimentos com o Imposto sobre Serviços (ISS) e o comércio viu o movimento crescer 50%. A rede hoteleira trabalha no limite de seus 820 leitos.
A cidade é, de fato, como o prefeito Marcones Sá (PSB) gosta orgulhosamente de alardear, “a capital da transposição”. Ao contrário de outros prefeitos da região, porém, Sá não está nem um pouco preocupado com o término das obras, em 2012, e isso por um bom motivo: a transposição não é o único grande projeto a tangenciar a cidade. Graças à excepcional posição estratégica (a cidade é conhecida como a “encruzilhada do nordeste”), Salgueiro tornou-se também a principal base de apoio das obras da Ferrovia Transnordestina, que quando estiver concluída, em 2013, ligará os portos de Pecém, no Ceará, e Suape, em Pernambuco, ao sertão do Piauí. A cidade já foi escolhida como um dos futuros pontos nevrálgicos dessa ferrovia, já que está a meio caminho entre o interior do Piauí e os dois portos do Atlântico. “Não é à toa que a Odebrecht vai construir aqui a maior fábrica de dormentes do mundo”, comemora o prefeito. “Salgueiro também vai abrigar a principal plataforma multimodal do nordeste, com direito inclusive a um aeroporto de cargas e a um distrito industrial.”
Marcones Sá aposta que a cidade também deverá se tornar o maior entroncamento rodoferroviário da região. De fato, tudo indica que isso vai mesmo acontecer: a conclusão da Ponte do Ibó, nas imediações do município, já aproximou Salgueiro das principais capitais do nordeste, que agora ficam pelas vizinhas BR-116 e BR-232 a cerca de 600 quilômetros de distância, com exceção de São Luís, no Maranhão. Além disso, a ponte facilitou o acesso ao sudeste e ao sul do país. É provável que Salgueiro, no curto prazo, se torne uma cidade média tão importante no nordeste como Petrolina (PE), Juazeiro do Norte (CE) e Juazeiro e Feira de Santana (BA), das quais, aliás, está geograficamente equidistante.
Nada mau para uma cidade que faz meros dez anos era conhecida dos brasileiros unicamente por ser o núcleo do chamado Polígono da Maconha, que o governo federal e o de Pernambuco só a muito custo conseguiram erradicar – e, mesmo assim, não inteiramente.
Luta por acomodações
A transposição fez também explodir o movimento no normalmente pacato mercado imobiliário e de hotelaria das cidades que ficam em sua área de influência. No começo das obras, centradas basicamente na região de Salgueiro, Cabrobó e Custódia e que chegaram a reunir 9 mil trabalhadores em um trecho relativamente pequeno do semiárido, houve, acompanhando o inevitável inchaço populacional, uma verdadeira guerra por acomodações.
O cenário vem se repetindo conforme as obras avançam para o norte. São José de Piranhas e Monte Horebe, no sertão da Paraíba, e Mauriti e Barro, no Ceará, em cujas áreas rurais as empreiteiras escavam agora o túnel Cuncas I, do eixo norte, o maior para transporte de água da América Latina (com 15 quilômetros de extensão), vivem atualmente uma agitação jamais vista na história de seu ralo complexo hoteleiro. Não faltam situações inusitadas. Em Custódia – que tem dois hotéis razoáveis e uma boa porção de pousadas – em determinada ocasião um técnico do governo teve de dormir na casa do prefeito, porque não havia mais lugar onde pernoitar.
Os preços dos aluguéis dispararam em todo o sertão. Uma casinha que antes podia ser alugada por R$ 200 chega a valer agora R$ 700 mensais, se estiver perto do caminho das obras. Esses imóveis são procurados principalmente pelos técnicos vindos do centro-sul que optam por levar temporariamente a família para o nordeste.
Em Salgueiro, por ser “a capital da transposição” e por estar recebendo também as obras da Transnordestina e outras na área industrial e de infraestrutura, a certeza de que, pelo menos ali, o movimento será sustentado ao longo do tempo está induzindo os tradicionalmente cautelosos empresários locais a investir.
Socorro Borba, proprietária do maior e melhor hotel da cidade, o Salgueiro Plaza Hotel, construiu no ano passado, por exemplo, uma nova ala com 25 suítes para atender o aumento da procura. O estabelecimento passou a contar com 57 apartamentos. Agora, está recebendo melhorias na parte externa. “Mesmo com a ampliação, todos os quartos vivem ocupados”, explica Socorro. De acordo com ela, hoje, para conseguir hospedagem no Salgueiro Plaza, é preciso fazer a reserva com pelo menos uma semana de antecedência.
Alguns proprietários de bares e restaurantes da cidade, assim como donos de supermercados, também estão ampliando as instalações para dar conta da demanda. As lojas de materiais de construção estão igualmente em polvorosa: nunca se construíram tantas casas para alugar como hoje em Salgueiro.
Só com o dinheiro na mão
Quatro longos anos. Foi o tempo que José Francisco de Lima, pequeno sitiante de Custódia, de 63 anos, levou para receber os R$ 45 mil oferecidos pelo governo federal para que deixasse sua propriedade e abrisse espaço para a construção de um dos 30 reservatórios previstos no projeto de transposição, o de Cacimba Nova.
Como todos os que tiveram a casa ou o sítio desapropriado para a passagem da obra, Zé Francisco, como é conhecido, não queria sair de jeito nenhum sem o pagamento na mão. “A gente tinha plantação de milho, de capim, criava porcos. Sem a indenização, ia fazer o quê da vida?”, ele lembra.
Enfim, o dinheiro saiu no ano passado e Zé Francisco soube aproveitá-lo bem. Com a ajuda dos três filhos, construiu rapidamente uma casa nova não muito longe do lugar onde morava, e que ocupa uma área suficiente para a implantação de roçados e currais, maiores, aliás, que os que ele tinha antes. Zé Francisco já avisou aos “homens do governo” que basta eles instalarem energia elétrica na nova casa e a família – que já conta com um netinho – se muda imediatamente para lá. A área que cerca a antiga moradia já foi inteiramente desmatada e terraplenada. A casa de Zé Francisco ficou por último; hoje, é uma construção solitária no meio de um enorme terreno vazio e de aspecto lunar. Por pouco tempo. Daqui a uns dois anos, onde ela existia haverá um grande lago.
No total, perto de 700 famílias serão obrigadas a deixar suas casas por conta das obras em todo o trajeto dos canais da transposição, de acordo com o Ministério da Integração Nacional. A maioria delas será incluída no Programa de Reassentamento de Populações e instalada nas chamadas vilas produtivas rurais.
No último mês de dezembro, Lula, ainda presidente, entregou títulos de posse a 113 famílias reassentadas nas cidades pernambucanas de Salgueiro, Cabrobó e Verdejante. São casas de alvenaria de 99 metros quadrados, construídas pelo exército, com meio hectare cada uma para a prática da agricultura familiar. Cada casa tem sala, cozinha, dois quartos e alpendre. Na vila propriamente dita, há uma área comum de 3 a 5 hectares para cultivo. O local conta ainda com posto de saúde, escola, quadra de esportes, campo de futebol, praça e associação de moradores. Segundo o ministério, serão implantadas 18 vilas no âmbito de todo o projeto de transposição, a um custo de R$ 136 milhões.
Críticos da obra afirmam que na conta da desapropriação deveriam ser incluídos aqueles milhares de famílias que serão também impactados indiretamente pelo projeto, como acontece em várias comunidades indígenas e quilombolas. O traçado passa por dentro da Reserva Biológica de Serra Negra, por exemplo, onde moram mais de 5 mil índios pipipãs. A comunidade trucá é outra que ficou no caminho da obra.
O raio caiu no mesmo lugar
Vai ser difícil convencer a família de Batista Bezerra Matias, de Penaforte (CE), de que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Pois isso aconteceu na propriedade de cerca de 90 hectares que a família mantém nas duas margens da rodovia BR-116. Em 2004, Matias foi notificado de que parte de suas terras – onde planta principalmente tomates – teria de ser desapropriada para a passagem da transposição. Como se não bastasse, em 2008 recebeu a notificação de que o trecho oposto da fazenda, do outro lado da estrada, faria parte do trajeto da Ferrovia Transnordestina.
Com essas duas desapropriações, restarão à propriedade não mais do que duas nesgas de terra contíguas à rodovia. Ambas as obras já estão em andamento naquele trecho. “Querem pagar só R$ 90 mil para a gente sair daqui”, esbraveja Matias. “E isso porque brigamos: antes, nos ofereciam apenas R$ 44 mil. E todo mundo sabe que a fazenda vale mais do que R$ 150 mil – só de investimentos na roça gastamos uns R$ 30 mil.” O agricultor garante que a família só sai da propriedade se o governo melhorar o valor da indenização.
Vida de engenheiro
“O engenheiro vai levando a vida conforme a obra que faz.” É assim que Mauro Sérgio Verassani, da construtora OAS, justifica o fato de ter trazido a esposa Danielle para morar com ele numa arejada casa em Arcoverde, cidadezinha de Pernambuco localizada perto dos canteiros de obras da transposição. Verassani, engenheiro ambiental nascido em Ouro Preto (MG) e morador de Belo Horizonte, chegou em agosto de 2008 ao nordeste, onde deve permanecer até janeiro de 2012, ou seja, praticamente até a conclusão das obras. O casamento foi realizado em BH, quando já estava trabalhando na transposição. Antes de montar a casa em Arcoverde com a mulher, o engenheiro, como tantos outros técnicos vindos do centro-sul, ficava em repúblicas, em seu caso localizadas primeiro em Custódia e depois em Sertânia, também em Pernambuco.
“Não era ruim, mas eu me sentia um pouco solitário”, lembra-se Verassani. “As cidades daqui são muito pequenas, a gente não tem o que fazer à noite nem nos fins de semana. Quase todo mundo levava trabalho para casa para matar o tempo.” Ele conta que Danielle – advogada recém-formada que conseguiu arranjar um estágio na Defensoria Pública de Arcoverde – encarou a possibilidade de viver alguns anos no sertão nordestino com entusiasmo, mas no começo sofreu tanto quanto ele para se adaptar. “A comida daqui é muito forte, gordurosa, à base de coentro, é preciso se acostumar”, lembra. “E se não tomar cuidado, a gente engorda mesmo.” O calor, que chega fácil aos 40 graus, e o clima muito seco foram outras dificuldades.
Hoje Verassani classifica sua vida como “boa e tranquila”. Seu trabalho como engenheiro ambiental é intenso – o projeto da transposição prevê a implantação no nordeste setentrional de 36 programas básicos ambientais relativos a fauna, flora e monitoramento de água, além da criação de 12 áreas de preservação –, mas com um carro e Danielle do lado, opções de lazer não faltam. “Arcoverde fica a 300 quilômetros do Recife e não é nada difícil ir até as praias de João Pessoa, Natal ou Maceió nos fins de semana”, afirma. “E há ainda muitas cidadezinhas históricas no sertão que vale realmente a pena conhecer.”
O aguadeiro
Batizado como José Lúcio Cordeiro da Silva, Zé Luz é uma figura popular e estimada em Custódia. Ele exerce uma das profissões mais antigas do mundo, a de aguadeiro, que devia estar extinta depois da vulgarização dos serviços públicos de abastecimento, mas é ainda de bastante utilidade nas regiões onde a água é racionada, em alguns períodos, até para beber, como o semiárido nordestino.
O nome de sua profissão – de remotas origens portuguesas – perdeu-se no tempo. Para a população da cidade, ele é só Zé Luz, o carroceiro de água. Seu trabalho consiste em vender, de porta em porta, a água que vai buscar nos reservatórios, açudes e poços da região e transporta em um tambor de plástico de 300 litros em cima de uma carroça. Ele negocia a água por R$ 10 o barril em média ou por uma quantia combinada na hora se a venda é “picada” (a unidade de medida é a “lata”).
Hoje, com o grosso das obras da transposição já distante de Custódia, Zé Luz, como os outros vários aguadeiros da cidade, queixa-se da vida. “A venda diminuiu muito”, lamenta. De fato, durante a fase de pico das obras, com o movimento mais intenso nos restaurantes, botequins, hotéis e pousadas, a demanda de água aumentou em Custódia (o que não foi problema nos canteiros de obras, bem providos pelas empreiteiras). Agora, voltou praticamente ao normal.
Os citadinos e os pequenos fazendeiros usam a água dos açudes e poços, em geral muito barrosa, principalmente para lavar roupas e pratos e tomar banho. Para beber e cozinhar, eles normalmente utilizam a água dos reservatórios da prefeitura, que a torna potável depois que máquinas apropriadas tiram o excesso de sal. Nos períodos de maior estiagem, porém, quando nem os serviços de carros-pipa conseguem dar conta do recado, a água de Zé Luz e de seus colegas aguadeiros supre as lacunas do fornecimento, inclusive para beber.
Essa é uma das grandes tragédias sociais do semiárido, não só pela má qualidade da água dos açudes em si. Inúmeros estudos já feitos indicam que os próprios tambores de aço ou de plástico usados pelos aguadeiros – e até por muitos agricultores – são normalmente adquiridos em estabelecimentos comerciais que revendem recipientes já utilizados para outros fins.
O uso de tambores (ou “bombonas”) para o transporte da água traz óbvios riscos para a saúde da população, devido aos possíveis resíduos existentes nesses recipientes – inclusive químicos. Sem falar do sabor, já comumente intragável. Acabar com a profissão de Zé Luz – que mora com uma família numerosa num pequeno sítio nas redondezas de Custódia – é um dos objetivos laterais do projeto de transposição do rio São Francisco para o semiárido.
Essa, porém, não será uma tarefa simples. Mesmo em estados atendidos pelo Velho Chico, como a Bahia, é possível ainda encontrar aguadeiros, firmes e fortes, do mesmo modo que no sertão do Ceará e de Pernambuco. Ali nos estados mais ao sul há água, mas a distribuição é imperfeita: o serviço de abastecimento para as populações mais pobres e afastadas está longe de ser universal no país – problema que os encarregados do projeto da transposição terão de resolver, para que essa custosa e gigantesca obra tenha realmente valido a pena.
Revista Problemas Brasileiros
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