Sociedade e classe política europeias assistem ao crescimento do preconceito contra estrangeiros e islâmicos contestam medidas de governos do continente
Por Eliza Capai
Chovia no frio de dois graus de Berlim quando, ao tentar entrar no Parlamento, prédio que é um dos cartões postais da cidade, fui informada que ele estava fechado para visitação por “suspeita de atentado terrorista”. Um dos policiais que fazia a ronda – havia várias viaturas ao redor - me explicou que não havia previsão de reabertura para o público. Segui, então, para uma entrevista em uma das estações de trem centrais de Berlim, a Hauptbahnhol. A entrevistada me chamou a atenção para o fato que presenciara havia pouco: “Você viu a quantidade de policiais aqui?”, me perguntou Kubra Yucel. “É muito fácil e prático criar o Outro e colocar a culpa de tudo nele”, falou com paixão a jovem de 22 anos, olhos vivos e véu colorido na cabeça.
Filha de imigrantes turcos na Alemanha, ela sabe na pele o que é ser convertida à figura do “Outro”. Há três anos, Kubra andava pela rua com seu habitual véu quando uma mulher que ela jamais havia visto começou a xingá-la. Como forma de se defender, Kubra criou um blogue (http://ein-fremdwoerterbuch.com/), hoje famoso na Alemanha, e começou a se destacar na mídia como defensora da causa e da diversidade islâmica. Na semana anterior a nossa entrevista, ela havia recebido uma ameaça de morte: “no e-mail dizia ‘você sabe como os alemães funcionam e sua hora vai chegar e blá-blá-blá’... Em resumo, alguém queria cortar minhas ‘asinhas’”, disse. “Não se quer falar muito nisto, mas o anti-islamismo é hoje uma nova forma de racismo”, lamentou.
O sentimento que ganhou força e embasamento retórico com o famoso 11 de setembro encarna uma nova fase na Europa. Se antes estava ali de forma camuflada ou presente somente em setores extremistas da sociedade, agora se permite falar em público sobre o assunto. Foi assim que a chanceler alemã Angela Merkel, da União Democrata Cristã, explicou que o sonho do multiculturalismo havia fracassado e que o país não estava aberto para quem não se identificasse com os valores cristãos. O líder do CSU, Horst Seehofer, havia pronunciado, semanas antes, que a Alemanha não precisa mais de imigrantes de países de culturas diferentes, como os turcos e os árabes, para os quais a integração é mais difícil. Vale considerar que a população turca forma o maior grupo de imigrantes no país, com 3,5 milhões de pessoas.
Mas tal cenário não se resume à Alemanha. O ministro do Interior francês, Brice Hortefeux, declarou no ano anterior, ao lado de um jovem árabe, que “quando há um árabe, tudo bem. Quando há muitos é que há problemas”. O presidente Nicolas Sarkozy, no “discurso de Grenoble”, feito em 30 de julho de 2010, vinculou imigração e delinquência – o que, obviamente, mereceu críticas de associações ligadas aos direitos humanos. Ao mesmo tempo, a possível próxima candidata pela Frente Nacional à presidência francesa, Marine Le Pen, filha de Jean-Marie Le Pen, defende o fim do direito de solo [hiperlink – também conhecido pela expressão latina jus soli , trata-se do reconhecimento da uma nacionalidade a partir do lugar de nascimento. Na maioria da Europa impera o jus sanguinis ou direito de sangue, que determina a nacionalidade a partir da ascendência da pessoa] no país e compara os mulçumanos, que lotam ruas e mesquitas, aos tempos de invasão nazista em seu país. Em 2010, na região de Voralberg, na Áustria, 20% do eleitorado se posicionou em favor do Partido Austríaco da Liberdade (FPÖ), partido que defende que a invasão turca ameaça a paz social e tem como um de seus slogans “O Ocidente nas mãos dos cristãos”. O partido conseguiu 13,8% dos votos e foi o quarto mais votado em nível nacional em 2009.
A ultradireita, que tem como principal bandeira a questão anti-imigratória/anti-islâmica, entrou nos parlamentos mais liberais do continente. Na Finlândia, cerca 13 deputados ultradireitistas estão no poder. Na Suécia, onde um em cada sete habitantes tem raiz estrangeira, o Partido Democrata Sueco (SD) levou 5,7% dos votos, conseguindo 20 das 349 cadeiras do Parlamento. Ele deixou o primeiro-ministro Fredrik Reifeldt numa saia justa: seu partido recebeu 49,3% dos votos e precisa de mais três deputados para ter maioria absoluta. Em discurso, o ministro afirmou que não negociará com a ultradireita, o que lhe obriga a negociar com a esquerda verde. O SD conseguiu suas 20 cadeiras com bandeiras que defendem a diminuição da imigração (atualmente mais de cem mil pessoas entram por ano no país), a suspensão total do que chamam de “islamização” e uma política de asilo mais severa. A agremiação, que se inspira no Partido Populista da Dinamarca e no Partido da Liberdade (PVV) da Holanda, surgiu em meados dos anos 1990, fruto de organizações racistas que beiravam o neonazismo. Em uma década, o partido dobrou o número de adeptos.
O PVV holandês surgiu como um partido liberal e fez o caminho contrário ao SD, tornando-se mais xenófobo. Seu principal representante é Geert Wilders, que defende que a imigração é custosa à Holanda e que os imigrantes vindos dos países pobres sacam bilhões dos cofres do país. Geert defende a deportação de milhões de mulçumanos, e sua agremiação atualmente representa a terceira força política do país. Sua influência no novo governo pode-se representar com a nova plataforma, que reduz em 50% os imigrantes provindos de países não ocidentais. A Holanda, em 2003, foi o único país da Europa Ocidental onde o número de emigrantes superou o de imigrantes. Desde 2006, mais de cem mil pessoas por ano saem do país – um recorde desde os anos 1950 (dados do Centro Holandês de Estatísticas).
Literatura xenófoba
Seguindo o partido holandês, o Partido da Liberdade foi fundado em Berlim pelo cristão René Stadtkewitz, dando força ao sonho de Geert de organizar forças extremistas nos EUA, Alemanha, França, Reino Unido e Canadá para a formação da Aliança para a Liberdade. A Holanda já havia sido criticada pela implementação dos “testes de integração” – prova de língua holandesa e sociedade, que foram criados como forma de limitar as marroquinas e as turcas de imigrarem e reencontrarem seus maridos ou se casarem. O teste, que é obrigatório apenas para os imigrantes dos países não desenvolvidos, já evidenciava a discriminação, mas agora Wilders Geert tirou as ideias subentendidas e as colocou de forma clara ao comparar o Islã ao nazismo e o alcorão ao Mein Kempf, de Hitler.
Descendo um pouco no mapa europeu, um outro livro teria mais relações com a obra do Fuhrer. Na Alemanha, o ex-secretário da Fazenda de Berlim e ex-integrante da diretoria do Banco Central Thilo Sarrazin lançou um livro que virou best-seller na Alemanha. Em Deutschland schafft sich ab (algo como "A Alemanha se desfaz"), ele busca fundamentar o sentimento anti-islamismo em números e pretensas pesquisas científicas que comprovariam a inferioridade – genética inclusive – dos islâmicos. De acordo com seu raciocínio, a Alemanha se tornaria menos inteligente ao longo dos anos devido aos imigrantes turcos e do Oriente Médio, principalmente, que são “menos inteligentes e se reproduzem mais”. Aqui, ele toca num dos pontos centrais do sentimento xenófobo: o de que a população “nacional e pura” vá sendo substituída por estes “Outros” inferiores. Isto tanto pode ser observado na Europa, em relação aos islâmicos, como nos Estados Unidos, em relação aos latinos/mexicanos.
“Esse livro foi comprado mais de um milhão de vezes... Não digo que um milhão de pessoas o leram, mas isto expressa que há uma questão, algo que os alemães tentam entender e justificar”, explicou a socióloga Manuela Bojadzijev, que estuda e ministra aulas sobre racismo. O secretário-geral do Conselho Central de judeus da Alemanha, Stephan Kramer, se mostra preocupado com a sociedade alemã, que se radicaliza num debate "desmesurado, hipócrita e histérico". Para Manuela Bojadzijev, embora em processos históricos e contextos diferentes, a criação do racismo – seja ele o que justificou que negros africanos fossem escravizados, judeus perseguidos ou, agora, islâmicos excluídos – se baseia em um estereótipo de um grupo que é heterogêneo, em oposição a uma sociedade, também heterogênea, mas apresentada como homogênea. “Um exemplo simples: a questão da moradia é um problema em muitos países europeus. Em vez de se começar a discutir e buscar soluções para isso, o que se faz? Culpa-se o imigrante. Coloca-se a sociedade de uma forma coesa e idealizada sendo afetada por este grupo de fora que chega”, salientou. Depois de um suspiro, continuou: “mas esta sociedade coesa não existe, nunca existiu. Isto é uma visão baseada no idealismo do Estado-Nação, e com esse discurso, permite-se que os governos não discutam a falta de moradia, o desemprego.”
Dentro do grupo dos imigrantes – que somam 10% da população germânica –, o mais numeroso é o dos turcos. São eles também os maiores alvos de xenofobia no país. Acusados de não se integrarem, a mídia participa do processo de criação dos estereótipos. Conforme o sociólogo brasileiro residente na Alemanha Sergio Costa, “a mídia baseia-se em algumas ‘acusações’. Uma delas é a de que os jovens turcos são homofóbicos. Outra, é que a comunidade islâmica é violenta e contrária aos direitos de gênero conquistados no Ocidente”, apontou. “Assim, cria-se uma dicotomia: quem você quer apoiar: o grupo que é contra os direitos humanos, contra homossexuais e contra a igualdade de gênero ou o grupo dos que são a favor? Mas essa é claramente uma pergunta falaciosa”, críticou Sergio Costa. “Se observarmos as estatísticas, há menos islâmicos que cometem crimes de ódio que alemães neonazistas que atacam imigrantes”, exemplificou. “Outro fato é que, no contexto europeu, a Alemanha foi dos últimos países a aprovar o casamento gay. Ou seja, historicamente o país nem é homofriendly, mas com esse discurso se cria uma imagem do alemão como naturalmente adepto as questões homossexuais.”
Os governos em vários países corroboram com os estereótipos, criando punições específicas a pessoas que vêm de outros lugares. A França aprovou, por exemplo, uma lei que retira a cidadania francesa de pessoas de origem estrangeira, naturalizadas há menos de dez anos, que atentem contra um representante da autoridade pública. As mudanças viram manchetes e se esquece de falar que estses crimes já estão previstos na legislação e poderiam ser punidos, sem recorrer e evidenciar a questão de origem territorial do acusado ou de sua família.
Outra manchete europeia que merece destaque vem de um país com fama de tolerante aos assuntos ligados à imigração. No final de 2009, 57% da população suíça votou em um referendo pela proibição dos minaretes, por descaracterizar a arquitetura local. De acordo com o maior partido do país, o Partido do Povo Suíço (SVP), que propôs o referendo, os minaretes são símbolos do imperialismo religioso e da intolerância islâmica. A Suíça tem 4% de sua população mulçumana e apenas quatro mesquitas com minaretes, o que torna o referendo uma piada se não fosse verdade. Eveline Widmer-Schumpf, ministra da Justiça, teme que a proibição aumente o número de muçulmanos radicais ao invés de diminuir sua influência.
Minaretes e véus
Enquanto caminhava pela capital Genebra buscando uma mesquita, cruzei com várias igrejas e catedrais ao som de sinos que retumbavam. É de se questionar se, utilizando o mesmo raciocínio, aquele ruído também não poderia ser entendido como um distúrbio à organização do país. O mesmo eu havia pensado ao ver imensos presépios nas ruas da Alemanha. Enquanto Jesus, Maria e os Reis Magos eram exibidos em tamanho grande ao lado de árvores de natal, 16 estados alemães proibiram a demonstração pública de religiosidade. “Uma exceção é feita a isso: os cristãos podem demonstrar sua religiosidade em público, o que torna a lei claramente racista” denunciou Gauri Van Gulik, advogada da Human Rights Watch (HRW). Nesses estados, as mulheres foram proibidas de utilizar véus nas escolas. “A defesa da liberdade das mulheres está em nossa agenda, mas o que se está fazendo na Alemanha não está ajudando a liberação feminina.”
A HRW faz trabalhos em países islâmicos radicais em defesa das mulheres e do direito delas de não utilizarem o véu ou a burca. “Deixemos claro que nós não estamos aqui defendendo o véu. Nós só acreditamos que a decisão de usá-lo, ou não, não é, definitivamente, uma questão do Estado. O que se faz nos países que obrigam as mulheres a utilizarem burca ou aqui, onde se proíbe, é a mesma coisa, aplicado de forma inversa”, pontuou. No estudo Discriminação em nome da Neutralidade, véus proibidos para professoras e trabalhadoras civis na Alemanha (livre tradução de Discrimination in the Name of Neutrality, Headscarf Bans for Teachers and Civil Servants in Germany) a HRW acompanhou mulheres islâmicas que utilizavam véu e eram professoras dos estados onde a vestimenta foi proibida. “Algumas dessas mulheres eram professoras de alemão”, riu. “Ou seja, elas estavam perfeitamente integradas na sociedade. Mas com a proibição, algumas delas deixaram seus empregos e retrocederam do ponto de vista econômico. Se os governos querem ajudar a condição feminina, a primeira providência é propiciar condições de independência financeira”, defendeu a advogada.
“Mas o que vão fazer essas mulheres?”, questionou Kubra Yucel. “Tenho muitas amigas que desanimaram de estudar. Desta forma, estão encaixando as mulheres islâmicas no clássico estereótipo da mulçumana que não trabalha, não sai de casa e depende de seu marido”, relatou a jovem que estuda, trabalha e colabora para várias mídias alemãs, turcas e inglesas e se prepara para casar. “Não quero que me ajudem... estou bem. Por que eles não vão ajudar outros ou curar seus pensamentos tolos?” Quando perguntei por que usava o véu, Kubra sorriu. “Quando eu morrer, meu Deus me explicará. Não tenho uma resposta, e só de ter que verbalizar significa que estou racionalizando a questão”, completou com leveza. “Uso porque tenho uma fé que me pede”, expressou o que, em princípio, nem deveria ter que dar satisfação.
Assim, apesar do discurso de que a proibição do véu é para emancipar essas mulheres, o governo não leva em conta dois fatores básicos: há aquelas que querem usar o véu – assim como mulheres cristãs que querem usar seus crucifixos no pescoço -, e ir contra essa vontade seria um retrocesso nos direitos das mulheres. O segundo, é que a proibição das mulheres – das que querem usar e das que são obrigadas a – de circular na rua ou em locais públicos apenas contribui para que elas não saiam de casa, não se integrem e não tenham meios de se sustentar nem de pedir ajuda caso estejam em situação de violência doméstica. Ou seja, o discurso e a prática são completamente antagônicos. “Por que não se criam punições para os homens que obrigam e violentam suas mulheres, em vez de se estigmatizá-las ainda mais?”, propôs Gulik.
Manuela foi mais longe em sua crítica. “No pós-guerra, a Alemanha se abriu para a imigração, porque precisava demão de obra. Desde a década de 1970, entretanto, o país não aceita mais imigrantes. Há exceções para isto, mas, em termos gerais, não há imigração legal na Alemanha a não ser para reintegração familiar.” Manuela fez uma pausa, com um riso irônico. “Ou seja, o governo diz que quer liberar essas mulheres, mas se estão realmente em situação de abuso doméstico e forem à polícia denunciar seus maridos, elas perderão o direito de estarem neste país”, concluiu. “As dificuldades dos imigrantes em terem seus direitos e o de seus filhos e netos nos países europeus é enorme. O que se fez aqui para dificultar a vida desta população imigrante e, agora, falar que quem tem de resolver a questão da falta de integração são os imigrantes.... No atual contexto europeu, com o decréscimo da população e a evidência de que a mão de obra imigrante será necessária, está se intensificando uma crise com a qual teremos que conviver”, observou.
Quando o deputado e antropólogo português Miguel Vale Almeida foi perguntado se o que está acontecendo na Europa poderia ser comparado à década de 1930, ele respondeu: “Não se pode comparar a história, está claro. Mas com a atual crise econômica, que caminha para um aumento do discurso do Estado Nacional, assiste-se a um desagrupamento dos direitos que havíamos conquistado em referência à igualdade, aos direitos humanos... Nunca vi a situação como está e tenho muito medo do que pode vir”, lamentou.
Kubra, apesar do e-mail comparando o que está por vir com o que foi na história da Alemanha, respondeu com novidades. Como forma de combater a criação do racismo e a criação da massa homogênea “Islâmico”, ela criou um blog: “Se eu queria mudar aquela situação, eu tinha que criar meus próprios métodos e mostrar que não existe O Islâmico... que existe um monte de gente diferente: que gosta de política, ou que gosta de música ou que gosta de cinema”, detalhou, com os olhos brilhantes e uma maturidade acima de sua idade, o porquê da criação de seu blog . Quando perguntei como ela se definiria, Kubra respondeu: “Eu não me penso mais em categorias nacionais: turca ou alemã. Tem coisas das duas culturas que eu gosto e incorporo”, disse, destacando a culinária turca e a língua saxônica. “Então, eu prefiro me definir como alguém que gosta de world music, que gosta de política.... meus amigos não necessariamente são islâmicos. Muito mais que gostar de alguém que ame o mesmo Deus que eu, eu gosto de ter amigos que se questionem, que sejam intensos... mesmo que sejam agnósticos”, encerrou a jovem, com um suspiro de esperança.
REVISTA FÓRUM
Nenhum comentário:
Postar um comentário