O Bolsa Família não basta. A saída está nas atitudes criativas
SILVIA KOCHEN
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Na última década, cerca de 50 milhões de brasileiros saíram da miséria absoluta graças a programas como o Bolsa Família, que transfere renda a mais de 12 milhões de famílias. Além de favorecer os pobres, a iniciativa deu um grande impulso à economia brasileira, uma vez que os beneficiários passaram a comprar uma série de produtos essenciais, o que fortaleceu o mercado interno, atraindo investimentos e ampliando a oferta de empregos. O que, entretanto, se pode esperar daqui em diante?
Não há como negar que programas dessa natureza têm o mérito de interromper o círculo vicioso da miséria – a má alimentação, aliada à falta de saneamento, compromete a saúde das crianças, e as que sobrevivem dificilmente obtêm sustento digno ao chegar à vida adulta por não dispor de estudo e de oportunidades. O Bolsa Família não só permitiu a pais muito pobres alimentar e educar seus filhos, que assim têm melhores chances na vida, como ajudou a conter o trabalho infantil no país.
Por outro lado, populações sem renda alguma não carecem apenas de condições mínimas de vida; elas também precisam de acesso a meios que lhes permitam sair de sua situação, já que não há como garantir um futuro melhor nem inclusão social plena com base apenas nos programas de transferência de renda. “O desenho atual do Bolsa Família cria uma dependência permanente, já que falta uma porta de saída”, observa o economista Walter Barelli, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-ministro do Trabalho. Ele faz coro com os que criticam o programa por criar uma massa de gente conformada com o recebimento de benefícios, sem iniciativa para buscar uma solução definitiva.
Barelli lembra que antes havia vários mecanismos de transferência de renda – como o Auxílio Gás, o Bolsa Escola e o Cartão Alimentação –, que foram unificados no Bolsa Família. Como todo programa de primeira geração desse tipo, no entanto, ele tem caráter assistencialista e limitado, já que não estimula a emancipação nem garante uma mudança efetiva caso a concessão de benefícios seja interrompida.
O professor da Unicamp explica que a segunda geração de programas dessa natureza, já adotada em outros países, inclui algum tipo de assistência temporária – como microcrédito, projetos de treinamento ou de desenvolvimento local. “O próprio governo chegou a adotar esse conceito e houve algumas iniciativas, mas pequenas e sem abrangência, principalmente para a capacitação de jovens, que não foram levadas adiante”, afirma.
“O que nos falta é um projeto claro para escapar da pobreza com dignidade”, diz Barelli. Segundo ele, esses programas deveriam ser repensados, uma vez que os problemas só serão resolvidos quando houver atores sociais que proponham soluções, como, por exemplo, a criação de microempreendimentos, embora seja muito difícil viabilizar esse tipo de coisa. “Falta uma cultura de empreendedorismo no Brasil”, afirma Barelli, ressalvando a existência de vários projetos de geração de renda levados a cabo por ONGs, mas de alcance limitado.
Em busca de apoio
Marcelo é um jovem que no início do ano morava nas ruas de São Paulo e se drogava constantemente. Há alguns meses, porém, sua vida mudou. Ele começou a trabalhar com origamis e agora consegue uma renda em torno de um salário mínimo, o que lhe permitiu voltar a andar de cabeça erguida e fazer amizades com pessoas que anteriormente nem mesmo o notavam. “Antes, eu dormia na calçada diante daquela loja; agora, a moça que trabalha ali me cumprimenta e mal acredita que fui um mendigo maltrapilho”, diz, orgulhoso.
O ex-morador de rua participa de um projeto de geração de renda do Clube de Mães do Brasil, uma ONG que apoia populações de baixa renda. Ele integra uma equipe de 16 membros que fazem origamis nas instalações da entidade, onde outras 24 pessoas excluídas do mercado de trabalho formal se ocupam com diversas atividades. Esse grupo se considera privilegiado por ter uma oportunidade de renda, mesmo sem carteira assinada ou outros benefícios.
Os origamis foram encomendados por uma grande rede de supermercados, que pretende colocar cerca de 200 mil unidades em cartões de felicitações enviados a clientes. Uma rede de fast food também fez uma parceria com a ONG para dar uma destinação ecologicamente correta aos banners que anunciam as promoções nas portas de suas lojas. Uma equipe de nove pessoas corta e costura o material plástico dos banners, que é transformado em porta-lápis,nécessaires e sacolas, destinados a distribuição em eventos da empresa. Outras pessoas confeccionam roupas, encomendadas à ONG por uma loja.
O caminho escolhido pelo Clube de Mães, no entanto, é cheio de obstáculos. Tudo começou de forma quixotesca, quando Maria Eulina Reis Hilsenbeck juntou um grupo de mulheres dispostas a fazer trabalho social em comunidades carentes e, há 17 anos, elas fundaram a ONG. A princípio, sem sede, realizavam projetos itinerantes, visitando favelas e levantando necessidades. Ofereceram cursos de capacitação em diversas áreas, como artesanato, culinária, ofícios de pedreiro e eletricista, entre outros, buscando reinserir pessoas no mercado de trabalho. Hoje, acreditam ter realizado um total de 70 mil atendimentos desde o início de suas atividades.
Em 1997, o Clube de Mães conseguiu uma sede, mas em um local de fama funesta. O Castelinho – como é conhecida a mansão tombada na Rua Apa, no bairro paulistano de Santa Cecília, hoje reduzida a ruínas – foi palco de um crime chocante. Em 1937, em meio a uma discussão familiar, um milionário matou o irmão e a mãe, suicidando-se em seguida. Ninguém mais quis se instalar no imóvel, que se tornou propriedade do governo. O Clube de Mães obteve a cessão do local e passou a focar seu trabalho no entorno, uma área degradada nas imediações do Minhocão, um imenso viaduto que liga as zonas leste e oeste da cidade de São Paulo e que serve de teto improvisado para inúmeros moradores de rua.
Com uma sede, o Clube de Mães pôde ampliar seu trabalho. Desde então, disponibiliza refeições e cursos de qualificação aos moradores de rua, que frequentemente apresentam problemas emocionais severos e se envolvem com drogas. A ONG buscou parcerias e passou a oferecer a empresas produtos de artesanato com o objetivo de ocupar essas pessoas e recuperá-las socialmente. Em certas épocas, como o fim de ano, por exemplo, consegue dar trabalho para muita gente, já que há uma grande quantidade de encomendas de brindes, mas a continuidade é difícil. Pagar as contas, que incluem gastos com água, luz, gás, alimentação para os assistidos etc., tampouco é tarefa fácil.
Sem condições de contratar profissionais de gestão, a ONG não consegue cumprir os requisitos que a habilitariam a ter acesso a verbas públicas, e por isso depende de parcerias com a iniciativa privada. “O mais difícil é fazer as pessoas acreditarem em nosso trabalho”, diz Maria Eulina, que se encarrega de procurar empresas para oferecer os serviços prestados pelo Clube de Mães. Como a situação financeira da entidade não permite arcar com o registro em carteira, a saída é buscar novas parcerias para custear algum tipo de assistência de saúde e também atender mais gente. “Damos café da manhã diariamente a uma média de cem pessoas e gostaríamos de poder oferecer oportunidade de trabalho a cada uma delas”, diz.
Segundo Maria Eulina, muitos acreditam que basta dar uma cesta básica ao pobre, mas isso não é verdade. Com sua longa experiência, ela sabe que os que estão na miséria têm problemas de autoestima, que os levam à depressão e às drogas. Por isso, afirma que é preciso investir em educação, no ser humano em si, além de oferecer oportunidades para que eles saiam da pobreza.
Hoje, o Clube de Mães também procura patrocínios para reformar o Castelinho. O projeto de restauração, assinado pelo arquiteto Paulo Bastos, prevê a ampliação do anexo – onde funciona um centro de formação profissional e uma oficina – e a recuperação do casarão, que deverá abrigar um centro de artesanato, com exposição e venda de produtos de todo o Brasil.
Sustentabilidade e dignidade
Em 1979, a Fazenda Santa Fé, localizada no bairro de Perus, foi dividida. De um lado, foi criado um aterro sanitário; do outro, o Parque Ecológico Tietê. Conhecido como “lixão de Perus”, o Aterro Sanitário Bandeirantes parecia uma montanha de lixo e seus primeiros bolsões não foram devidamente impermeabilizados. Em 1983, a degradação da região se acelerou ainda mais, com o fechamento da fábrica da Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus, a pioneira do setor no país, que deixou mil trabalhadores sem emprego. Perus, que fica no limite da cidade de São Paulo, tornou-se um bairro-dormitório, com o solo contaminado pelo lixo, o que levava seus moradores a ter vergonha do lugar onde viviam.
Com o esgotamento dos demais aterros sanitários instalados na cidade de São Paulo, em 2001 a prefeitura cogitou de construir mais um em Perus, que, com uma população de cerca de 140 mil pessoas, ainda tinha imensas áreas livres. Os moradores, porém, se reuniram no movimento intitulado “Fora, Lixão”, e um grupo deles começou a elaborar um projeto alternativo. Em vez de enterrar o lixo, a proposta era reciclá-lo e, com isso, promover a inclusão social. Foi assim que nasceu a Cooperativa Peruense de Reciclagem de Resíduos Sólidos (Coopercose). “A ideia veio de todos do bairro”, conta Luzia Maria Honorato, sócia fundadora e diretora encarregada de relações externas da entidade. O nome esquisito, que lembra xarope, foi sugerido em meio a um debate, a partir da ideia de que o lixo era algo ruim, e a Coopercose, como um remédio, ofereceria a cura para as doenças ambientais.
Em 2002, o grupo encampou a luta dos catadores de lixo da região. “Vimos que aquela gente puxava carroças na rua e vendia no ferro-velho o que coletava”, conta Luzia. “Fomos até o lugar e ficamos lá até juntar um grupo grande o bastante para registrar a cooperativa, em 2004.”
O primeiro passo foi dar qualificação adequada aos catadores, que eram pessoas excluídas do mercado de trabalho devido a problemas decorrentes de vícios, ao analfabetismo ou à idade avançada. Foi criada uma regra, explica Luzia. “Não temos preconceito contra dependentes de drogas, mas a condição para entrar na cooperativa é se afastar do vício.” Com normas claras e qualificação, os eventuais conflitos puderam ser resolvidos.
Apenas isso, porém, não bastava. “Percebemos que para gerar renda de forma digna era preciso ter uma estrutura da qual os catadores não dispunham. Havia necessidade de um local que pudesse abrigar equipamentos, como uma balança, uma prensa e uma máquina picadora de papel, além de um caminhão para a coleta do material”, explica Luzia.
De início, a saída foi dividir espaço com o ferro-velho. Porém, uma série de disputas (membros da cooperativa acusavam o dono do estabelecimento de se apropriar de materiais deles durante a noite) tornou a convivência insuportável, e a ONG acabou se mudando para um pequeno galpão alugado, onde ficou por oito meses. Após esse período, conseguiram um espaço coberto dentro do Aterro Sanitário Bandeirantes, cedido pela prefeitura, onde havia uma prensa e uma balança. Mais tarde, com o apoio de outra ONG, obtiveram a doação de uma caminhonete – que foi roubada em 2006 – e uma empilhadeira, além de outros equipamentos.
Surgiu, então, outro problema. Eles perceberam que, para tornar o projeto viável, era preciso garantir uma quantidade de material suficiente para oferecer às indústrias que trabalham com resíduos recicláveis e, também, manter a regularidade da oferta. Aos poucos, foram criando alternativas, como o contato com empresas e condomínios para a doação de resíduos. O projeto foi crescendo e os participantes tinham ganhos de pouco mais de um salário mínimo, quando uma tragédia aconteceu. Em setembro de 2008, um incêndio destruiu o local em que estavam instalados.
Hoje, a Coopercose divide um galpão com outra cooperativa e busca meios de recuperar o que o fogo destruiu. O mais urgente é conseguir um novo espaço para continuar trabalhando. “No momento, preparamos a documentação para que a prefeitura nos ceda um novo terreno”, diz Luzia. Também está sendo encaminhado um pedido de verba para a reforma da empilhadeira e a recuperação da prensa. O que se espera é que os ganhos dos cooperados, que diminuíram muito, voltem a subir quando a ONG conseguir um local e tornar a operar a todo vapor.
Financiamento
Entre as várias alternativas apontadas pelos economistas para incentivar a geração de renda, destaca-se o microcrédito, que hoje recebe atenção especial em todo o mundo devido ao sucesso da experiência pioneira, em Bangladesh, de usar empréstimos como instrumento para impulsionar a renda de populações miseráveis (ver texto abaixo). Inspirado por experiências internacionais, o governo brasileiro instituiu em abril de 2005 o Programa Nacional de Microcrédito Produtivo Orientado (PNMPO), com o objetivo de incentivar a criação de trabalho e renda em pequenos empreendimentos.
Financiado por recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e gerido pelo Ministério do Trabalho e Emprego, o programa concede o crédito de valores que vão de R$ 250 a R$ 15 mil a juros módicos, desde que destinados a atividades produtivas. O PNMPO cresceu bastante nos últimos anos. Em 2005, totalizou R$ 602 milhões em empréstimos, em 632 mil operações. No ano passado, foram R$ 2,28 bilhões, em 1,6 milhão de financiamentos. Ainda faltam, porém, estudos que avaliem o impacto de programas desse tipo no Brasil, diz o professor Gabriel Madeira, da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP).
“Sou cético quanto ao uso de projetos de expansão de crédito para promover a inclusão econômica”, diz Madeira. A seu ver, talvez o Bolsa Família tenha um impacto positivo maior sobre a economia. “Quando o microcrédito é direcionado em excesso, pode-se acabar gerando uma situação da qual as pessoas não consigam sair, fica artificial”, diz o economista.
Ele cita como exemplo alguns programas amplos de microcrédito que têm entre seus beneficiários grupos de agricultores do nordeste. Há uma grande dificuldade de extrair informações sobre esses clientes, e a taxa de pagamento é muito baixa. “No Brasil, o vínculo comunitário nem sempre tem bons resultados”, explica, pois um inadimplente acaba convencendo os vizinhos a não pagar também. Na opinião do economista, o problema é fazer com que o financiamento chegue às pessoas certas, que necessitam dele.
Apesar disso, Madeira afirma que o crédito é importante como instrumento de expansão da economia. No Brasil, o volume de empréstimos ainda é muito reduzido, pois equivale a 45% do Produto Interno Bruto (PIB). No sudeste asiático, esse índice é de 80% e na Europa e nos Estados Unidos, de 100%. Lembrando que “alguns programas de microcrédito funcionam bem e outros, não”, o professor destaca a importância de realizar estudos sobre o assunto no Brasil.
Microcrédito: pioneirismo e exemplo em Bangladesh
Muhammad Yunus é um economista bengali que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2006 por um empreendimento ousado: criou um banco, particular, para combater a pobreza. Em 1972, após o doutoramento nos Estados Unidos, Yunus voltou a Bangladesh, onde constatou as dificuldades das pessoas carentes em obter crédito para poder produzir e vender artesanato e, assim, garantir a sobrevivência. Surgiu então a ideia do Banco Grameen, fundado em 1976 para emprestar pequenas quantias aos pobres. Desse modo nasceu o maior programa de microcrédito que o mundo já conheceu.
O banco de Yunus empresta dinheiro de forma diferente da dos bancos tradicionais. Sem garantias, o crédito é concedido a um grupo em que as pessoas se responsabilizam solidariamente. O Banco Grameen tem hoje uma carteira de cerca de 6,6 milhões de clientes, dos quais 97% são mulheres, e a inadimplência é praticamente inexistente, já que 98,85% dos empréstimos são quitados. O lucro é reinvestido para expandir o negócio, gerando assim um círculo virtuoso.
Yunus acredita que não é a falta de habilidade que torna as pessoas pobres, mas a ausência de iniciativas públicas. “Para eliminar a pobreza, tudo o que temos de fazer é implementar mudanças apropriadas nas instituições e políticas ou substituí-las”, diz.
Revista Problemas Brasileiros
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