País amplia investimentos em estudos sobre o oceano, mas ainda há muito a conhecer e explorar
EVANILDO DA SILVEIRA
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Não há como negar a importância do mar ao longo da história do Brasil. Foi por ele que chegaram seus descobridores e, mais tarde, os invasores, franceses e holandeses. Hoje, é a via de acesso de 95% de seu comércio exterior e o lugar de onde provêm 85% do petróleo que move a economia do país – 1,9 milhão de barris por dia, volume que deve aumentar com a produção da camada pré-sal. Não é de estranhar, portanto, que essa porção do território nacional venha recebendo cada vez mais atenção, tanto do governo como das instituições de pesquisa e de órgãos militares. Na verdade, nunca foram investidos tantos recursos em estudos oceanográficos – insuficientes ainda, vale ressaltar, uma vez que o Brasil pouco conhece e explora suas águas territoriais e as riquezas potenciais que elas comportam.
A 62ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), um dos maiores eventos científicos do país, realizada em julho de 2010 em Natal, teve como tema central “Ciências do Mar: Herança para o Futuro”. De 25 a 30 daquele mês, dezenas de pesquisadores de instituições de todo o Brasil e agentes governamentais, entre eles representantes dos ministérios da Ciência e Tecnologia (MCT) e do Meio Ambiente (MMA), além de militares da Marinha, apresentaram e discutiram os mais diversos aspectos relacionados ao mar.
Um amplo estudo sobre o oceano brasileiro e seus recursos naturais realizado em 2007 pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) e pelo então Núcleo de Assuntos Estratégicos (NAE) da presidência da República é outro indicativo da importância que o país vem dando à questão. O trabalho resultou no relatório em forma de livro Mar e Ambientes Costeiros, lançado recentemente. Realizado sob a coordenação de três pesquisadores das áreas de oceanografia física, biológica e geológica e com a participação de mais de 50 especialistas nessas e em ciências afins, o estudo teve como objetivo apontar prioridades “para orientar o estabelecimento de estratégias governamentais relativas ao desenvolvimento científico e tecnológico em temas ligados ao mar”.
Além de apresentar indicações sobre a melhor maneira de explorar de forma sustentável os recursos marinhos existentes em áreas de interesse para o Brasil no Atlântico Sul e Equatorial, o trabalho traz subsídios à pesquisa necessária para elucidar o papel de regiões oceânicas no clima do território nacional em terra. Para dar uma finalidade prática ao estudo, seus realizadores fazem, no final, três recomendações: criação de uma rede nacional de ciências e tecnologia marinha, manutenção e melhoria da infraestrutura laboratorial dos centros existentes e implantação de um instituto nacional de oceanografia operacional.
Pelo menos parte dessas sugestões deverá se tornar realidade em breve. Durante a reunião da SBPC em Natal, o ministro da Ciência e Tecnologia, Sergio Rezende, anunciou o lançamento ainda neste ano de editais para a criação de dois institutos nacionais de ciência e tecnologia voltados para pesquisas do mar. Segundo Rezende, uma das instituições se dedicará a estudos sobre os litorais norte e nordeste e a outra às regiões costeiras do sul e sudeste. A princípio, ambas receberão R$ 30 milhões para financiar sua implantação e o início das pesquisas.
Tímida fração
O país vem, sistematicamente, destinando recursos a estudos sobre o oceano. “A crescente preocupação com as mudanças climáticas, as descobertas de valor biotecnológico de organismos marinhos e a presença de petróleo na plataforma continental são exemplos de motivações para o financiamento de pesquisas oceanográficas”, diz Maria Cordélia Machado, coordenadora para Mar e Antártica do MCT. “Os investimentos do ministério e seus parceiros vêm crescendo ao longo do tempo e tiveram elevação significativa nos dois últimos anos. Em 2008, por exemplo, houve um aumento de 50% em relação a 2007. Já 2009 foi um marco para as ciências do mar no Brasil, com um crescimento dos recursos financeiros de 122% em relação ao ano anterior.”
Em números absolutos, o valor aplicado passou de R$ 5,5 milhões em 2004 para R$ 23 milhões em 2009, ano que teve o maior número de editais lançados para projetos em oceanografia. Além dos recursos provenientes do MCT, há outros, dispersos e, por isso, difíceis de mensurar. “Ainda não contamos com um programa de ciências do mar, que permita centralizar os investimentos da área e garantir periodicidade no que se refere ao lançamento de editais”, explica Maria Cordélia.
Segundo o pesquisador Fábio Hazin, diretor do Departamento de Pesca e Aquicultura da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e um dos coordenadores do estudo do CGEE, é preciso reconhecer que as pesquisas na área de ciências do mar no país tiveram um grande impulso nas duas últimas décadas, com alguns projetos estruturadores importantes, entre os quais o Programa de Avaliação do Potencial Sustentável de Recursos Vivos na Zona Econômica Exclusiva (Revizee) e o Programa de Avaliação da Potencialidade Mineral da Plataforma Continental Jurídica Brasileira (Remplac). Paralelamente, vem ocorrendo uma ampliação dos cursos de nível superior com vocação na área, como engenharia de pesca, oceanografia e biologia marinha.
Ainda assim, as necessidades são maiores que os recursos para uma exploração eficiente das águas territoriais brasileiras. “Infelizmente, diante das dimensões do mar nacional e, acima de tudo, do potencial de benefícios que ele pode trazer ao país, é preciso reconhecer também que o que já foi feito é uma tímida fração do que ainda resta por fazer”, diz Hazin. De acordo com ele, um dos grandes problemas para o desenvolvimento das ciências do mar no Brasil é a falta de infraestrutura, em particular de embarcações de pesquisa e treinamento, sem as quais os estudos pesqueiros e oceanográficos, em grande parte dos casos, simplesmente não podem ser realizados.
O físico Edmo Campos, da Universidade de São Paulo (USP), Ph.D. em meteorologia e oceanografia física, concorda. Segundo ele, o Brasil está muito atrasado, na comparação com várias outras nações. “Historicamente, a pesquisa oceânica no país tem se limitado às zonas costeiras, onde não é necessário o uso de embarcações oceanográficas de grande porte”, explica. “O pouco que se sabe sobre regiões do Atlântico mais ao largo é fruto do esforço de estudos empreendidos pelo Instituto de Oceanografia da Universidade de São Paulo (IO-USP), a bordo do navio Professor Besnard, e da grande contribuição da Marinha do Brasil, que fornece embarcações para pesquisas em águas mais profundas.”
Recursos variados
Hazin, que também é presidente da Associação Brasileira de Engenharia de Pesca, lembra outro aspecto no qual o país tem deficiências. “Conhecemos pouco e exploramos mal nossas águas territoriais, tanto na pesca costeira como oceânica, por razões diversas”, diz. “No caso da primeira, a maioria dos recursos pesqueiros já se encontram sobre-explorados e muitos deles estão em declínio, principalmente pela degradação dos ecossistemas devido à poluição urbana (esgoto doméstico não tratado), agrícola (fertilizantes e defensivos) e industrial, além da pesca excessiva e desordenada.”
Em relação à pesca oceânica, a participação brasileira na captura de atuns e espécies afins, por exemplo, é ainda tímida. Segundo Hazin, isso acontece, em grande parte, devido ao fato de o país não dispor de uma frota capaz de explorar economicamente esses recursos – uma deficiência agravada pela falta de tecnologia e de mão de obra especializada.
As riquezas que podem ser extraídas do oceano, no entanto, vão muito além de petróleo, gás e pescados. Há outros recursos minerais e vivos que podem ser aproveitados. Um exemplo são as imensas reservas dos chamados granulados marinhos, que nada mais são que areia e cascalho. “Esses depósitos cada vez mais despertam interesse, tendo em vista sua utilização na construção civil”, explica o oceanólogo Lauro Calliari, da Universidade Federal do Rio Grande (Furg). “Esse material, cuja importância aumenta à medida que escasseia no continente, é também empregado na recuperação de praias, especialmente aquelas próximas a centros urbanos ou locais turísticos que estão sofrendo erosão acelerada.”
Entre os recursos minerais, há ainda os chamados nódulos polimetálicos, que são bolotas com altas concentrações de metais como óxidos de ferro e manganês, além de outros elementos metálicos economicamente importantes, como níquel, cobre e cobalto. Eles estão espalhados pelo solo marinho, mas ainda não existe tecnologia para sua exploração sustentável e economicamente viável. Vários países, no entanto, inclusive o Brasil, estão estudando formas de aproveitar esse material.
De acordo com a Marinha, o oceano conta ainda com depósitos de minerais pesados valiosos, derivados da erosão de rochas continentais, como ouro, platina, magnetita, óxidos de titânio e mesmo diamantes, além de outros, que já são explorados em diversas partes do mundo. “Tailândia, Malásia e Indonésia, por exemplo, extraem cassiterita em suas plataformas continentais há mais de um século”, informa o Centro de Comunicação Social da Marinha. “Japão e Nova Zelândia retiram magnetita do mar. No Alasca e no Oregon, nos Estados Unidos, a exploração do ouro é feita nas praias.”
Além dos minerais
A par dos recursos energéticos (petróleo e gás), minerais e pesqueiros, Hazin lembra que o mar é uma importantíssima fonte de renda baseada no turismo e no lazer para a população. Além disso, não se pode esquecer seu potencial em termos de recursos vivos. “A vida surgiu no oceano e ainda é lá que reside a maior parte da biodiversidade do planeta”, diz. “É algo que não só tem um valor intrínseco incalculável como pode se traduzir em riquezas para o país por meio da biotecnologia.”
As perspectivas são amplas. Muitos organismos marinhos, como algas e esponjas, podem fornecer substâncias para a produção de cosméticos e novos medicamentos. A primeira droga para tratamento eficaz da aids, o AZT, por exemplo, teve origem numa substância extraída de uma esponja. Entre as algas, além das espécies usadas na fabricação de produtos de beleza, há outras que servem como suplementos alimentares.
Edmo Campos faz questão de ressaltar outro aspecto: “Para o Brasil, com seus mais de 8 mil quilômetros de costa, entender os impactos de mudanças no Atlântico Sul em decorrência das variações do clima é de fundamental importância”, explica. É por essa razão também que o físico do IO-USP Belmiro Mendes de Castro, um dos coordenadores do estudo do CGEE, diz que o país deve começar a fazer a chamada oceanografia operacional, que se caracteriza pela coleta contínua e automática de dados do mar. “Para isso, seria necessário implantar uma rede de equipamentos como a que já existe na área de meteorologia. Entre as informações colhidas estariam, por exemplo, temperatura da água, salinidade, correntes, parâmetros químicos, oxigenação e o nível do oceano.”
Amazônia Azul
Com a finalidade de realçar a importância estratégica do oceano, a Marinha designou como Amazônia Azul a região compreendida pelas águas jurisdicionais brasileiras. Como alerta Hazin, não se trata de termo científico. “É uma expressão de conotação política, que tem como objetivo chamar a atenção da sociedade, por meio de uma analogia com a Amazônia em terra, para a imensidão e a riqueza do mar”, explica o pesquisador. “Nesse sentido, acho que é mais do que adequada.”
Até 3 de setembro deste ano, a Amazônia Azul tinha cerca de 3,6 milhões de quilômetros quadrados. Nesse dia, por meio de uma resolução da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (Cirm), o Brasil colocou sob sua proteção mais 960 mil quilômetros quadrados – área um pouco maior que a do estado de Mato Grosso –, que vinham sendo pleiteados na Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) da Organização das Nações Unidas (ONU). Com base nessa decisão, nenhuma empresa ou estado estrangeiro poderá explorar essa área da plataforma continental sem autorização do governo brasileiro. Dessa forma, as águas jurisdicionais do Brasil passam a ter 4,5 milhões de quilômetros quadrados – o que corresponde a 52% da área continental do país. Para efeito de comparação, a Amazônia Legal tem aproximadamente 5,2 milhões de quilômetros quadrados, equivalentes a 61% do território terrestre nacional, que é de 8,5 milhões de quilômetros quadrados.
A história da delimitação da extensão das águas jurisdicionais dos países litorâneos começou na metade do século passado. Até então, todos aceitavam a existência do denominado mar territorial, com 3 milhas náuticas ou marítimas de largura (1 milha marítima equivale a 1.852 metros), a contar da linha da costa. Esse limite correspondia ao alcance dos canhões da época, instalados nas fortificações que existiam no litoral de cada nação. Aos poucos, no entanto, os Estados costeiros começaram a perceber que o oceano continha muitas riquezas e passaram a discutir formas de ampliar seus domínios nessa massa líquida.
Por isso, no final da década de 1950, a ONU iniciou a elaboração do que viria a ser, mais tarde, a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM). O Brasil participou de todas as reuniões, com representantes do Ministério das Relações Exteriores e da Marinha. Em 1982, a CNUDM ficou pronta, mas só passou a vigorar para o Brasil em novembro de 1994, quando o país a ratificou. Até hoje, 156 nações fizeram o mesmo. Entre os que ainda não a assinaram estão os Estados Unidos.
Expansão
Entre outras determinações, a convenção estabeleceu que o mar territorial dos Estados costeiros teria 12 milhas de largura a contar da costa, mais uma zona contígua do mesmo tamanho, a partir do limite externo do primeiro. A maior novidade da convenção, porém, foi o estabelecimento da zona econômica exclusiva (ZEE), com 200 milhas de largura, englobando, portanto, as duas primeiras áreas. Os direitos que o país tem sobre cada uma dessas regiões são diferentes, no entanto. No mar territorial e no espaço aéreo a ele sobrejacente a soberania é plena.
O mesmo não ocorre em relação à zona contígua e à ZEE. A primeira funciona como uma área de proteção ao mar territorial e, embora nesse caso a soberania do Estado não seja plena, ele tem a obrigação de fiscalizá-la para evitar e reprimir infrações a normas sanitárias, de imigração e outras vigentes em seu território. Na ZEE, é prerrogativa do país que a detém a exploração científica e econômica dos recursos vivos e não vivos do subsolo, do solo e das águas. Se não tiver condições de fazer isso, no entanto, não pode impedir que outras nações o façam. Tanto na zona contígua como na ZEE, é obrigatória a permissão para trânsito de navios, inclusive de guerra, de outras bandeiras.
A CNUDM estabeleceu ainda que no prazo de dez anos, a partir de sua ratificação, todo país poderia solicitar o aumento da área jurisdicional de sua plataforma continental até um limite máximo de 350 milhas. Nessa nova extensão, o Estado costeiro tem o direito de explorar os recursos do solo e subsolo, mas não os vivos da camada líquida. De olho nessa potencial riqueza, o Brasil foi o segundo a apresentar uma proposta de expansão de suas águas – o primeiro foi a Rússia –, em setembro de 2004.
Para elaborá-la e embasá-la, foi criado em 1989 o Plano de Levantamento da Plataforma Continental (Leplac), que durante mais de dez anos reuniu dados para justificar a pretensão do país. Depois de analisá-la, a CLPC não concordou com a reivindicação relativa a cerca de 190 mil quilômetros quadrados dos 960 mil pretendidos. O Brasil, por sua vez, não aceitou a decisão da comissão e tem o direito de apresentar nova proposta, com mais dados e informações sobre a área que pleiteia. A previsão é de que isso ocorreria ainda neste ano, e a CLPC deverá se pronunciar até 2012. Por ora, com a resolução de 3 de setembro, o Brasil não permitirá explorações estrangeiras nesses 960 mil quilômetros quadrados, até que saia a decisão final da ONU.
Revista Problemas Brasileiros
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