sábado, 3 de julho de 2010

A nova revolução quirguiz


ERA PÓS-SOVIÉTICA

A nova revolução quirguiz

O aumento do preço da energia levou o povo às ruas e derrubou o presidente Bakiev. Não é possível prever se o governo interino conseguirá retomar o controle do Estado e corresponder às expectativas de uma população que afunda cada vez mais na pobreza. O Quirguistão está à beira de uma guerra civil

por Vicken Cheterian

Apresentado há apenas dez anos como um “oásis de democracia” no coração do Cáucaso, o Quirguistão está à beira da implosão e da guerra civil. No último dia 6 de abril, exasperados com o aumento dos preços da energia e a corrupção endêmica nos mais altos escalões do Estado, habitantes da cidade de Talas, no noroeste do país, saíram às ruas para manifestar sua cólera.

No mesmo dia, tomaram os principais centros administrativos da cidade e sequestraram o vice-primeiro-ministro e o ministro do Interior. No dia seguinte, a insurreição já havia tomado conta de Bishkek, a capital, onde 5 mil pessoas marchavam rumo ao palácio presidencial. O saldo de uma jornada de confrontos com as forças oficiais foi de 84 mortos e milhares de feridos.

Explosões de violência dessa natureza são um fenômeno desconhecido num país onde o fato mais relevante até então havia sido a morte de seis manifestantes por ocasião de enfrentamentos com a polícia em Asky, em 2002. Num primeiro momento, o presidente Kurmanbek Bakiev refugiou-se no sul, no seu feudo de Jalal-Abad, para tentar mobilizar os partidários da região. Uma vez que a contramanifestação organizada pelo governo em Osh, a segunda maior cidade do país, não conseguiu reunir mais que algumas centenas de pessoas, o presidente deixou o Quirguistão, em 15 de abril, e se encontra desde então no Cazaquistão.

Ninguém pode prever se o governo interino, dirigido pela antiga ministra das Relações Exteriores, Roza Otounbaeva, conseguirá retomar o controle do Estado e corresponder às expectativas de uma população que, a cada dia, vai afundando mais na pobreza.

A era Bakiev desponta desde já como um período de retrocesso na democratização do país. Quando ascendeu ao poder, em 2005, contando com os ventos favoráveis da “revolução das tulipas”, que promovera a derrubada do regime do presidente Askar Akayev, Kurmanbek Bakiev prometeu democracia e probidade.

Entretanto, mal assumiu suas funções, o novo presidente adotou práticas repressivas e deu mostras da mesma inclinação pelo nepotismo que seu predecessor. Sem demora, encampou a chamada “lei da família”,nomeando parentes e amigos para postos-chave nos serviços secretos e nas embaixadas, assumindo o controle absoluto das empresas nacionais.1

Em Bishkek, a própria palavra “privatização” é motivo de piada, pois se tornou sinônimo de confisco dos bens do Estado para fins pessoais. O confisco das empresas públicas mais lucrativas em proveito de Maxim Bakiev, filho do presidente, é um dos exemplos mais reveladores do sistema implantado em benefício de um clã capaz de cometer toda e qualquer exação para alcançar seus objetivos. Assim, os partidos da oposição e os veículos de comunicação sofreram, ao longo dos últimos meses, perseguições sempre mais intensas por parte das autoridades.

Entre outras, foram tomadas todas as medidas possíveis para impedir a difusão de informações provenientes da Itália, que davam conta da prisão do sócio de Maxim Bakiev, Yevgueni Gurevich, acusado de colusão com a máfia e desvio de fundos. De fato, Gurevich teria tramado calotes contra várias empresas de telecomunicações italianas, num montante de 2 bilhões de euros.2

Os métodos empregados pela família Bakiev para calar as críticas, quer neste caso quer em outros, não deixam de lembrar aqueles dos clãs mafiosos. Em 2006, o dirigente da oposição quirguiz, Omurbek Tekebayev, foi preso no aeroporto de Varsóvia; a polícia encontrou heroína em sua bagagem. Não demorou muito para descobrirem que se tratava de um golpe armado pelos serviços secretos quirguizes, então dirigidos por Zhanibek Bakiev, irmão do presidente. Em dezembro de 2009, o jornalista Genadi Pavliuk foi empurrado do alto de um prédio em Almaty, no Cazaquistão. A oposição suspeitou fortemente dos escritórios secretos do regime.

Território em disputa

O agravamento das dificuldades sociais constitui outro fator que desencadeou a derrubada do governo. Os dividendos obtidos com a exploração das minas de ouro de Kumtor, a principal fonte de renda nas exportações do país, vêm diminuindo, enquanto a participação da renda proveniente dos expatriados que vivem na Rússia (um terço do país) reduziu-se consideravelmente desde a crise econômica e financeira de setembro de 2008.

Segundo números fornecidos pelo Banco Mundial3, a dívida externa quirguiz alcançaria o montante de 2,2 bilhões de euros, ou seja, 48% do Produto Interno Bruto. Cerca de 40% dos cidadãos viveriam hoje abaixo do limite de pobreza, enquanto o salário mensal médio não superaria 50 euros. Edil Baisalov, um dos porta-vozes do governo interino, anunciou recentemente a falência do país, uma vez que as reservas em dinheiro do Estado não somariam mais que 986 milhões de soms – ou seja, 16 milhões de euros.4

A maior parte dos observadores internacionais avaliou esses eventos como sendo o resultado de uma luta de influência entre Washington e Moscou. De fato, o Quirguistão é o único país que permite a coexistência em seu território de bases militares americanas e russas. Embora o papel atribuído ao Kremlin pareça exagerado, seu reconhecimento imediato do governo interino indica o quanto Moscou parece satisfeito com a derrubada do presidente Bakiev. As relações entre os dois países se deterioraram após a assinatura, em fevereiro de 2009, de um acordo de ajuda econômica de US$ 2,1 bilhões em favor do Quirguistão.

Por ocasião daquela visita, o presidente Bakiev anunciou o fechamento iminente das instalações americanas. Mas isso não o impediu, após receber um quarto da quantia prometida, de concluir com Washington um novo acordo estipulando a manutenção da base. Essa afronta conduziu Moscou a suspender a ajuda.

Enquanto o Kremlin comemora a “mudança de regime” ocorrida em Bishkek, Washington parece mais constrangido. De fato, a base aérea de Manas é elemento-chave da estratégia dos Estados Unidos e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Afeganistão. Além do interesse político que representa a sua manutenção, ela se encontra também no cerne de um caso de corrupção. Com o objetivo de conservar suas posições na região, o Pentágono teria concluído acordos com a “família”, como já ocorrera no tempo do presidente Akayev, mas reservando, desta vez, os contratos mais lucrativos a Maxim Bakiev.5

Os maiores lucros teriam sido embolsados por ocasião da venda aos Estados Unidos, a preço de mercado, de óleo combustível doméstico comprado na Rússia a uma tarifa preferencial. Em 1º de abril, Moscou exigiu do Quirguistão que ele pagasse as taxas devidas sobre a venda de energia. Para justificar essa reviravolta, as autoridades russas alegaram a imposição de novas regulamentações alfandegárias sobre o óleo combustível reexportado para países terceiros.

O governo interino pede agora um inquérito sobre os escândalos do óleo combustível de Manas.6 Ao negociar com o clã Bakiev, com o objetivo de preservar suas posições na região, Washington optou por fazer vista grossa tanto para as promessas não cumpridas de democratização quanto para as questões de transparência.

Revolução feminina

Foi quando se juntou à oposição, na primavera de 2005, depois do presidente Akayev lhe ter negado o direito de concorrer a um mandato eletivo, Roza Otounbaeva, uma peça importante no jogo de xadrez político regional. Oriunda das melhores escolas do antigo bloco do Leste, ela seguiu carreira no âmbito do Ministério Soviético das Relações Exteriores até ser nomeada ministra da mesma pasta na jovem República quirguiz, após a queda da União Soviética. Em 2004, ela se encontrava na Geórgia, onde era representante especial das Nações Unidas durante a Revolução das Rosas. Em 24 de março de 2005, o dia da queda do regime de Akayev, ela participava de um ato de protesto ao lado de Bakiev.

Contudo, um ano apenas após a “revolução das tulipas”, Roza manifestou sua insatisfação perante uma plateia de jovens militantes vindos de todo o país: “Nada mudou, o regime de Akayev continua vivo”. E lamentou: “Nós somos um país de eterna transição. Os cidadãos não enxergam diferença alguma entre o poder e a oposição”.

Todavia, mostrou-se determinada e imbuída de esperança. “Há muito por ser feito para ampliar o campo da democracia. Chegou o tempo de formar partidos políticos.” A esse respeito, Roza Otounbaeva não dissimulava sua impaciência para com os países ocidentais, e em particular com a indiferença da Europa. “Eles nada fazem, a não ser outorgar microcréditos, enquanto nós precisamos tanto construir um sistema político multipartidário.”

Os eventos de abril revelam mais uma vez a fragilidade do Estado quirguiz. Em 2005, manifestações que não tinham mobilizado mais de 10 mil a 15 mil pessoas foram suficientes para derrubar o governo em um dia. O presidente Akayev, que tinha uma reputação de autocrata iluminado, não achara necessário dotar-se de um arsenal repressivo. Já as forças da ordem de Kurmanbek Bakiev não hesitaram em abrir fogo contra a multidão.

Nem por isso o regime deixou de ruir da mesma forma. O grande número de vítimas não augura nada de bom e revela o elevado nível de tensão num país que se gabava, até recentemente, de ser a Suíça da Ásia Central.

Recomeço

Formar um governo e estabilizar a situação não será nada fácil num meio ambiente político onde os partidos contam tantos chefes quanto militantes. Roza Otounbaeva e sua equipe deverão começar tudo do zero. Caberá a eles promulgar uma nova Constituição, criar administrações eficientes e instalar um Parlamento, mesmo que o sistema multipartidário ainda não tenha sido instaurado.

Tudo isso em meio a um contexto econômico muito preocupante. O fardo da dívida está ficando mais pesado e, por sua vez, os principais parceiros do Quirguistão vêm enfrentando grandes dificuldades, inclusive a Rússia. Pode um reformador, por puro voluntarismo e em plena recessão econômica, ser bem-sucedido ao conduzir uma transição rumo a um Estado democrático, num país do qual ele não controla nem as instituições nem a cultura?

Existe também grande preocupação em relação a uma possível cisão regional. Uma imensa barreira montanhosa, com desfiladeiros situados a mais de 3 mil metros de altitude, separa os principais polos urbanos: Bishkek, no norte, e Osh, no sul. Fomentada nas cidades do Sul, a “revolução das tulipas” havia derrubado o presidente Akayev, originário do norte. Os eventos ocorridos recentemente nas aglomerações do Norte acabam de forçar a queda do regime Bakiev, originário do sul. A demarcação entre norte e sul é uma realidade tão política quanto geográfica.

Contudo, o mosaico de componentes regionais, clânicos e étnicos que compõe a nação parece fragmentado demais para permitir a constituição de reais blocos políticos, como ocorreu, por exemplo, na Ucrânia, por ocasião da revolução laranja.

Os eventos do Quirguistão têm como pano de fundo a crise econômica mundial e o fracasso das políticas liberais da era pós-soviética. E sinalizam que as preocupações de ordem social estão voltando à tona nas repúblicas da Ásia Central. Em 1992, quando os dirigentes da nova Federação da Rússia operaram sua guinada liberal, reduziram as subvenções públicas e procederam a privatizações maciças, eles temiam uma violenta reação popular. Contudo, a liberalização dos preços e seu impacto desastroso sobre as condições de vida das populações não provocaram, na época, levante algum.

As principais crises que sacudiram a região no decorrer das duas décadas passadas foram motivadas por reivindicações políticas ou étnicas, e denunciaram com frequência manipulações eleitorais ou fatos de corrupção. Em Talas e em Bishkek, foi o aumento dos preços da energia que motivou a população a ocupar as ruas. A nova revolução quirguiz tem tudo para entrar na história como o primeiro movimento social da era pós-soviética.

Vicken Cheterian é jornalista, autor de War and peace in the caucasus, Russia´s trouble 3d frontier, Nova York, Hurst/Columbia University Press, 2008.

1 “A inevitável lei da família no Quirguistão” [“Inevitable family rule in Kyrgyzstan”, Ferghana.ru, 6 de novembro de 2009.

2 “Quirguistão: o consultor financeiro da família Bakiev é sócio da máfia italiana?” [“Kyrgyzstan: Is the financial consultant of Bakiev’s family the associate of Italian mafia?”], Ferghana.ru, 10 de março de 2010.

3 www.worldbank.org.kg

4 Matt Siegel, “Economy in tatters, Kyrgyzstan awaits Russian aid”, AFP, Bishkek, 11 de abril de 2010.

5 Maxim Bakiev levantou 6 milhões de euros por mês vendendo combustível à base aérea de Manas. “Venda de combustível aos Estados Unidos em questão no Quirguistão” [“Fuel Sales to U.S. at issue in Kyrgyzstan”, New York Times, 11 de abril de 2010.

6 Alan Cullison, Kadyr Toktogulov e Yochi Dreazen, “Líderes quirguizes acusam governo de enriquecer por Estados Unidos” [“Kyrgyz Leaders say U.S. Enriched Regime”, Wall Street Journal, New York, 11 de abril de 2010.

Le Monde Diplomatique Brasil

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