Por Eduardo Araia
Criação de aves na China, região da Ásia afetada pela gripe aviária. O vírus que causa a doença apresenta taxa de mortalidade de 60%.
Março de 2010 marca o aniversário de um fato que certamente não vai ser comemorado: foi há um ano que a gripe suína (oficialmente, H1N1) surgiu para o mundo, no México. Com casos confirmados em mais de 200 países e cerca de 13.500 mortos até janeiro, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a doença prepara-se para sua segunda temporada - que pode ser bem pior que a primeira, caso as mutações sofridas pelo microrganismo nestes meses lhe derem mais resistência e agressividade.
A H1N1 é uma das cerca de 45 moléstias transmitidas de animais para humanos que a ONU registrou nas duas últimas décadas. Segundo os cientistas, esse número deve crescer nos próximos anos, graças a algumas características típicas do atual estágio de desenvolvimento humano: aquecimento global, urbanização em contínuo crescimento e consequente desequilíbrio ambiental.
Climas mais quentes, por exemplo, são uma ótima notícia para insetos que servem de vetores para diversas moléstias. "Os insetos são perfeitamente sensíveis a mudanças de temperatura", salienta um estudo de 2005 preparado pelo Centro da Saúde e do Ambiente Global da Universidade Harvard. O mosquito Anopheles, que transmite a malária, em geral não se reproduz nem se desenvolve se a temperatura média mínima ficar abaixo de 16ºC; por seu lado, o Aedes aegypti, transmissor da dengue, não sobrevive a temperaturas abaixo de 10ºC. O clima mais quente e um índice de umidade maior, no entanto, favorecem a procriação desses animais e, por tabela, aumentam o número de picadas, o nível de atividade e a frequência de incubação de vírus e parasitas dentro deles.
O calor favorece a proliferação de insetos que transmitem várias doenças
As drásticas alterações sofridas pelo ambiente estão influenciando os padrões de doenças humanas de um modo não visto desde o advento da revolução industrial, no início do século 19. Segundo Montira Pongsiri, cientista de saúde ambiental da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês), que trabalha em Washington (EUA), as transições anteriores observadas na história humana tiveram um impacto devastador em termos da propagação de doenças. "Parece que estamos passando por uma mudança distinta na ecologia global da doença", observa ela. "O recente aparecimento de doenças infecciosas parece ser motivado pela globalização e pelo desequilíbrio ecológico."
Montira e oito colegas examinaram cinco doenças emergentes e re-emergentes - malária, doença de Lyme (transmitida por carrapatos), hantavírus (espalhado por ratos e camundongos), febre do Nilo Ocidental (transmitida por mosquitos) e esquistossomose (espalhada por caramujos de água doce). Os cientistas argumentam que mudanças no uso da terra, práticas agropecuárias e clima estão por trás do aumento do número de epidemias.
Entre as doenças que saltaram a barreira animal-homem e deflagraram uma pandemia global, a mais conhecida é a Aids, causada pelo vírus HIV. Supõe-se que o HIV passou de chimpanzés para humanos na África Ocidental, no século passado, e mais de 25 milhões de pessoas ao redor do mundo já morreram por sua causa.
As Principais ameaças
Aids
Atribui-se o surgimento do HIV, o vírus causador da Aids, à incursão humana nas florestas da África Ocidental, impulsionada pelo avanço populacional. A crescente demanda por alimentos levou ao aumento do comércio de carne de caça e ao abate de chimpanzés, supostamente a origem animal do HIV. As pessoas que comeram carne de chimpanzé, ou cujo sangue entrou em cortes ou feridas, foram expostas a novos agentes infecciosos, fornecendo assim o terreno ideal para a doença se desenvolver.
A Aids teria surgido na segunda metade do século 20, mas não foi identificada em humanos até jovens gays começarem a morrer de uma doença misteriosa em San Francisco (EUA) nos anos 1980. A moléstia já vitimou mais de 25 milhões de pessoas.
Dengue
Doença passada de primatas para o homem, a dengue é transmitida principalmente pelos mosquitos Aedes aegypti (o mais encontrado no Brasil, transmissor também da febre amarela) e Aedes albopictus. Típica dos países tropicais, ela é a mais comum das moléstias que transitam de animais para o homem: chega a atingir cerca de 100 milhões de pessoas por ano. Só no Brasil, o Ministério da Saúde registrou pouco menos de 407 mil casos de janeiro a agosto de 2009, ante mais de 758 mil em igual período do ano anterior. Duas derivações mais graves da doença, a febre hemorrágica e a síndrome de choque da dengue, afetam pelo menos 500 mil pessoas por ano e têm taxa de mortalidade de até 10% para pacientes hospitalizados e de 30% para pacientes sem tratamento. É caracterizada de início por sintomas como febre alta, mal-estar, anorexia, cefaleias, dores musculares e no olhos. No caso da febre hemorrágica, depois de a temperatura do corpo baixar podem surgir hemorragias internas e coagulação intravascular em área extensa, cujas consequências podem ser letais.
Febre do nilo ocidental
Essa doença de aves transmitida por mosquitos irrompeu em Nova York em 1999 e 2000, aparentemente trazida por navios que levavam pássaros exóticos para colecionadores norteamericanos. Dos mais de 50 nova-iorquinos então hospitalizados, pelo menos 10 morreram. O vírus foi detectado pela primeira vez no distrito do Nilo Ocidental, em Uganda, em 1937. A doença é muitas vezes acompanhada de febre alta e dor de cabeça; nos casos mais graves, pode causar encefalite. Focos já foram registrados em Israel, Romênia, França, Portugal, Itália, Rússia e EUA; casos esporádicos e epidemias em humanos e cavalos têm ocorrido na Europa desde os anos 1960. Mudanças no uso da terra, como o desmatamento, e a perda de hábitats de aves devem aumentar a incidência da moléstia. Pesquisadores israelenses descobriram que os surtos acontecem após períodos anormais de clima quente e seco. Os mosquitos transmissores, porém, podem surgir em clima bem mais temperado: em 2009, por exemplo, cientistas da Suíça encontraram uma espécie transmissora no centro do país.
Imagem das moléculas de proteína que compõem a superfície de uma partícula do vírus causador da febre do Nilo Ocidental, obtida por cientistas da Universidade Purdue (Estados Unidos). As proteínas se instalam em uma célula hospedeira, constituindo uma elaborada forma geométrica. Conhecer a estrutura dessas proteínas poderá ajudar no esforço para desenvolver agentes antivirais.
Gripe aviária
O vírus da gripe aviária, que devastou bandos de galinhas e patos no Extremo Oriente, representa a maior ameaça potencial para a raça humana. Desde 2004, ela já infectou 442 pessoas, das quais 262 morreram - uma taxa de mortalidade de 60%. Em 1918, 1957, 1968 e 2009 a gripe transitou das aves ou suínos para humanos. As pandemias do século 20 custaram milhões de vidas. Para tornar o quadro mais complexo, na última década, tem havido um enorme crescimento no número de aves domésticas na China, o país mais populoso do mundo. Famílias e suas aves tradicionalmente ocupam o mesmo espaço ali, criando condições quase perfeitas para a mistura de vírus e sua mutação em uma cepa capaz de se espalhar amplamente entre os seres humanos.
Hantavírus
Em 1993, um jovem de origem indígena do Novo México (EUA), acometido por uma espécie de gripe, foi levado às pressas para um hospital, mas morreu rapidamente. Foi o primeiro caso conhecido da síndrome pulmonar por hantavírus, moléstia espalhada por ratos e caracterizada por febre alta, calafrios e problemas respiratórios. Além da doença pulmonar, que mata 80% das pessoas infectadas, a hantavirose também causa a febre hemorrágica, que resulta em hemorragia interna generalizada. Não há tratamento. Estima-se que há entre 60 mil e 150 mil casos no mundo por ano. Os riscos se tornam maiores com qualquer grande aumento do número de ratos, como ocorre com a urbanização. A epidemia de 1993 nos EUA sucedeu anos de seca, encerrada com pesadas chuvas. Uma forma menos grave da doença é endêmica no norte da Suécia, onde há cerca de 4.500 casos por ano. A proliferação de espécies de rato, muitas das quais imunes ao hantavírus, favorece o homem no caso dessa moléstia. Elas competem com os ratos infectados, reduzindo seu número e, em consequência, o risco de transmissão da doença.
Malária
Transmitida por mosquitos, a malária está confinada em grande parte nas zonas tropicais e subtropicais da África subsaariana, do Sul e Sudeste Asiático e das Américas Central e do Sul. Ela causa pelo menos 1 milhão de mortes e 300 milhões de casos de febre por ano. Na África ocorrem 90% dos casos de morte. A cepa mais letal do protozoário causador da doença, o Plasmodium falciparum, está se espalhando em novas regiões, e a resistência aos remédios tem crescido. O aquecimento global e mudanças na diversidade vegetal deverão transportar a doença para novas regiões. As temperaturas mais elevadas levam o mosquito a digerir o sangue mais rapidamente e a se alimentar mais vezes, enquanto o parasita completa seu ciclo de vida em tempo menor, o que favorece sua reprodução. Com o avanço da malária, calcula-se que até 2080 cerca de 320 milhões de pessoas poderão ser afetadas pela doença.
Raiva
A raiva é a mais letal doença conhecida: sua taxa de mortalidade ronda os 100%. É associada a cães, mas nas últimas décadas começou a contaminar outros animais, como guaxinins (EUA), aumentando assim a ameaça aos seres humanos. A ONU divulgou um "notável aumento" no ano passado no número de países que buscam contribuir para o controle da raiva nas populações de cães.
Montira e seus colegas dizem que o número de pessoas que sucumbiram a doenças infecciosas caiu no mundo desenvolvido durante a Revolução Industrial, mas o incremento da produção e os níveis de poluição aumentaram a incidência de doenças crônicas, incluindo câncer, alergias e defeitos de nascimento. Agora, estamos à mercê de outra transição epidemiológica, conduzida pela destruição de hábitats de plantas e animais, pela perda de espécies e por mudanças que têm deixado mais pessoas em contato mais próximo com os animais do que em qualquer outra fase da história humana, afirmam os cientistas ao jornal Bioscience.
Um fator-chave tem sido a crescente urbanização, o que resultou em humanos se mudando para áreas virgens onde entraram em contato mais próximo com os animais. Ao mesmo tempo, a globalização fez com que doenças surgidas recentemente fossem transmitidas de maneira mais rápida e disseminada do que no passado.
De acordo com Jan Slingenbergh, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), as mudanças na criação de animais alteraram a circulação de vírus e bactérias, incluindo a gripe capaz de infectar seres humanos. Em países como a China, a maior demanda por carne de aves levou a um aumento maciço nas populações de aves aquáticas domésticas, disse ele. Só no sul da China já existem cerca de 700 milhões de patos domésticos.
No caso da gripe, um número crescente de subtipos virais passou de animais selvagens para aves que vivem em contato mais próximo com seres humanos. Uma expansão similar no número de cepas de gripe em suínos também tem sido vista ao longo da última década. "No fim dos anos 1990, havia apenas um subtipo de gripe suína. Agora, existem três subtipos, cada um com várias cepas", acrescenta Slingenbergh.
O comportamento desses novos vírus é imprevisível - os cientistas não sabem qual é a probabilidade de eles vencerem a barreira entre as espécies e os humanos. A multiplicação desses microrganismos, porém, dá-lhes uma chance maior de isso acontecer, afirma Slingenbergh. Para ele, os vírus da gripe estão ficando mais próximos das pessoas e dos alimentos, e as práticas agropecuárias são as culpadas. "Não há evidências que sugiram que isso vai acabar em breve", observa ele. "A agropecuária parece destinada a continuar a crescer por mais duas décadas, e estamos apenas no início da mudança climática."
Jovens artistas tailandesas exibem amostras bemhumoradas de máscaras sanitárias nesta foto de julho de 2009. As vendas de máscaras explodiram no Oriente naquela época do ano, refletindo os temores da população em relação à gripe H1N1.
Revista Planeta
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