domingo, 4 de julho de 2010

O futuro das cidades - Saturação das metrópoles


O futuro das cidades

Saturação das metrópoles

A urbanização extensiva de regiões pobres e emergentes revolucionou os modos de ser e agir de grande parte da humanidade. Ao mesmo tempo origem e consequência das migrações que intensifica, ela cria novas estratificações sociais e acentua o movimento de transformação do ecossistema global pelo ser humano

por Philip S. Golub

Pela primeira vez na história da humanidade, a porção da população mundial que vive em áreas urbanas ultrapassou, entre 2007 e 2008, a daquela que vive em zonas rurais. Agora, mais de 3,3 bilhões de pessoas moram em cidades. Destas, mais de 500 milhões estão em megalópoles com mais de 10 milhões de habitantes ou em grandes cidades com mais de 5 milhões de habitantes. Daqui para frente, projeções da Organização das Nações Unidas (ONU) apontam para um aumento significativo da taxa de urbanização nas próximas décadas, que deve atingir 59,7%, em 2030 e 69,6%, em 2050. Os novos e antigos centros urbanos vão absorver a maior parte do crescimento que está por vir.1

Tal transformação em larga escala vai afetar, sobretudo, as regiões pobres e emergentes mais populosas. Já fortemente urbanizados, os países mais desenvolvidos devem experimentar um aumento relativamente pequeno do índice de população urbana: dos 74% atuais para cerca de 85% em meados deste século, impelindo as possibilidades de expansão ao limite. O mesmo vale para a América Latina, em razão de sua urbanização precoce, ocorrida desde o início do século XX, e diferente daquela dos países ricos.

Por seu lado, a África e a Ásia vão experimentar – aliás, já experimentam – uma ruptura de equilíbrio. A população urbana africana, que foi multiplicada por mais de dez entre 1950 e hoje (de 33 milhões para 373 milhões), chegará a 1,2 bilhão em 2050. Na Ásia, onde ela atingia 237 milhões em meados do século passado , hoje chega a 1,6 bilhão e deverá mais que dobrar. Dessa forma, mais da metade dos indianos vão morar em cidades, assim como quase três quartos dos chineses e quatro quintos dos indonésios.

Novas estratificações

Em suma, pensando a partir da fórmula premonitória do historiador Lewis Mumford2, o mundo inteiro “torna-se uma cidade”, ou melhor, uma constelação de polos urbanos, muitas vezes desproporcionais, formando nódulos do espaço econômico globalizado. A urbanização extensiva de regiões pobres e emergentes revolucionou os modos de ser e agir de grande parte da humanidade, e vai continuar a fazê-lo cada vez mais rapidamente. Ao mesmo tempo origem e consequência das migrações que intensifica, ela cria novas estratificações sociais e acentua o movimento de transformação do ecossistema global pelo ser humano.

Para compreender o verdadeiro significado do fenômeno, é preciso situá-lo numa perspectiva histórica. A urbanização extensiva é inseparável do surgimento do Antropoceno – termo pelo qual alguns chamam a era geofísica mais recente, que teria sido inaugurada à época da revolução industrial. Esta última, devido ao uso intensivo dos recursos de energia fóssil que exige, altera significativamente o habitat.

Antes dessa ruptura, a vida econômica e social foi, durante milênios, dominada pelo ritmo lento da economia convencional, com os vilarejos e primeiras cidades mantendo uma “relação simbiótica com o ambiente natural3”. A sociedade tinha certamente um impacto na natureza local, mas este não era poderoso o suficiente para desafiar o equilíbrio do ecossistema. Da revolução agrícola do Neolítico, que abriu caminho para a sedentarização e as concentrações populacionais, até o século XIX, a proporção da população urbana mundial permaneceu limitada. De acordo com estimativas do historiador Paul Bairoch, que reviu para cima as avaliações anteriores, ela oscilava entre 9% e 14%, conforme a região e a época.4

É certo que se formaram grandes aglomerações durante esse longo período pré-industrial como Babilônia, Roma, Constantinopla, Bagdá, Xian, Pequim, Hangzhou, Nanquim, e assim por diante. Algumas dessas cidades foram o coração de impérios e abrigavam dezenas ou mesmo centenas de milhares de pessoas. Por volta de 1300 d.C., Pequim tinha entre 500 mil e 600 mil habitantes.5 Já a Europa conheceu o que Bairoch chama de “empurrão urbano” na Idade Média, com a formação de uma rede de cidades mercantis e cidades-Estado com mais de 20 mil habitantes. Mas isso não alterou fundamentalmente o equilíbrio entre a cidade e o campo, nem revolucionou as relações sociais.

Em 1780, havia no mundo menos de uma centena de cidades com mais de 100 mil habitantes. Não se pode, portanto, falar de dominação urbana, nem na Europa nem em qualquer outro lugar. Em toda parte a reprodução social pré-capitalista apoiava-se na agricultura, uma base rural que proporcionava o quadro geral de atividades da sociedade.

Transformações violentas

É a partir da Revolução Industrial que se afirma uma “nova relação simbiótica entre urbanização e industrialização6”. Ao exigir a concentração do trabalho e do capital, esta impulsiona uma reestruturação da divisão do trabalho e uma urbanização sem precedentes. De pouco menos de 20% em 1750, número já alto para a época, a população urbana do Reino Unido passa, em um século e meio, para 80%. Em média, a quantidade de pessoas nas regiões recém-industrializadas (exceto o Japão) é multiplicada por dez entre 1800 e 1914, atingindo 212 milhões; esse crescimento, três vezes superior ao da população, corresponde a um índice médio de urbanização que aumentou de 10% para 35% em 1914. Com a indústria absorvendo então quase metade do emprego urbano, esse desenvolvimento baseava-se em uma ampliação constante da produtividade agrícola. Não se deve diminuir a violência dessa transformação: prova disso são as condições de vida experimentadas pela classe trabalhadora infantil e adulta. Contudo, esse movimento fazia parte de uma lenta evolução no sentido de um aumento geral nos padrões de vida que o século XX testemunhou.

A experiência urbana nas regiões colonizadas do mundo foi diferente. Em conjunto com a expansão territorial do Ocidente, a Revolução Industrial instituiu uma nova divisão internacional do trabalho, na qual o comércio de longa distância desempenhou papel cada vez mais importante. Descrevendo essa primeira globalização, Karl Marx afirmou, em 1848: “[As antigas indústrias] são suplantadas por novas indústrias [que empregam] matérias-primas vindas de regiões muito distantes, e cujos produtos são consumidos não apenas na própria localidade, mas em todas as partes do globo. No lugar das antigas necessidades, atendidas pelos produtos nacionais, surgem novas necessidades que exigem para sua satisfação os produtos dos mais distantes confins e climas. Em vez do antigo isolamento das províncias e das nações que bastavam a si mesmas, desenvolvem-se as relações universais, numa interdependência universal das nações7”.

Ora, essa interdependência assimétrica, estruturada em torno de relações desiguais “centro-periferia”, reconfigura a economia e os espaços das regiões colonizadas ou dependentes. Sua integração forçada no mercado global desarticula os tradicionais laços entre a cidade e o campo, e prejudica as redes econômicas internas. Privilegia a produção de commodities para exportação (algodão, açúcar, ópio, grãos, metais etc.). As restrições impostas pelos pactos coloniais mercantis provocam a diminuição, mais ou menos acentuada, conforme as regiões, das atividades proto-industriais na China e na Índia, por exemplo, sendo que esta última era o maior produtor de têxteis do mundo antes de 1750.

Assim, a nova estrutura do comércio internacional levou também a uma inflação demográfica das cidades costeiras, transformadas em entrepostos de produtos primários destinados ao mercado mundial. A “descontinentalização” econômica da África subsaariana em benefício dessas áreas litorâneas, o crescimento da população de Bombaim, Calcutá e Madras e a decadência das cidades do interior da Índia em meados do século XIX são prova disso, assim como a reconfiguração de pontos do norte da África sob colonização francesa.

A rápida urbanização dessas áreas globais no século XX, especialmente durante a acelerada fase iniciada em 1950, tem, em geral, ocorrido sem nenhum tipo de desenvolvimento real, com exceção dos grandes complexos urbanos dos novos países do leste da Ásia (Seul, Taipei, Cingapura, Hong Kong e, hoje em dia, Xangai e Pequim). Em outros lugares, a urbanização desordenada dos Estados outrora colonizados resulta de desequilíbrios econômicos e sociais internos, muitas vezes herdados das estruturas do período de domínio estrangeiro e exacerbados pelas forças do mercado global.

O deslocamento desmedido de pessoas das zonas rurais para os centros urbanos, impulsionado pela pobreza em que viviam, resultou na formação de grandes aglomerados urbanos, em especial na África subsaariana, na América Latina e no sul da Ásia. Com um crescimento populacional e espacial constante, essas áreas experimentam o desemprego em massa e assustadores problemas ambientais (vide Lagos, Dacar, Cidade do México, Caracas, Calcutá, Dacca, Jacarta, Manila...). Nesses espaços urbanos coexistem bolsões de grande riqueza e uma imensa pobreza que produz um “planeta-favela” em escala mundial8”.

De fato, como mostrou o sociólogo Manuel Castells, os principais centros urbanos dos países ricos também são cidades “duplas”, que incorporam o “Sul” ao “Norte”: altamente segmentadas em termos sociais, elas concentram grande quantidade de trabalhadores braçais e de pessoas socialmente excluídas – muitas vezes vindos de países que outrora foram colônias.9 Claro, essa desigualdade social das cidades ditas globais que concentram a riqueza, cultura, conhecimento e know-how (Nova York, Los Angeles, Londres, Tóquio etc.) não pode ser comparada com a das zonas urbanas “globalizadas” no “Terceiro Mundo”.

Fenômeno irreversível

A urbanização reúne e expressa as tensões e contradições da industrialização e da globalização. Algo que Henri Lefebvre já havia percebido quando escreveu: “Sentido e finalidade da industrialização, a sociedade urbana se forma ao buscar a si mesma10”. Fenômeno irreversível, a urbanização desafia nossa capacidade de produzir bens públicos, sobretudo educação, cultura, saúde e um ambiente saudável para o conjunto das populações, pré-requisito para o desenvolvimento sustentável que garanta o bem-estar coletivo e, portanto, a expansão das liberdades individuais.

A criação dos grandes centros nos países industrializados no século XIX e início do século XX gerou inúmeras reflexões. Para resolver o problema social representado pelas favelas da época vitoriana, urbanistas reformistas propuseram uma descentralização por meio da construção de novas constelações menores e mais “habitáveis”, e que tornariam mais fácil a gestão das massas – as autoridades nacionais e regionais da China e da Índia, atualmente seguem nessa direção, diga-se de passagem. Mais tarde, Lewis Mumford, entre outros, elaborou um descongestionamento urbano por meio de um sistema de planejamento regional e sub-regional baseado no uso dos recursos locais e nas cadeias de abastecimento de curto prazo, cujo objetivo era conseguir um equilíbrio ecológico (o que agora é chamado de “desenvolvimento sustentável” urbano). Tais esforços intelectuais foram infrutíferos.

Nas décadas de 1970 e 1980, floresceu a ideia de um desenvolvimento urbano “comunitário”, ou seja, a apropriação pelos cidadãos dos seus espaços de vida (“community design”).11 Hoje, a questão da apropriação cidadã e das condições de produção dos espaços urbanos permanece intacta e representa um grande desafio do século.

Philip S. Golub é professor associado do Instituto de Estudos Europeus da Universidade Paris 8.

1 “World Urbanisation Prospects, the 2007 Revision Population Database”, United Nations Population Division (UNPD), Department of Economic and Social Affairs; http://esa.un.or/unup
2 Lewis Mumford, The city in history: its origins, its transformations, and its prospects, Harcourt Brace International, New York, [1961] 1986.
3 Mumford, op. cit.
4 Paul Bairoch, De Jéricho à Mexico: villes et économie dans l’histoire, Gallimard, Paris, 1985.
5 Tertius Chandler, Four thousand years of urban growth, Edwin Mellen, Lewiston, 1987.
6 Edward W. Soja, Postmetropoli: critical studies of cities and regions, Blackwell, Oxford, 2000.
7 Karl Marx & Friedrich Engels, Manifeste du Parti Communiste, Flammarion, Paris, 1999.
8 Mike Davis, Planète bidonville, Ab Irato, Paris, 2005.
9 Manuel Castells, The informational city: information, technology, economic restructuring and the urban-regional process, Blackwell, Cambridge, 1989, e Dual city: restructuring New York, Russell Sage Foundation, New York, 1991.
10 Citado por Rémi Hess, Henri Lefebvre et l’aventure du siècle, Métailié, Paris, 1988, p. 276.
11 Peter Hall, Cities of tomorrow, Blackwell, Oxford, 1996.

Le Monde Diplomatique Brasil

Nenhum comentário:

Geografia e a Arte

Geografia e a Arte
Currais Novos