TRANSAÇÕES FINANCEIRAS
Vigilância contra a lavagem de dinheiro
Não é segredo para ninguém que dados bancários são moedas de troca entre instituições financeiras e autoridades públicas. Criada para combater a lavagem de dinheiro, a prática permite detectar anomalias nas transações feitas pelo cliente e avaliar o seu comportamento. Como diz um banqueiro: “é um ‘Big Brother’”
por Gilles Favarel-Garrigues, Pierre Lascoumes, Thierry Godefroy
Nas últimas semanas de 2009, apareceu na imprensa o rosto de um certo Hervé Falciani. Depois de roubar dados bancários esse ex-técnico de informática do Banco HSBC ofereceu-os às autoridades francesas. No começo de 2008, um funcionário do Banco Liechtenstein LGT já havia vendido seu arquivo por vários milhões de euros ao fisco alemão, e, após entregar ao fisco americano 19 mil clientes, um banqueiro da UBS reivindicava para si o direito a vários milhões de dólares sobre os impostos assim arrecadados.
Esses casos recentes, em que bancos de dados são recuperados pelos governos com a cumplicidade de ex-funcionários, mostram a importância adquirida por essa prática. Entretanto, as trocas de informações entre a autoridade pública e instituições financeiras não são novas. Elas foram desenvolvidas ao longo de 20 anos na esteira da luta antilavagem de dinheiro que tem estimulado o envolvimento dos bancos nesse tipo de vigilância.
Foi em 1989, durante uma cúpula organizada em Paris, que os países do G7 decidiram iniciar uma luta contra a ocultação de “dinheiro sujo”, até então limitada aos lucros obtidos com o tráfico de drogas. Criado nessa ocasião, o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro (Gald) é responsável pela elaboração e divulgação de diretrizes internacionais. Na década de 1990, a luta se estendeu ao crime organizado, e em seguida, após os acontecimentos de 11 de setembro de 2001, ao financiamento do terrorismo. Alvo maleável por excelência, o “dinheiro sujo” abrange, desde meados dos anos 2000, fundos ligados à proliferação nuclear. E, após a eclosão da crise financeira de 2008, a inclusão da fraude fiscal não mais parece ser um tabu. O cerco aos recursos econômicos ilegítimos acompanha necessariamente qualquer ação repressiva de grande envergadura contra uma ameaça definida como global.
Se a luta contra a lavagem de dinheiro está pronta para combater os novos fluxos de capitais ilícitos é porque ela se apoia em uma colaboração inédita, agora em andamento, entre agentes públicos e privados (bancos principalmente, mas também nas companhias de seguro, cartórios, agentes imobiliários etc.). Responsáveis por detectar transações suspeitas, esses últimos devem comunicar suas desconfianças às autoridades públicas especialmente criadas para esse fim – a Serious Organised Crime Agency (Soca), do Reino Unido, a Financial Crimes Enforcement Network (FinCen), nos Estados Unidos, ou o Traitement du Renseignement et Action contre les Circuits Financiers Clandestins (TracFin), na França.
Depois de duas décadas, é difícil avaliar os efeitos dessa política. A história da antilavagem de dinheiro é oficialmente apresentada como um sucesso, com cerca de 170 tribunais nacionais levando-se em conta as recomendações do Gald. Sua divulgação internacional, sem dúvida, estimulou a cooperação policial e judiciária, assim como a formação de uma comunidade de especialistas na luta contra o “dinheiro sujo”, que partilha referências profissionais.
As consequências sobre a livre circulação de capitais de origem ilícita exigem, no entanto, um pouco mais de prudência. Alguns acreditam que os resultados judiciais, ainda que sejam pequenos, comprovam a eficácia dessa luta; outros insistem no caráter dissuasivo do dispositivo; outros, por fim, acham que se está apenas tapando o sol com a peneira. Estes últimos chamam a atenção para o fato de que os capitais “sujos” continuam a prosperar e a circular e que a existência de paraísos fiscais e locais sub-regulamentados não está ameaçada, apesar dos efeitos do anúncio. Uma análise cuidadosa das práticas bancárias, no entanto, mostra que os principais efeitos são encontrados em outros lugares1. Ao se outorgar aos atores desse setor um papel-chave na vigilância de clientes e de operações, a luta contra a lavagem de dinheiro tornou a produção de informação financeira uma questão crítica.
Infiltrados
Argumentando que o seu papel profissional é o de garantir a confidencialidade dos clientes, os bancos não estavam inicialmente muito motivados a exercer essa função, que a seu ver se revestia de um caráter de “auxiliar de polícia”. Durante dez anos, eles manifestaram pouco empenho em aplicar as obrigações de vigilância impostas pela legislação. Na França, foi necessário esperar até o início do século XXI para que a lei se tornasse uma realidade cotidiana. Foi sob o efeito combinado da prioridade dada à luta internacional contra o terrorismo, incluindo o seu financiamento, e do choque criado pela acusação de lavagem de dinheiro contra o diretor-geral do banco Société Générale (Processo Sentier2) que os estabelecimentos começaram a investir maciçamente nas atividades antilavagem de dinheiro.
Os bancos primeiro criaram ou expandiram seus polos de “segurança econômica”, recrutando antigos membros dos serviços de polícia ou magistrados. Por exemplo, o Escritório Central de Repressão à Delinquência Financeira, no âmbito da polícia nacional francesa, tem visto muitos dos seus integrantes se juntarem a essas instituições. Ao manter contatos com os ex-colegas, esses “desertores” encarnam a aproximação de dois universos profissionais que ignoravam um ao outro. Como diz um deles, “a minha experiência atraiu a gerência do banco, que tem interesse na ‘inteligência’, e pretende estabelecer ligações com os serviços secretos franceses”.
Essa situação não deixa de causar conflitos de lealdade: por exemplo, um entrevistado afirma que “permanece sendo um policial” e que continua a “servir” à sua “gerência anterior”. Um tipo de fidelidade como essa suscita a ira dos funcionários que passaram toda a sua carreira no banco: “Um policial nunca deixa de ser um policial: ele sempre vai fornecer informações sobre o seu banco para a polícia”.
Integrado à gestão política dos riscos bancários, esse novo objetivo tem levado os responsáveis pela luta antilavagem de dinheiro a reforçar o conhecimento da clientela e a desenvolver procedimentos de alerta adaptados para lidar com as transações suspeitas. Os bancos também tiveram de se equipar com ferramentas de informática especializadas. Um enorme mercado desenvolveu-se desde o início dos anos 2000 para ajudar as instituições a avaliar melhor os riscos ligados aos seus usuários. Ferramentas poderosas oferecem agora uma série de benefícios. Eles garantem particularmente a administração de listas “sujas” oficiais de modo a excluir delas os clientes indesejáveis.
Uma atividade como essa não se limita às relações de antiterroristas preparadas pelos governos, pelas Nações Unidas (ONU) ou pela Comissão Europeia. No âmbito do combate à corrupção, a noção de “pessoa politicamente exposta” (PPE) se impôs em vários textos internacionais e foi acrescentada às obrigações de vigilância dos estabelecimentos bancários. A imprecisão desse conceito, que abrange personalidades políticas, dirigentes de grandes empresas estatais, seus familiares e colaboradores mais próximos, cria condições para a formação de listas com até 500 mil sobrenomes3. Uma vez que uma PPE aparece em uma transação, espera-se que haja uma vigilância especial por parte dos bancos.
As ferramentas também oferecem recursos para a elaboração de perfis, o que permite detectar “anomalias” nas transações feitas pelos clientes. Estes estão associados a grupos de pares, o que possibilita avaliar e prever se eles estão se comportando “normalmente” ou de forma “incomum”, assim como descobrir relações não óbvias entre as pessoas e os fluxos. Os instrumentos mais avançados combinam técnicas de detecção que fazem conexões entre a filtragem de listas, a análise do comportamento do cliente e o exame das suas relações com os países considerados de risco. É desnecessário dizer que é considerável a diferença entre a quantidade de situações anômalas detectadas pelos instrumentos e aquela de suspeitos entregues às autoridades.
Como diz um banqueiro, “é um pouco Big Brother: nós sabemos tudo sobre um cliente, mas o que vamos fazer com isso?” Dessa forma, os responsáveis pelo combate à lavagem de dinheiro em bancos devem reunir as informações para confirmar ou refutar as dúvidas eventuais que eles alimentem em relação a um cliente. Mas, pergunta um deles, “onde para o senso comum e onde começa a Inquisição?”
Essa necessidade de embasar as suspeitas sobre um cliente ou uma operação provoca diversos efeitos. Por um lado, ela leva os responsáveis pela antilavagem de dinheiro nos bancos a calibrar suas ferramentas visando populações específicas, ligadas a uma atividade econômica, a uma idade e a um local de nascimento ou de residência.
Assim, essa definição de parâmetros pode atender a meras intuições, pois depende da percepção que os responsáveis têm das principais ameaças, segundo os contextos regionais em que trabalham. “Os capitais russos afluem para a Côte d’Azur, para a Saboia e para o sudoeste da França”, diz um deles. “Os colombianos subcontratam a lavagem de dinheiro com organizações localizadas nos países do Leste europeu, que conhecem perfeitamente os circuitos financeiros”.
Troca de dados
Como se vê, os estereótipos sobre os “países delinquentes” cristalizam os medos desses profissionais. A ponto de outro acrescentar: “Ainda que a Rússia e o México tenham sido retirados da lista do Gald, esses são países bandidos que eu mantenho na minha”. Da mesma forma, as sentinelas bancárias devem desenvolver relações discretas, porém habituais, com os agentes de informação e com aqueles da polícia judiciária. Trata-se de uma troca de dados, por motivos relacionados ou não aos imperativos da luta contra o dinheiro sujo: um policial pode solicitar documentos sobre indivíduos ou fluxos, enquanto seu interlocutor no banco pode, por sua vez, tentar esclarecer uma dúvida, “conhecer o pedigree de alguém” ou “tranquilizar-se diante de um ‘peixe grande’.
Indo além do âmbito restrito das medidas antilavagem de dinheiro, tais interações consagram o crescimento em potencial de uma nova forma de coprodução de vigilância financeira. O Tracfin, um dos elos do sistema francês, desempenha um papel fundamental nisso: a sua atividade não se limita a avaliar a adequação das declarações provenientes dos bancos e passá-las à justiça, mas também se dedica a armazenar, fora de qualquer controle, os dados, ou mesmo a comunicá-los a outras agências de informação.
Essas trocas até agora excluíam a fraude fiscal, que contava com a proteção de uma muralha da China. Havia de fato um consenso entre todos os atores envolvidos na luta contra o “dinheiro sujo” no sentido de combater os “males públicos” – tráfico de drogas, crime organizado ou o terrorismo –, mas não reprimir a fraude fiscal. Como o repetem insistentemente os funcionários de bancos, “não somos inspetores do fisco” ou “não estamos aqui para lutar contra o desvio do dono da mercearia”. Nos bancos de investimento, a opinião parece mais dividida na medida em que a otimização fiscal constitui um trabalho rotineiro. Mas a muralha parece desmoronar, graças à legislação europeia e à recente crise financeira.
Todas essas questões quase não despertam debates. Desde 2003, a Comissão Nacional de Informática e Liberdades (CNIL) certamente está preocupada com o acúmulo de bases de dados e com o uso de ferramentas destinadas a combater a lavagem de dinheiro. Ela apontou particularmente para o risco que a utilização de arquivos que contenham dados pessoais possa representar para as liberdades individuais. Essa preocupação não foi levada em conta tanto na França como na Europa, principalmente por causa da prioridade dada pelos governos à luta contra o terrorismo.
Apenas os banqueiros estão incomodados com a pressão da opinião pública para que eles incluam em suas práticas uma dimensão policial, tendo como segunda intenção a manutenção do status quo ante, a defesa do sigilo das operações e, de fato, a santificação das ilegalidades fiscais fora do dispositivo.
O silêncio das organizações não-governamentais (ONGs) especializadas na defesa das liberdades individuais é provavelmente explicado pela dificuldade de encontrar uma posição em um debate em que a crítica às medidas antiterrorismo reúne, sob uma mesma bandeira, a proteção da privacidade e a do sigilo bancário.
Gilles Favarel-Garrigues pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), França.
Pierre Lascoumes pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), França.
Thierry Godefroy pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), França.
1 Gilles Favarel-Garrigues, Thierry Godefroy e Pierre Lascoumes, “Les sentinelles de l’argent sale. Les banques aux prises avec l’anti-blanchiment”, La Découverte, Paris, 2009. As entrevistas citadas abaixo são extraídas desse trabalho.
2 O banco e o seu CEO têm sido acusados de aceitar o depósito do dinheiro do esquema conhecido como “Sentier II”, um amplo tráfico de cheques realizado entre a França e Israel.
3 Uma das ferramentas mais populares no meio usa um banco de dados americanos de mais de nove milhões de registros feitos com base em 15 mil fontes mundiais (Global Regulatory Information Database).
Vigilância contra a lavagem de dinheiro
Não é segredo para ninguém que dados bancários são moedas de troca entre instituições financeiras e autoridades públicas. Criada para combater a lavagem de dinheiro, a prática permite detectar anomalias nas transações feitas pelo cliente e avaliar o seu comportamento. Como diz um banqueiro: “é um ‘Big Brother’”
por Gilles Favarel-Garrigues, Pierre Lascoumes, Thierry Godefroy
Nas últimas semanas de 2009, apareceu na imprensa o rosto de um certo Hervé Falciani. Depois de roubar dados bancários esse ex-técnico de informática do Banco HSBC ofereceu-os às autoridades francesas. No começo de 2008, um funcionário do Banco Liechtenstein LGT já havia vendido seu arquivo por vários milhões de euros ao fisco alemão, e, após entregar ao fisco americano 19 mil clientes, um banqueiro da UBS reivindicava para si o direito a vários milhões de dólares sobre os impostos assim arrecadados.
Esses casos recentes, em que bancos de dados são recuperados pelos governos com a cumplicidade de ex-funcionários, mostram a importância adquirida por essa prática. Entretanto, as trocas de informações entre a autoridade pública e instituições financeiras não são novas. Elas foram desenvolvidas ao longo de 20 anos na esteira da luta antilavagem de dinheiro que tem estimulado o envolvimento dos bancos nesse tipo de vigilância.
Foi em 1989, durante uma cúpula organizada em Paris, que os países do G7 decidiram iniciar uma luta contra a ocultação de “dinheiro sujo”, até então limitada aos lucros obtidos com o tráfico de drogas. Criado nessa ocasião, o Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro (Gald) é responsável pela elaboração e divulgação de diretrizes internacionais. Na década de 1990, a luta se estendeu ao crime organizado, e em seguida, após os acontecimentos de 11 de setembro de 2001, ao financiamento do terrorismo. Alvo maleável por excelência, o “dinheiro sujo” abrange, desde meados dos anos 2000, fundos ligados à proliferação nuclear. E, após a eclosão da crise financeira de 2008, a inclusão da fraude fiscal não mais parece ser um tabu. O cerco aos recursos econômicos ilegítimos acompanha necessariamente qualquer ação repressiva de grande envergadura contra uma ameaça definida como global.
Se a luta contra a lavagem de dinheiro está pronta para combater os novos fluxos de capitais ilícitos é porque ela se apoia em uma colaboração inédita, agora em andamento, entre agentes públicos e privados (bancos principalmente, mas também nas companhias de seguro, cartórios, agentes imobiliários etc.). Responsáveis por detectar transações suspeitas, esses últimos devem comunicar suas desconfianças às autoridades públicas especialmente criadas para esse fim – a Serious Organised Crime Agency (Soca), do Reino Unido, a Financial Crimes Enforcement Network (FinCen), nos Estados Unidos, ou o Traitement du Renseignement et Action contre les Circuits Financiers Clandestins (TracFin), na França.
Depois de duas décadas, é difícil avaliar os efeitos dessa política. A história da antilavagem de dinheiro é oficialmente apresentada como um sucesso, com cerca de 170 tribunais nacionais levando-se em conta as recomendações do Gald. Sua divulgação internacional, sem dúvida, estimulou a cooperação policial e judiciária, assim como a formação de uma comunidade de especialistas na luta contra o “dinheiro sujo”, que partilha referências profissionais.
As consequências sobre a livre circulação de capitais de origem ilícita exigem, no entanto, um pouco mais de prudência. Alguns acreditam que os resultados judiciais, ainda que sejam pequenos, comprovam a eficácia dessa luta; outros insistem no caráter dissuasivo do dispositivo; outros, por fim, acham que se está apenas tapando o sol com a peneira. Estes últimos chamam a atenção para o fato de que os capitais “sujos” continuam a prosperar e a circular e que a existência de paraísos fiscais e locais sub-regulamentados não está ameaçada, apesar dos efeitos do anúncio. Uma análise cuidadosa das práticas bancárias, no entanto, mostra que os principais efeitos são encontrados em outros lugares1. Ao se outorgar aos atores desse setor um papel-chave na vigilância de clientes e de operações, a luta contra a lavagem de dinheiro tornou a produção de informação financeira uma questão crítica.
Infiltrados
Argumentando que o seu papel profissional é o de garantir a confidencialidade dos clientes, os bancos não estavam inicialmente muito motivados a exercer essa função, que a seu ver se revestia de um caráter de “auxiliar de polícia”. Durante dez anos, eles manifestaram pouco empenho em aplicar as obrigações de vigilância impostas pela legislação. Na França, foi necessário esperar até o início do século XXI para que a lei se tornasse uma realidade cotidiana. Foi sob o efeito combinado da prioridade dada à luta internacional contra o terrorismo, incluindo o seu financiamento, e do choque criado pela acusação de lavagem de dinheiro contra o diretor-geral do banco Société Générale (Processo Sentier2) que os estabelecimentos começaram a investir maciçamente nas atividades antilavagem de dinheiro.
Os bancos primeiro criaram ou expandiram seus polos de “segurança econômica”, recrutando antigos membros dos serviços de polícia ou magistrados. Por exemplo, o Escritório Central de Repressão à Delinquência Financeira, no âmbito da polícia nacional francesa, tem visto muitos dos seus integrantes se juntarem a essas instituições. Ao manter contatos com os ex-colegas, esses “desertores” encarnam a aproximação de dois universos profissionais que ignoravam um ao outro. Como diz um deles, “a minha experiência atraiu a gerência do banco, que tem interesse na ‘inteligência’, e pretende estabelecer ligações com os serviços secretos franceses”.
Essa situação não deixa de causar conflitos de lealdade: por exemplo, um entrevistado afirma que “permanece sendo um policial” e que continua a “servir” à sua “gerência anterior”. Um tipo de fidelidade como essa suscita a ira dos funcionários que passaram toda a sua carreira no banco: “Um policial nunca deixa de ser um policial: ele sempre vai fornecer informações sobre o seu banco para a polícia”.
Integrado à gestão política dos riscos bancários, esse novo objetivo tem levado os responsáveis pela luta antilavagem de dinheiro a reforçar o conhecimento da clientela e a desenvolver procedimentos de alerta adaptados para lidar com as transações suspeitas. Os bancos também tiveram de se equipar com ferramentas de informática especializadas. Um enorme mercado desenvolveu-se desde o início dos anos 2000 para ajudar as instituições a avaliar melhor os riscos ligados aos seus usuários. Ferramentas poderosas oferecem agora uma série de benefícios. Eles garantem particularmente a administração de listas “sujas” oficiais de modo a excluir delas os clientes indesejáveis.
Uma atividade como essa não se limita às relações de antiterroristas preparadas pelos governos, pelas Nações Unidas (ONU) ou pela Comissão Europeia. No âmbito do combate à corrupção, a noção de “pessoa politicamente exposta” (PPE) se impôs em vários textos internacionais e foi acrescentada às obrigações de vigilância dos estabelecimentos bancários. A imprecisão desse conceito, que abrange personalidades políticas, dirigentes de grandes empresas estatais, seus familiares e colaboradores mais próximos, cria condições para a formação de listas com até 500 mil sobrenomes3. Uma vez que uma PPE aparece em uma transação, espera-se que haja uma vigilância especial por parte dos bancos.
As ferramentas também oferecem recursos para a elaboração de perfis, o que permite detectar “anomalias” nas transações feitas pelos clientes. Estes estão associados a grupos de pares, o que possibilita avaliar e prever se eles estão se comportando “normalmente” ou de forma “incomum”, assim como descobrir relações não óbvias entre as pessoas e os fluxos. Os instrumentos mais avançados combinam técnicas de detecção que fazem conexões entre a filtragem de listas, a análise do comportamento do cliente e o exame das suas relações com os países considerados de risco. É desnecessário dizer que é considerável a diferença entre a quantidade de situações anômalas detectadas pelos instrumentos e aquela de suspeitos entregues às autoridades.
Como diz um banqueiro, “é um pouco Big Brother: nós sabemos tudo sobre um cliente, mas o que vamos fazer com isso?” Dessa forma, os responsáveis pelo combate à lavagem de dinheiro em bancos devem reunir as informações para confirmar ou refutar as dúvidas eventuais que eles alimentem em relação a um cliente. Mas, pergunta um deles, “onde para o senso comum e onde começa a Inquisição?”
Essa necessidade de embasar as suspeitas sobre um cliente ou uma operação provoca diversos efeitos. Por um lado, ela leva os responsáveis pela antilavagem de dinheiro nos bancos a calibrar suas ferramentas visando populações específicas, ligadas a uma atividade econômica, a uma idade e a um local de nascimento ou de residência.
Assim, essa definição de parâmetros pode atender a meras intuições, pois depende da percepção que os responsáveis têm das principais ameaças, segundo os contextos regionais em que trabalham. “Os capitais russos afluem para a Côte d’Azur, para a Saboia e para o sudoeste da França”, diz um deles. “Os colombianos subcontratam a lavagem de dinheiro com organizações localizadas nos países do Leste europeu, que conhecem perfeitamente os circuitos financeiros”.
Troca de dados
Como se vê, os estereótipos sobre os “países delinquentes” cristalizam os medos desses profissionais. A ponto de outro acrescentar: “Ainda que a Rússia e o México tenham sido retirados da lista do Gald, esses são países bandidos que eu mantenho na minha”. Da mesma forma, as sentinelas bancárias devem desenvolver relações discretas, porém habituais, com os agentes de informação e com aqueles da polícia judiciária. Trata-se de uma troca de dados, por motivos relacionados ou não aos imperativos da luta contra o dinheiro sujo: um policial pode solicitar documentos sobre indivíduos ou fluxos, enquanto seu interlocutor no banco pode, por sua vez, tentar esclarecer uma dúvida, “conhecer o pedigree de alguém” ou “tranquilizar-se diante de um ‘peixe grande’.
Indo além do âmbito restrito das medidas antilavagem de dinheiro, tais interações consagram o crescimento em potencial de uma nova forma de coprodução de vigilância financeira. O Tracfin, um dos elos do sistema francês, desempenha um papel fundamental nisso: a sua atividade não se limita a avaliar a adequação das declarações provenientes dos bancos e passá-las à justiça, mas também se dedica a armazenar, fora de qualquer controle, os dados, ou mesmo a comunicá-los a outras agências de informação.
Essas trocas até agora excluíam a fraude fiscal, que contava com a proteção de uma muralha da China. Havia de fato um consenso entre todos os atores envolvidos na luta contra o “dinheiro sujo” no sentido de combater os “males públicos” – tráfico de drogas, crime organizado ou o terrorismo –, mas não reprimir a fraude fiscal. Como o repetem insistentemente os funcionários de bancos, “não somos inspetores do fisco” ou “não estamos aqui para lutar contra o desvio do dono da mercearia”. Nos bancos de investimento, a opinião parece mais dividida na medida em que a otimização fiscal constitui um trabalho rotineiro. Mas a muralha parece desmoronar, graças à legislação europeia e à recente crise financeira.
Todas essas questões quase não despertam debates. Desde 2003, a Comissão Nacional de Informática e Liberdades (CNIL) certamente está preocupada com o acúmulo de bases de dados e com o uso de ferramentas destinadas a combater a lavagem de dinheiro. Ela apontou particularmente para o risco que a utilização de arquivos que contenham dados pessoais possa representar para as liberdades individuais. Essa preocupação não foi levada em conta tanto na França como na Europa, principalmente por causa da prioridade dada pelos governos à luta contra o terrorismo.
Apenas os banqueiros estão incomodados com a pressão da opinião pública para que eles incluam em suas práticas uma dimensão policial, tendo como segunda intenção a manutenção do status quo ante, a defesa do sigilo das operações e, de fato, a santificação das ilegalidades fiscais fora do dispositivo.
O silêncio das organizações não-governamentais (ONGs) especializadas na defesa das liberdades individuais é provavelmente explicado pela dificuldade de encontrar uma posição em um debate em que a crítica às medidas antiterrorismo reúne, sob uma mesma bandeira, a proteção da privacidade e a do sigilo bancário.
Gilles Favarel-Garrigues pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), França.
Pierre Lascoumes pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), França.
Thierry Godefroy pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), França.
1 Gilles Favarel-Garrigues, Thierry Godefroy e Pierre Lascoumes, “Les sentinelles de l’argent sale. Les banques aux prises avec l’anti-blanchiment”, La Découverte, Paris, 2009. As entrevistas citadas abaixo são extraídas desse trabalho.
2 O banco e o seu CEO têm sido acusados de aceitar o depósito do dinheiro do esquema conhecido como “Sentier II”, um amplo tráfico de cheques realizado entre a França e Israel.
3 Uma das ferramentas mais populares no meio usa um banco de dados americanos de mais de nove milhões de registros feitos com base em 15 mil fontes mundiais (Global Regulatory Information Database).
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