DÍVIDA PÚBLICA
Desglobalização financeira e soberania nacional
A crise grega reabre o debate sobre o financiamento das dívidas públicas e seus credores. Ressurgem as imposições do mercado internacional, penalizando a população. Países como o Japão, no entanto, têm uma dívida pública apenas interna, o que muda todo o jogo de poder
por Frédéric Lordon
Os analistas da crise grega se encarregam de manter separadas as questões que podem das que não podem ser feitas – particularmente aquelas sobre as dívidas públicas.
Uma questão que os europeus se esforçam para enterrar é a possibilidade de esse financiamento não mais ser feito, exclusivamente, pelo mercado de capitais sob o comando dos investidores internacionais.
A simples observação dos estragos feitos pela exposição das finanças públicas gregas aos mercados poderia provocar o desejo de explorar soluções menos desastrosas – como o recurso ao financiamento monetário dos déficits, através da abertura de créditos pelo Banco Central, com emissão de moeda para o Tesouro.1
Poderia incitar ainda a pensar sobre o caso singular do Japão, também um país extremamente endividado, mas que está ausente da crônica das crises de dívida pública.
Se olharmos para a dívida grega, seu montante é de 270 milhões de euros, isto é, 113% do PIB grego de 2009, 130% do previsto para 2010. Estes valores estão entre os mais modestos quando comparados ao da dívida japonesa, que chegará a 200% do PIB em 2010 – recorde incontestado entre os países da Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Como entender então que o detentor da maior dívida pública do mundo, tendo a pior solvência aparente (se usarmos como medida sua relação com o PIB), não seja motivo de preocupação dos investidores internacionais? A resposta é muito simples: os investidores internacionais não são os subscritores da dívida pública japonesa. Seus credores são os poupadores nacionais, que detêm mais de 95% de seus títulos.
Inversamente aos Estados Unidos, o Japão tem uma taxa de poupança interna suficiente para cobrir as necessidades de financiamento do Estado e, ainda, das empresas. Os mercados, portanto, não são solicitados pela dívida pública japonesa – que se vira muito bem sem eles. Nem, por consequência, têm a possibilidade de submeter a política econômica do Japão a suas normas absurdas. Para que os mercados intervenham nessa matéria é preciso que tenham o instrumento, ou seja, os títulos da dívida, sem os quais não há ingerência possível.
Iluminada pelo estudo do caso japonês, a crise grega oferece uma oportunidade de reflexão sobre a própria lógica da desregulamentação financeira internacional, que deve menos aos prodígios da teoria econômica padrão – sempre disponível para prometer maravilhas, crescimento e emprego quando a questão é a desregulamentação – e mais a sólidos interesses.
Desregulamentação financeira
A partir de meados dos anos 1980, de fato, os Estados Unidos se veem confrontados com a seguinte questão: como financiar déficits (externo e orçamentário) quando não se tem mais poupança nacional?2 Simplesmente fazendo vir a poupança dos que a têm: na época (e até hoje), isso significava do Japão, da Alemanha e, agora, da China.
A desregulamentação financeira é, portanto, a resposta estratégica que consiste em criar estruturas de movimentação internacional de capitais para livrar a economia americana dos limites determinados pela poupança e investimento internos.
Inconscientes do que os aguardava, muitos países cederam aos encantos da desregulamentação financeira internacional. Em função da desaceleração do crescimento ocorrido nos anos 1970, os déficits a ser financiados se tornaram um problema endêmico na maioria das economias do Norte.
Mas todos, precipitando-se na genial reciclagem internacional da poupança, não tardaram a descobrir a dependência causada pelas contrapartidas.
Na correlação de forças entre devedores e credores, as estruturas dos mercados de capitais liberalizados fazem a balança pender em favor dos segundos. Os Estados então descobrem, aos poucos, que tomar emprestado dos mercados é, na verdade, se submeter ao veredicto deles.
Esse veredicto, no entanto, não é nada claro – e nem pode ser.3 Da imposição de taxas de inflação, as mais baixas possíveis, à sanção diante de qualquer desvio no déficit orçamentário, passando pela proibição de seu financiamento monetário e pela santificação do modelo de Banco Central independente, é bem fácil ver a amplitude das renúncias de política econômica causadas pela tutela dos mercados.
Em situações de crise, a coerção se transforma em pesadelo. A desconfiança dos investidores leva à venda de títulos da dívida pública, e o resultado é uma alta das taxas de juros, ou seja, do custo do próprio financiamento dos Estados. O acréscimo de tensão financeira que se segue pode chegar a impor aos orçamentos públicos custos exorbitantes, como perceberam dolorosamente os gregos.
A massa de operadores passa a exigir a aplicação de todos os ditames da doutrina normatizadora dos mercados, e torna a execução da política econômica mais ácida ainda. Basta ver a amplitude dos sacrifícios exigidos da Grécia, a curtíssimo prazo, pelos investidores. Sacrifícios esses que só conhecem limite por virem acompanhados de garantias europeias de prevenir qualquer calote.
Exemplo oriental
É precisamente aí que o caso do Japão poderia fazer escola. Para se liberar de qualquer poder de financiadores abusivos, é preciso mudar de financiador. Foi o que o Japão teve a sabedoria de fazer, enquanto barrava a entrada de investidores externos nos mercados domésticos, bloqueando qualquer coerção sobre as políticas econômicas locais.
Às avessas da ideologia da globalização, que faz a apologia da supressão de todas as fronteiras – especialmente daquelas que poderiam se opor ao movimento de capitais –, o caso japonês, em matéria de endividamento do Estado, oferece o exemplo de uma configuração não apenas viável, mas dotada de boas qualidades.
É claro que a alternativa japonesa não traz uma resposta infalível para o financiamento sem limite das dívidas públicas – com 200% do PIB “comprometidos”, pode ser que o Japão também acabe num beco sem saída. Mas, ao menos, reconhecemos aí a capacidade de convivência entre um alto índice de endividamento e excelentes condições de estabilidade.
Junto com a detenção de títulos por residentes, há uma série de condições que tornaram esse quadro possível, particularmente o trabalho coordenado dos poderes públicos e das instituições de captação da poupança. Sistema bancário e fundos de pensão, de fato, “jogaram o jogo”, orientando massivamente os recursos das aposentadorias para os títulos da dívida pública. Os poupadores não tiveram do que se queixar: há décadas o mercado das ações é atingido por crises e dá rendimentos modestos. Quanto à política monetária de taxas quase nulas, ela levou todos os rendimentos a níveis muito baixos, diante dos quais as pequenas porcentagens oferecidas pelos títulos públicos são ganhos reais.
Tudo isso sustentou com tranquilidade o impressionante crescimento da dívida pública japonesa. E certamente diminuiu a assustadora pressão que pesa sobre o endividamento público no momento em que ele é mais necessário: no coração da recessão.
Para os demais, não há muitas opções disponíveis, mas elas existem: seja submeter-se às injunções dos investidores internacionais, que controlam o volume bruto da dívida pública e suas condições de contratação, ou, na hipótese (aliás discutível) de permanecer no campo do financiamento obrigatório puro, optar pela renacionalização da maioria do financiamento das dívidas, organizando a alocação maciça das poupanças para os títulos do Estado.
Levando tudo isso em conta, é uma fórmula com boas vantagens e poucos inconvenientes. Em primeiro lugar, os títulos do Estado oferecem uma remuneração razoável, superior à das cadernetas de poupança. Em segundo, afastar a poupança das ações é um dos melhores serviços prestados às suas economias – protegendo-as das ruínas da Bolsa, que regularmente atingem os pequenos acionistas.
Trata-se, no entanto, de um sistema de contribuição indireta obrigatória, via financiamento intertemporal dos déficits públicos. Já conhecemos, no entanto, imposições mais dolorosas. Uma das vias de resolução do problema, sistematicamente afastada, consistiria em reduzir uma série de despesas a perder de vista4 – liquidando não com a questão do financiamento dos déficits, mas reduzindo os déficits em si.
Uma questão de soberania
A desglobalização do financiamento dos déficits públicos teria, sobretudo, um mérito político e democrático – algo que se tornou quase inteiramente estranho ao entendimento dos economistas ortodoxos. Renacionalizar a questão do financiamento equivale a eliminar a parcela das dívidas sob controle dos investidores internacionais e reintegrá-la completamente ao contrato social nacional, submetendo novamente ao corpo político a arbitragem dos conflitos que esta questão necessariamente induz.
Afinal, quando nos queixamos da “dívida que vamos deixar para nossos filhos”, escondemos o conflito fundamental – e perfeitamente contemporâneo – entre os menos ricos que, com seus impostos, pagam o serviço da dívida cujos títulos pertencem aos mais ricos.5
Os próprios termos dessa redistribuição instantânea dos contribuintes comuns para os detentores de patrimônios financeiros são determinados pelo funcionamento dos mercados de capitais, escapando totalmente, por consequência, de qualquer deliberação soberana.
Que taxa de juros a dívida pública deve empregar e qual deve ser o montante dessas transferências? Eis uma questão que cabe inteiramente ao corpo político determinar. É possível organizar no perímetro da soberania o confronto de interesses antagônicos de credores e devedores. Mas isso só é possível se a grande maioria dos detentores da dívida pública se encontrar entre os próprios cidadãos do país.
Uma taxa de juros elevada demais e a carga da dívida, por um efeito de exclusão sobre o qual se fala pouco, forçarão o abandono de despesas públicas fundamentais. As transferências para os mais ricos causarão um efeito antidistributivo abusivo. Com uma taxa baixa demais, os poupadores se sentirão lesados por uma remuneração insuficiente, criando no final uma ameaça de perda de solvência e de exposição do patrimônio dos credores.
Entre todos esses efeitos contraditórios, é o próprio corpo político, em suas diversas facções, que deve resolver, e somente ele. Em todo caso, certamente não são os investidores internacionais que, conduzidos por seus interesses de credores e completamente estranhos à comunidade política, estão em condição de impor quaisquer decisões mais pesadas para a vida coletiva.
Papel do Estado
Como ficou claro, a doutrina liberal apressou-se em declarar o espaço nacional obsoleto e promoveu as transformações estruturais (desregulamentação de todo tipo) capazes de fazer com que essa afirmação se tornasse realidade.
A história dos séculos XIX e XX deu razões suficientes para que se desconfiasse da hipertrofia do princípio nacional, que tem por nome “nacionalismo”. No entanto, não produziu nenhuma concepção operadora alternativa da soberania política. Porque, ao destruir a ideia de nação, o liberalismo destrói, com um só golpe, a ideia de soberania – tomando cuidado (sinal de sua perfeita hipocrisia) de evitar qualquer reconstrução de soberania em escalas territoriais ampliadas.
Afinal, a ideia de nação soberana poderia muito bem ser estendida para além dos conjuntos territoriais e culturais onde surgiu inicialmente, para englobar outros conjuntos heterogêneos, mas unidos por um destino comum. Soberania e nação são, de fato, uma coisa só. Uma é sinônimo da outra.
Que esses conjuntos constituídos em corpos políticos deliberem, fixem suas regras e as façam aplicar é o que o neoliberalismo não quer a preço algum. Já se permitiu fazer muito até aqui e a questão é saber até onde se permitirá ir.
Observando a história recente, é possível desconfiar dos movimentos violentos de retomada da soberania, sobretudo nos casos em que ela foi muito violada – a soberania também pode ter as formas mais execráveis.
Não se pode excluir que, após duas décadas de erosão e agressão contínuas, comecemos a nos aproximar perigosamente desses pontos críticos. Por isso, a ideia de uma reconquista ordenada da soberania oferece uma perspectiva política interessante, talvez até urgente.
Certamente ela tem, em um primeiro momento, o inconveniente da aparência de um apego excessivo ao passado, ao retomar a ideia de “nação”, ridicularizada pelo neoliberalismo e por todos aqueles que, à esquerda, acham útil lhe dar uma ajuda. A simplificação faz com que a ideia de nação seja concebida limitadamente e sempre separada de sua correlata essencial, a soberania.
No médio prazo, em todo caso, é possível preferir o gosto pelo passado da deliberação política, na qual as arbitragens do endividamento público seriam completamente reintegradas, a um mundo globalizado, surpreendentemente moderno, no qual são os mercados de capital que fixam o montante da exação, isto é, do tributo extraído da riqueza nacional pelos credores dos quatro cantos do mundo.
Só é possível encontrar algum valor nessa conclusão bastante simples se a globalização, finalmente, não for nada além da dissolução das soberanias pela mercantilização de tudo. Em outras palavras, desglobalizar é repolitizar.
Frédéric Lordon é economista, autor de Jusqu'à quand? L'éternel retour de la crise financière (Até quando? O eterno retorno da crise financeira), Raisons d'Agir, Paris, 2008.
1 Ler “Além da Grécia: déficits, dívida e moeda”, Os blogs do Diplo, “La pompe à phynance”, 17 de fevereiro de 2010.
2 A taxa de poupança dos americanos cai continuamente, passando de 8% no início dos anos 1980 para 0% em 2006.
3 Ler Frédéric Lordon, Les quadratures de la politique économique, Albin Michel, Paris, 1997.
4 Útil por uma vez, o deputado socialista francês, Didier Migaud, então presidente da comissão de finanças da Assembleia Nacional (e antes de ser nomeado presidente do Tribunal de Contas), levantou a lebre ao revelar uma pequena gentileza fiscal, discretamente oferecida às empresas sob a forma de redução nos impostos sobre os lucros das vendas de participações de longo prazo: 20 bilhões de euros, ou seja, 1% do PIB a mais de déficit por ano. Ler sobre os presentes fiscais: Jean Gadrey, “Viva o imposto!”, blog Alternatives Économiques, 15 de março de 2010.
5 “O espectro da dívida pública”, Le Monde Diplomatique, julho de 2008.
Le Monde Diplomatique Brasil
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