O futuro das cidades
Para unir o urbano dividido
Cerca de um bilhão de pessoas vivem hoje em situação de extrema pobreza nas cidades. Para incluí-las, é preciso mais do que ampliar as suas capacidades de consumo. É necessário promover uma reconfiguração estrutural dos seus territórios, integrando as esferas políticas, econômicas, culturais e materiais da vida urbana
por Kazuo Nakano
Violações do direito à cidade
Direito à Cidade – Unindo o Urbano Dividido” será o tema central da quinta sessão do Fórum Urbano Mundial, que ocorre dias 26 e 27 de março, no Rio de Janeiro. Mais uma vez, autoridades governamentais, lideranças comunitárias, pesquisadores e diversos tipos de organizações sociais se reúnem para discutir as várias faces das desigualdades sociais que dividem, muitas vezes de modo violento, os territórios das cidades.
Esses temas são velhos conhecidos para aqueles que estão atentos às realidades urbanas no mundo. E não há nenhuma dúvida em relação à importância técnica e política das discussões sobre eles. Entretanto, é importante que essas discussões saiam dos enunciados e se concretizem, produzindo espaços urbanos com maior equidade, justiça social, fortalecimento democrático e sustentabilidade. Será que isso é possível? A resposta é positiva, desde que os discursos críticos busquem incansavelmente realizar ações transformadoras nessas realidades urbanas criticadas.
Não basta interpretar a realidade das cidades, há que se experimentar mudá-las nos marcos de um amplo projeto social e político, pois cerca de um terço dos moradores das áreas urbanas mundiais, cerca de um bilhão de pessoas, se encontram em situações de extrema pobreza e morando em assentamentos precários, expostos à fome e a vários tipos de riscos e ameaças. Para incluir essas pessoas nas cidades, gerando condições de cidadania, é preciso mais do que ampliar as suas capacidades de consumo. É preciso promover uma reconfiguração estrutural dos seus territórios integrando-os a todas as esferas políticas, econômicas, culturais e materiais da vida urbana.
É significativo observar que a luta pelo direito à cidade, originária da sociedade, está adentrando as esferas institucionais, inclusive dos organismos internacionais. Vê-se que essa luta é atualíssima, pois os padrões desiguais, precários e predatórios de urbanização estão se disseminando, de modo destrutivo, em várias partes do planeta. Tais padrões são produzidos pelas forças desregradas e desagregadoras dos mercados formais e informais que promovem formas excludentes de uso e ocupação do solo urbano, que segregam os locais de moradias dos grupos de alta, média e baixa renda.
No Brasil, estamos inteiramente familiarizados com os temas abordados no FUM 2010. Temos lutas históricas pelo direito à cidade e conhecemos as graves consequências do “urbano dividido”. Quando vemos as favelas e os bairros gigantes das periferias metropolitanas, notamos as precariedades urbanísticas e vulnerabilidades socioambientais que prejudicam as condições de vida dos seus moradores. Nesse momento sabemos que milhões de homens e mulheres, em fases distintas da existência, sofrem violações diárias do direito à cidade.
As segregações socioespaciais entre assentamentos urbanos formais e informais, entre espaços bem qualificados e precários do ponto de vista urbanístico, não devem ser vistas como fenômenos naturais e inevitáveis. Isso se deve, principalmente, às práticas de planejamento e regulação urbana que subordinam o interesse público às regras que facilitam a atuação dos agentes dos mercados imobiliários, que buscam, cada vez mais, lucrar de modo predatório com os processos de produção e transformação dos espaços urbanos.
É preciso regular as forças do mercado para evitar ataques especulativos e ampliar ao máximo o acesso ao solo adequado das cidades, em especial aqueles localizados nas partes centrais e intermediárias, para a implantação e permanência das moradias dos mais pobres que não conseguem acessar o mercado imobiliário formal.
A crise econômica iniciada em 2008 e ainda em pleno curso no mundo mostrou, claramente, que as forças do mercado que atuam livre de regulações públicas são altamente prejudiciais para a sociedade como um todo. Essa crise global, considerada a maior desde a Grande Depressão da década de 1930, coloca em pauta a discussão sobre o papel do Estado na prevenção das vulnerabilidades sistêmicas que afetam vários campos da vida social. Essa discussão cabe também em tudo que diz respeito às cidades, em especial às metrópoles, onde há grande concentração populacional e acúmulos gigantescos de déficits históricos na oferta de serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas básicas.
Junto com as cidades mé adias, as metrópoles são pujantes máquinas econômicas de produção e consumo de riquezas e, ao mesmo tempo, poderosas máquinas de exclusão socioterritorial dos mais pobres. Essas enormes máquinas socioterritoriais operam devastando recursos naturais, devorando fontes de energias e gerando toneladas de resíduos e efluentes que contaminam os solos, os ares e as águas. Para que essas potentes máquinas operem num rumo com mais inclusão social, democracia e sustentabilidade, nós precisamos de mais políticas públicas, processos de planejamento e gestão territorial conduzidos por Estados que não estejam capturados pela lógica patrimonialista e clientelista que favorece interesses privados minoritários.
O Estado é fundamental para acabar com as violações do direito à cidade, como a insuficiência e baixa qualidade na oferta dos serviços públicos de saneamento básico, transporte coletivo, educação, saúde, cultura e assistência social, entre outros. Quando testemunhamos os despejos forçados, o aumento da criminalidade, os conflitos fundiários e as mortes provocadas por deslizamentos de morros e pelas inundações, nós percebemos que essas violações são, às vezes, fatais e extremamente violentas. Nesses casos, as violências das cidades se somam às violências nas cidades.
Para alterar esse quadro necessitamos aceitar as cidades, criticamente, como fenômenos positivos e não somente como lugares destrutivos e infernais. Precisamos ativar suas maiores potencialidades, as inteligências coletivas capazes de buscar soluções conjuntas para problemas comuns. As cidades são os locais mais propícios para a realização de amplos debates públicos, inclusive com a utilização das modernas tecnologias de comunicação, na busca por agendas políticas compartilhadas e articuladas.
As crescentes interconexões inter-urbanas estão fazendo das redes de cidades lugares férteis para a consolidação de pactos em torno de projetos e objetivos futuros de longo prazo. Para enfrentarmos os desafios que se levantam nos horizontes do século XXI, o que temos de mais potente é, apesar de tudo, as possibilidades de mudanças a partir das cidades.
Produção e inclusão
A efetivação do direito à cidade precisa de um Estado forte, com estrutura institucional e capacidade técnica para a formulação e implementação de políticas públicas verdadeiramente democráticas e com estreita integração intersetorial. Políticas públicas inseridas em estruturas de governanças territoriais e econômicas que operem articulações entre as escalas locais, regionais e nacionais e estejam organizadas nas esferas municipais, estaduais e federal. Estruturas que precisam ser criadas com investimentos maciços na formação continuada de gestores públicos e em arranjos organizacionais que superem o baixo grau de desenvolvimento institucional existentes nos entes da federação.
É preciso também um Estado no qual os diferentes níveis de governo tenham capacidades de realizar investimentos públicos com responsabilidade e transparência. Investimentos que, de fato, atenda às principais demandas sociais locais e regionais. Precisamos superar a atual lógica do balcão que prevalece na obtenção de recursos para financiar ações e intervenções nos espaços urbanos. É necessário eliminar as condições de penúria e dependência financeira em que se encontra a maioria das prefeituras municipais e alguns governos estaduais do país.
Afora as necessidades de investimentos para atender às demandas organizacionais da gestão pública, as agendas de financiamento do desenvolvimento urbano nas cidades e regiões do Brasil apresentam duas vertentes que precisam se acomodar de modo justo e equilibrado:
• a satisfação das necessidades sociais básicas de todos os habitantes das cidades, concretizando um padrão de urbanidade e de inclusão socioterritorial que universalize a cobertura e garanta a qualidade de serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas básicas; e que democratize as decisões para que as pessoas tenham possibilidades de escolha em relação ao seu desenvolvimento e realização das suas capacidades humanas. Apesar de incipientes, tais padrões estão sendo definidos com clareza crescente nos sistemas federativos das políticas de saúde e assistência social;
• o bom funcionamento dos territórios econômicos das cidades na produção e distribuição de riquezas. Trata-se de configurar esses territórios para que novos processos produtivos venham a reduzir o uso de fontes de energia e recursos não renováveis, reduzir a geração de poluentes e melhorar a distribuição dos produtos com redução, reuso e reciclagem de resíduos.
É nas perspectivas apontadas por essas vertentes que precisamos avaliar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), tanto em relação aos investimentos públicos em urbanização de favelas e implantação de serviços e infraestruturas de saneamento básico, quanto na execução de grandes obras de infraestruturas que exercem impactos sociais, econômicos e ambientais nos espaços urbanos locais e regionais. Essa atenção especial deve ser dada também às realizações do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), que se propôs a produzir um milhão de moradias urbanas para as famílias com renda até 10 salários mínimos.
Esses critérios valem também para avaliarmos as ações de regularização fundiária realizadas por diferentes órgãos do governo federal como, por exemplo, a Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, a Secretaria do Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, entre outros. Até que ponto todos aqueles investimentos públicos, somados a essas ações de regularização fundiária, estão contribuindo para a superação do nosso “urbano dividido” manifesto nas grandes, médias e pequenas cidades? Até que ponto eles superam as profundas discrepâncias sociais e econômicas entre os lugares de moradia dos grupos ricos e pobres? Quais são os seus efeitos na base econômica local e regional?
Na avaliação dos vários componentes do PAC, do PMCMV e das ações de regularização fundiária de assentamentos urbanos, precários e informais, vale indagar se eles contribuem para os esforços de estruturação de políticas urbanas e habitacionais mais perenes. Em que medida eles contribuem para a consolidação de políticas públicas de Estado que extrapolem as limitações de um ou dois mandatos governamentais?
Como é que esses investimentos e ações fortalecem processos permanentes de planejamento e regulação urbana que assegurem o cumprimento das funções sociais das cidades e das propriedades urbanas, conforme determinações do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001)? Esses investimentos e ações impulsionam a construção do importante Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, instituído pela Lei Federal 11.124/2005? Promovem o desenvolvimento institucional e práticas democráticas nos diferentes níveis da federação?
Essas avaliações são fundamentais para que a sociedade possa compreender que tipos de resultados estão sendo alcançados por essas ações estatais realizadas nos espaços urbanos do país. A partir dessa compreensão, é possível ver quais os ajustes e aperfeiçoamentos podem ser feitos para se conseguir avanços na efetivação do direito à cidade no Brasil.
Os caminhos para o desenvolvimento econômico socialmente equitativo e ambientalmente sustentável passam, necessariamente, por mudanças profundas nas condições de vida e de produção econômica existentes nas cidades. Tais mudanças demandam, por exemplo:
• o planejamento de ações e investimentos que atendam a todas as necessidades habitacionais existentes nas cidades brasileiras a fim de eliminar os déficits de novas moradias e das condições inadequadas de habitação. Atendam ainda a todas às demandas por serviços e infraestruturas de saneamento ambiental que integrem abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, drenagem urbana e controle de vetores de transmissão de doenças;
• a superação definitiva do predomínio do automóvel individual na matriz dos transportes de massa para modalidades integradas e sustentáveis, baseadas em veículos de uso coletivo movidos a fontes de energia limpas e renováveis, como a dos biocombustíveis e elétrica. Trata-se da utilização articulada de transportes coletivos como trens, metrô, trólebus, veículos leve sobre trilhos, bicicletas, entre outros;
• a eliminação das situações de vulnerabilidade a riscos de todos os tipos, em especial aqueles gerados pelos efeitos das mudanças climáticas e de aquecimentos globais nos espaços urbanos. Tal medida demanda várias ações de adaptação que envolvem, por exemplo, a renaturalização de trechos de várzeas fluviais inundáveis e a realocação, pactuada, de moradores de áreas vulneráveis para locais mais seguros e adequados do ponto de vista urbanístico. É urgente um trabalho sistemático de análise e definição das ações necessárias para a adaptação dos espaços das cidades àqueles efeitos das mudanças climáticas e do aquecimento global.
Ganha cada vez mais força a ideia de que será por meio das cidades que vamos realizar novos modelos de desenvolvimento econômico, humano e territorial que promovam a equidade na distribuição das riquezas sociais, a democratização nas relações sociais e a sustentabilidade no uso e proteção dos recursos naturais.
O planejamento e a gestão pública são fundamentais para a efetivação desses novos modelos. Precisam estar à altura dos desafios e das potencialidades das cidades do século XXI. O tempo urge e não podemos mais protelar as decisões necessárias. O futuro será fruto dessas decisões.
Kazuo Nakano é arquiteto urbanista, técnico do Instituto Pólis, doutorando do Núcleo de Pesquisas Populacionais (NEPO) da Universidade de Campinas (Unicamp).
Le Monde Diplomatique Brasil
Para unir o urbano dividido
Cerca de um bilhão de pessoas vivem hoje em situação de extrema pobreza nas cidades. Para incluí-las, é preciso mais do que ampliar as suas capacidades de consumo. É necessário promover uma reconfiguração estrutural dos seus territórios, integrando as esferas políticas, econômicas, culturais e materiais da vida urbana
por Kazuo Nakano
Violações do direito à cidade
Direito à Cidade – Unindo o Urbano Dividido” será o tema central da quinta sessão do Fórum Urbano Mundial, que ocorre dias 26 e 27 de março, no Rio de Janeiro. Mais uma vez, autoridades governamentais, lideranças comunitárias, pesquisadores e diversos tipos de organizações sociais se reúnem para discutir as várias faces das desigualdades sociais que dividem, muitas vezes de modo violento, os territórios das cidades.
Esses temas são velhos conhecidos para aqueles que estão atentos às realidades urbanas no mundo. E não há nenhuma dúvida em relação à importância técnica e política das discussões sobre eles. Entretanto, é importante que essas discussões saiam dos enunciados e se concretizem, produzindo espaços urbanos com maior equidade, justiça social, fortalecimento democrático e sustentabilidade. Será que isso é possível? A resposta é positiva, desde que os discursos críticos busquem incansavelmente realizar ações transformadoras nessas realidades urbanas criticadas.
Não basta interpretar a realidade das cidades, há que se experimentar mudá-las nos marcos de um amplo projeto social e político, pois cerca de um terço dos moradores das áreas urbanas mundiais, cerca de um bilhão de pessoas, se encontram em situações de extrema pobreza e morando em assentamentos precários, expostos à fome e a vários tipos de riscos e ameaças. Para incluir essas pessoas nas cidades, gerando condições de cidadania, é preciso mais do que ampliar as suas capacidades de consumo. É preciso promover uma reconfiguração estrutural dos seus territórios integrando-os a todas as esferas políticas, econômicas, culturais e materiais da vida urbana.
É significativo observar que a luta pelo direito à cidade, originária da sociedade, está adentrando as esferas institucionais, inclusive dos organismos internacionais. Vê-se que essa luta é atualíssima, pois os padrões desiguais, precários e predatórios de urbanização estão se disseminando, de modo destrutivo, em várias partes do planeta. Tais padrões são produzidos pelas forças desregradas e desagregadoras dos mercados formais e informais que promovem formas excludentes de uso e ocupação do solo urbano, que segregam os locais de moradias dos grupos de alta, média e baixa renda.
No Brasil, estamos inteiramente familiarizados com os temas abordados no FUM 2010. Temos lutas históricas pelo direito à cidade e conhecemos as graves consequências do “urbano dividido”. Quando vemos as favelas e os bairros gigantes das periferias metropolitanas, notamos as precariedades urbanísticas e vulnerabilidades socioambientais que prejudicam as condições de vida dos seus moradores. Nesse momento sabemos que milhões de homens e mulheres, em fases distintas da existência, sofrem violações diárias do direito à cidade.
As segregações socioespaciais entre assentamentos urbanos formais e informais, entre espaços bem qualificados e precários do ponto de vista urbanístico, não devem ser vistas como fenômenos naturais e inevitáveis. Isso se deve, principalmente, às práticas de planejamento e regulação urbana que subordinam o interesse público às regras que facilitam a atuação dos agentes dos mercados imobiliários, que buscam, cada vez mais, lucrar de modo predatório com os processos de produção e transformação dos espaços urbanos.
É preciso regular as forças do mercado para evitar ataques especulativos e ampliar ao máximo o acesso ao solo adequado das cidades, em especial aqueles localizados nas partes centrais e intermediárias, para a implantação e permanência das moradias dos mais pobres que não conseguem acessar o mercado imobiliário formal.
A crise econômica iniciada em 2008 e ainda em pleno curso no mundo mostrou, claramente, que as forças do mercado que atuam livre de regulações públicas são altamente prejudiciais para a sociedade como um todo. Essa crise global, considerada a maior desde a Grande Depressão da década de 1930, coloca em pauta a discussão sobre o papel do Estado na prevenção das vulnerabilidades sistêmicas que afetam vários campos da vida social. Essa discussão cabe também em tudo que diz respeito às cidades, em especial às metrópoles, onde há grande concentração populacional e acúmulos gigantescos de déficits históricos na oferta de serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas básicas.
Junto com as cidades mé adias, as metrópoles são pujantes máquinas econômicas de produção e consumo de riquezas e, ao mesmo tempo, poderosas máquinas de exclusão socioterritorial dos mais pobres. Essas enormes máquinas socioterritoriais operam devastando recursos naturais, devorando fontes de energias e gerando toneladas de resíduos e efluentes que contaminam os solos, os ares e as águas. Para que essas potentes máquinas operem num rumo com mais inclusão social, democracia e sustentabilidade, nós precisamos de mais políticas públicas, processos de planejamento e gestão territorial conduzidos por Estados que não estejam capturados pela lógica patrimonialista e clientelista que favorece interesses privados minoritários.
O Estado é fundamental para acabar com as violações do direito à cidade, como a insuficiência e baixa qualidade na oferta dos serviços públicos de saneamento básico, transporte coletivo, educação, saúde, cultura e assistência social, entre outros. Quando testemunhamos os despejos forçados, o aumento da criminalidade, os conflitos fundiários e as mortes provocadas por deslizamentos de morros e pelas inundações, nós percebemos que essas violações são, às vezes, fatais e extremamente violentas. Nesses casos, as violências das cidades se somam às violências nas cidades.
Para alterar esse quadro necessitamos aceitar as cidades, criticamente, como fenômenos positivos e não somente como lugares destrutivos e infernais. Precisamos ativar suas maiores potencialidades, as inteligências coletivas capazes de buscar soluções conjuntas para problemas comuns. As cidades são os locais mais propícios para a realização de amplos debates públicos, inclusive com a utilização das modernas tecnologias de comunicação, na busca por agendas políticas compartilhadas e articuladas.
As crescentes interconexões inter-urbanas estão fazendo das redes de cidades lugares férteis para a consolidação de pactos em torno de projetos e objetivos futuros de longo prazo. Para enfrentarmos os desafios que se levantam nos horizontes do século XXI, o que temos de mais potente é, apesar de tudo, as possibilidades de mudanças a partir das cidades.
Produção e inclusão
A efetivação do direito à cidade precisa de um Estado forte, com estrutura institucional e capacidade técnica para a formulação e implementação de políticas públicas verdadeiramente democráticas e com estreita integração intersetorial. Políticas públicas inseridas em estruturas de governanças territoriais e econômicas que operem articulações entre as escalas locais, regionais e nacionais e estejam organizadas nas esferas municipais, estaduais e federal. Estruturas que precisam ser criadas com investimentos maciços na formação continuada de gestores públicos e em arranjos organizacionais que superem o baixo grau de desenvolvimento institucional existentes nos entes da federação.
É preciso também um Estado no qual os diferentes níveis de governo tenham capacidades de realizar investimentos públicos com responsabilidade e transparência. Investimentos que, de fato, atenda às principais demandas sociais locais e regionais. Precisamos superar a atual lógica do balcão que prevalece na obtenção de recursos para financiar ações e intervenções nos espaços urbanos. É necessário eliminar as condições de penúria e dependência financeira em que se encontra a maioria das prefeituras municipais e alguns governos estaduais do país.
Afora as necessidades de investimentos para atender às demandas organizacionais da gestão pública, as agendas de financiamento do desenvolvimento urbano nas cidades e regiões do Brasil apresentam duas vertentes que precisam se acomodar de modo justo e equilibrado:
• a satisfação das necessidades sociais básicas de todos os habitantes das cidades, concretizando um padrão de urbanidade e de inclusão socioterritorial que universalize a cobertura e garanta a qualidade de serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas básicas; e que democratize as decisões para que as pessoas tenham possibilidades de escolha em relação ao seu desenvolvimento e realização das suas capacidades humanas. Apesar de incipientes, tais padrões estão sendo definidos com clareza crescente nos sistemas federativos das políticas de saúde e assistência social;
• o bom funcionamento dos territórios econômicos das cidades na produção e distribuição de riquezas. Trata-se de configurar esses territórios para que novos processos produtivos venham a reduzir o uso de fontes de energia e recursos não renováveis, reduzir a geração de poluentes e melhorar a distribuição dos produtos com redução, reuso e reciclagem de resíduos.
É nas perspectivas apontadas por essas vertentes que precisamos avaliar o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), tanto em relação aos investimentos públicos em urbanização de favelas e implantação de serviços e infraestruturas de saneamento básico, quanto na execução de grandes obras de infraestruturas que exercem impactos sociais, econômicos e ambientais nos espaços urbanos locais e regionais. Essa atenção especial deve ser dada também às realizações do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), que se propôs a produzir um milhão de moradias urbanas para as famílias com renda até 10 salários mínimos.
Esses critérios valem também para avaliarmos as ações de regularização fundiária realizadas por diferentes órgãos do governo federal como, por exemplo, a Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, a Secretaria do Patrimônio da União do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, entre outros. Até que ponto todos aqueles investimentos públicos, somados a essas ações de regularização fundiária, estão contribuindo para a superação do nosso “urbano dividido” manifesto nas grandes, médias e pequenas cidades? Até que ponto eles superam as profundas discrepâncias sociais e econômicas entre os lugares de moradia dos grupos ricos e pobres? Quais são os seus efeitos na base econômica local e regional?
Na avaliação dos vários componentes do PAC, do PMCMV e das ações de regularização fundiária de assentamentos urbanos, precários e informais, vale indagar se eles contribuem para os esforços de estruturação de políticas urbanas e habitacionais mais perenes. Em que medida eles contribuem para a consolidação de políticas públicas de Estado que extrapolem as limitações de um ou dois mandatos governamentais?
Como é que esses investimentos e ações fortalecem processos permanentes de planejamento e regulação urbana que assegurem o cumprimento das funções sociais das cidades e das propriedades urbanas, conforme determinações do Estatuto da Cidade (Lei Federal 10.257/2001)? Esses investimentos e ações impulsionam a construção do importante Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, instituído pela Lei Federal 11.124/2005? Promovem o desenvolvimento institucional e práticas democráticas nos diferentes níveis da federação?
Essas avaliações são fundamentais para que a sociedade possa compreender que tipos de resultados estão sendo alcançados por essas ações estatais realizadas nos espaços urbanos do país. A partir dessa compreensão, é possível ver quais os ajustes e aperfeiçoamentos podem ser feitos para se conseguir avanços na efetivação do direito à cidade no Brasil.
Os caminhos para o desenvolvimento econômico socialmente equitativo e ambientalmente sustentável passam, necessariamente, por mudanças profundas nas condições de vida e de produção econômica existentes nas cidades. Tais mudanças demandam, por exemplo:
• o planejamento de ações e investimentos que atendam a todas as necessidades habitacionais existentes nas cidades brasileiras a fim de eliminar os déficits de novas moradias e das condições inadequadas de habitação. Atendam ainda a todas às demandas por serviços e infraestruturas de saneamento ambiental que integrem abastecimento de água, coleta e tratamento de esgotos, drenagem urbana e controle de vetores de transmissão de doenças;
• a superação definitiva do predomínio do automóvel individual na matriz dos transportes de massa para modalidades integradas e sustentáveis, baseadas em veículos de uso coletivo movidos a fontes de energia limpas e renováveis, como a dos biocombustíveis e elétrica. Trata-se da utilização articulada de transportes coletivos como trens, metrô, trólebus, veículos leve sobre trilhos, bicicletas, entre outros;
• a eliminação das situações de vulnerabilidade a riscos de todos os tipos, em especial aqueles gerados pelos efeitos das mudanças climáticas e de aquecimentos globais nos espaços urbanos. Tal medida demanda várias ações de adaptação que envolvem, por exemplo, a renaturalização de trechos de várzeas fluviais inundáveis e a realocação, pactuada, de moradores de áreas vulneráveis para locais mais seguros e adequados do ponto de vista urbanístico. É urgente um trabalho sistemático de análise e definição das ações necessárias para a adaptação dos espaços das cidades àqueles efeitos das mudanças climáticas e do aquecimento global.
Ganha cada vez mais força a ideia de que será por meio das cidades que vamos realizar novos modelos de desenvolvimento econômico, humano e territorial que promovam a equidade na distribuição das riquezas sociais, a democratização nas relações sociais e a sustentabilidade no uso e proteção dos recursos naturais.
O planejamento e a gestão pública são fundamentais para a efetivação desses novos modelos. Precisam estar à altura dos desafios e das potencialidades das cidades do século XXI. O tempo urge e não podemos mais protelar as decisões necessárias. O futuro será fruto dessas decisões.
Kazuo Nakano é arquiteto urbanista, técnico do Instituto Pólis, doutorando do Núcleo de Pesquisas Populacionais (NEPO) da Universidade de Campinas (Unicamp).
Le Monde Diplomatique Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário