sexta-feira, 12 de novembro de 2010

ALEMANHA - O preço da estabilidade

O preço da estabilidade

Apesar do clima de confiança na economia do país, que conseguiu se manter em melhor situação durante a crise europeia, a Alemanha está pagando um alto custo social por ter sido campeã mundial de exportações. Além do aumento da desigualdade e da pobreza, crescem as tensões políticas

por Till van Treeck

Atualmente, os líderes políticos na Alemanha aparentam muita confiança em relação à economia do país. Até bem recentemente, tanto os sociais-democratas quanto os conservadores não perdiam a chance de se gabar por terem conduzido, nas últimas décadas, as tais “reformas estruturais” que contribuíram para fazer da Alemanha a “campeã mundial das exportações”. Na verdade, até 2009, quando este título foi perdido para a China, o país era o que mais vendia produtos para o exterior em termos de valor agregado.

A economia alemã, fortemente orientada para exportações, foi afetada duramente pela crise econômica mundial iniciada em 2008, culminando em uma queda do comércio internacional: o produto interno bruto (PIB) real alemão declinou 5% em 2009, enquanto que em outros países da zona do euro ele caiu em “apenas” 3,7%. No entanto, a Alemanha ainda é considerada uma fortaleza de estabilidade se comparada a outros membros da União Monetária Europeia e, particularmente, aos infelizes “Pigs” (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha, da sigla em inglês).

A verdade é que o déficit governamental ainda é relativamente pequeno na Alemanha: estava abaixo de 3% do PIB em 2009 e espera-se que fique em torno dos 5% em 2010, enquanto que nos Pigs, em 2009, ele ficou entre 8% em Portugal e quase 14% na Grécia . De maneira similar, o fato de as taxas de juros sobre os títulos do governo alemão estarem caindo nos últimos meses – enquanto que os Pigs tiveram que oferecer maiores garantias contra riscos aos seus credores – foi interpretado como uma evidência de que a Alemanha, como resultado de sua reforma estrutural e relativa disciplina fiscal, vem ganhando a disputa e, portanto, merece a confiança dos mercados.

Por isso, o governo alemão há muito tem sido relutante em participar de uma solução europeia coordenada para salvar a “tragédia grega”, problema que inicialmente era percebido como uma crise da dívida interna de um país que aparentemente não havia feito seu dever de casa. Somente após um longo período de hesitação, acompanhado por crescentes especulações nos mercados financeiros contra o governo grego, a Alemanha finalmente concordou, em maio de 2010, com o plano de resgate europeu que poderia potencialmente conceder até 750 bilhões de euros em crédito aos países da zona do euro com problemas financeiros.

Mesmo assim, essa interpretação sobre a atual crise na zona do euro, que infelizmente ainda é dominante na Alemanha, é altamente questionável. Na verdade, se a Alemanha, como a maior euro-economia, responsável por mais de um quarto do PIB da região, não superar sua estratégia exageradamente exportadora e seu crescimento neomercantilista, não será possível estabilizar a União Monetária Europeia em longo prazo. Os desequilíbrios comerciais irão persistir e outros países-membros terão que embarcar numa estratégia de austeridade fiscal e contenção de salários a fim de ganhar competitividade em relação à Alemanha. Isso poderia levar a zona do euro a uma espiral descendente, incluindo elevação no nível de desemprego, risco de deflação e aumento de tensões sociais e políticas. Essa foi exatamente a crítica que John Maynard Keynes teceu contra o mercantilismo, uma doutrina econômica ultrapassada onde cada nação tenta melhorar sua balança comercial à custa de outros países, resultando em demanda agregada insuficiente em nível global.

Democracia social?

O Partido Social Democrático (SPD) governou o país de 1998 a 2005, sob a liderança do chanceler Gerhard Schröder, e foi parceiro júnior na Grande Coalizão com o conservador Partido Democrata Cristão (CDU) durante o governo Angela Merkel, de 2005 a 2009. Portanto, é muito difícil para o SPD reconhecer que as reformas estruturais iniciadas com a assim chamada Agenda 2010, a partir de 2002, tenham alguma coisa a ver com a fraca demanda doméstica na Alemanha e os desequilíbrios macroeconômicos na zona do euro.

Em seu manifesto para as eleições gerais de 2009, genericamente conhecido como Deutschland-Plan, o candidato do SPD, Frank-Walter Steinmeier, descreveu o alegado sucesso da Agenda 2010: “Desde 1998, nós, sociais democratas, estamos modernizando a Alemanha e reconstruindo a competitividade internacional. Foi por meio da política de moderação salarial, com o auxílio de parceiros sociais, que as empresas e produtos alemães se tornaram competitivos nos mercados mundiais. A Alemanha se transformou de ‘doente europeu’, como a mídia internacional a chamava há dez anos, em locomotiva da economia na União Europeia. Em 2008, o país já era novamente a campeão mundial das exportações... Os ganhos sociais associados fazem de nós campeões da divisão global do trabalho”.

Realmente, a desregulamentação do mercado de trabalho – que começou nos anos 1990, mas foi elevada a um novo patamar com a Agenda 2010 a partir de 2002 – foi claramente projetada para reduzir salários na renda nacional e aumentar a dispersão dos mesmos. Durante seu discurso no Fórum Econômico Mundial de Davos, em 2005, o então chanceler Gerhard Schröder promoveu o novo modelo alemão ressaltando que “criamos um setor funcional e de baixo custo e modificamos o sistema do seguro desemprego de maneira a dar alta prioridade aos incentivos ao trabalho”. Além disso, seguindo a orientação do Conselho Alemão de Especialistas em Economia e da maioria de outros especialistas da área, o governo vem até então se recusando a introduzir um salário mínimo oficial, que seria uma maneira de aliviar a crescente pressão sobre os salários resultantes da desregulamentação. Isso, juntamente com a frequente recusa do governo em declarar os contratos salariais negociados e universalmente vinculados, tem levado à erosão intencional do sistema de barganha salarial. De fato, o governo alemão parece concordar com a opinião de Hans-Werner Sinn, um conselheiro influente, que concluiu em 2009 que: “O crescimento do setor de baixos salários como resultado da Agenda 2010 não é um problema, mas um sucesso da política alemã”.

Mas, se examinarmos com mais profundidade o desempenho da economia alemã nesta última década, parece que o resultado positivo da Agenda 2010 é baseado mais em ideologia que em fatos empíricos. Para começar, deveríamos levar em conta que a Alemanha era o país (juntamente com a Itália) com o crescimento econômico mais fraco dentro da zona do euro entre 1999, ano em que a moeda foi introduzida, e 2007, o ano antes da crise. Além disso, o mercado de trabalho alemão teve um desempenho pior que a média europeia em termos de criação de novos postos de trabalho, e a economia alemã criou menos empregos que as economias da França, Espanha ou Itália (esse resultado ainda é considerado quando as diferenças de crescimento do PIB são avaliadas). Mesmo o relativo sucesso econômico de meados de 2005 ao início de 2008, celebrado por alguns políticos como a nova Wirtschaftswunder (maravilha econômica) alemã, foi menos intenso em termos de empregos que as duas últimas ascensões da França no final dos anos 90/início dos 2000 (após as 35 horas de reformas), e de 2005-2008.

Ao mesmo tempo, o aumento de desigualdades na Alemanha tem sido dramático. Como a OECD (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) reconheceu em 2008 (baseando-se em dados até 2005): “Desde 2000 a desigualdade de renda e a pobreza estão crescendo mais rapidamente na Alemanha que em qualquer outro país da OECD”. E mesmo durante a ascensão de 2005-2008, o coeficiente Gini, que sobe com maiores desigualdades, aumentou 4 pontos na Alemanha, enquanto diminuiu 2 pontos na França e na Itália, e permaneceu constante na Espanha. Esse aumento nas desigualdades foi, parcialmente, devido à desregulamentação do mercado de trabalho, o qual levou à estagnação ou declínio nos salários reais, mesmo durante o boom de 2005-2008. Além disso, a elevação das desigualdades também foi promovida pelo cerceamento dos benefícios sociais e gastos públicos no geral. Desta forma, a Alemanha é o único país (além do Japão) do qual a Comissão Europeia tem dados disponíveis, onde os gastos públicos e a inflação (ajustada) diminuíram entre 1998 e 2007 (na zona do euro como um todo, incluindo Alemanha, aumentou por volta de 14% no mesmo período). Este estado de exceção foi resultado, principalmente, de uma combinação de cortes substanciais de impostos beneficiando empresas e ricos proprietários, e a vontade de equilibrar o orçamento e reduzir dívidas públicas.

Estagnação de salários

Os desenvolvimentos mencionados anteriormente estão claramente ligados a uma nítida divisão entre a lenta economia doméstica e o dinâmico setor de exportação alemão. De 1999 a 2007, o país era o único, dentro da zona do euro, onde as exportações líquidas contribuíram mais com o crescimento do PIB que a economia doméstica. O consumo privado foi comprimido, estagnando-se o real rendimento de massa pela crescente sensação de insegurança, como resultado do mercado de trabalho, e pelas reformas estatais dos benefícios sociais. A contribuição do crescimento da demanda do governo foi também a mais fraca de todos os membros da zona do euro.

Por outro lado, a estagnação dos salários fez com que as exportações alemãs ficassem ainda mais competitivas. Numa unidade monetária, mudanças na competitividade do preço internacional não podem mais ser corrigidas por meio de mudanças nas taxas de câmbio nominais. Em vez disso, quando as mudanças no custo unitário de trabalho (intimamente ligadas às taxas de inflação) diferem entre os países-membros, alguns países ganham competitividade com relação aos outros. Ora, entre 1999 e 2007, os custos unitários de trabalho aumentaram menos de 2% na Alemanha, mas entre 28% e 31% na Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha. Isso significa dizer que não apenas todos os outros países perderam em termos de competitividade de preço com relação à Alemanha, mas que também, como resultado da inflação menor, as taxas de juros têm sido mais altas neste país. Isso contribuiu mais tarde para o enfraquecimento da demanda doméstica. Mesmo na França, onde o custo unitário de trabalho aumentou 17% de 1999 a 2007 (quase alinhado com o alvo de inflação do European Central Bank), a balança externa passou de excedente em 1999-2003, a deficitária a partir de 2004.

Deve-se notar também que a atual crise do euro e os ataques especulativos contra os Pigs têm mais a ver com os desequilíbrios comerciais que com a dívida estatal. Por exemplo, a Espanha, que é de longe o maior dos Pigs, nunca (de 1999 a 2007) violou o limite de 3% de Maastricht, usado como referência pelo European Stability and Growth Pact (SGP – Estabilidade Europeia e Pacto de Crescimento). Ao passo que a Alemanha violou este limite de 2002 a 2005. Além disso, a dívida estatal diminuiu, como porcentagem do PIB, de 62% para 36% na Espanha (na Alemanha cresceu de 61% para 65%), e o governo tem até mesmo tido superávits de 2005 a 2007. Mesmo assim, a despesa privada tem sistematicamente excedido a receita; assim, o setor privado (pessoas físicas e jurídicas) persistentemente tem experimentado altos déficits de até 12% do PIB. Como o total da balança financeira do governo e do setor privado foi negativo, a dívida externa aumentou significativamente. E quando a bolha estourou e o desemprego disparou a partir de 2008, o governo teve que intervir e manipular grande parte da dívida privada e administrar os déficits para estabilizar a economia. De repente, a “validade do crédito” do Estado começou a ser questionada. A situação, de alguma forma, era similar na Irlanda, onde a dívida pública caiu de 49% para 25% do PIB entre 1999 e 2007, mas a dívida privada aumentou sensivelmente. Enquanto isso, na Grécia e Portugal, governos e (mais ainda) setor privado sofriam déficits persistentes. De maneira geral, a lição a ser aprendida a partir disso é que são os déficits comerciais ou dívida externa, e não a dívida pública, que podem minar o poder de crédito de um país e fazer dele alvo de especulação financeira.

Quase sem forças

Diante desse quadro, é totalmente incompreensível quando os líderes políticos alemães hoje se vangloriam pelo sucesso de suas reformas estruturais que fizeram o país parecer mais robusto e sólido fiscalmente aos olhos dos mercados financeiros. Na verdade, o que atualmente é percebido como a força da economia alemã é claramente o equivalente da vitória de Pirro. Lembrando que, segundo Plutarco, após uma vitória de suas tropas contra os romanos, o rei Pirro de Epirus respondeu a um elogio dizendo que “mais uma vitória como essa e ele estaria totalmente destruído”, já que ele havia perdido grande parte de suas forças e quase todos os seus amigos e principais comandantes.

Algo muito similar poderia ser dito sobre a Alemanha de hoje: ela pode não ter perdido suas forças, mas a batalha da divisão global do trabalho foi ganha a um custo social altíssimo, além de um aumento excepcional das desigualdades da pobreza e do declínio das rendas reais até mesmo na classe média. Sem mencionar o aumento das tensões políticas na Europa, que também parecem sugerir que países que deveriam ser aliados da Alemanha estão agora sofrendo as consequências de sua estratégia de crescimento neomercantislista, tornando-se cada vez mais céticos sobre o compromisso alemão de planejar uma Europa mais solidária. Claramente, como a zona do euro em geral não tem experimentado (nem pode, nem deveria!) superávits comerciais, a estratégia alemã orientada para as exportações só consegue funcionar enquanto os outros países do euro continuam a sofrer com suas dívidas externas...

Portanto, os alemães devem entender que não faz sentido, nem mesmo numa visão estreita de autointeresse nacional, ficar celebrando primeiro o título de “campeã mundial de exportações”, e depois reclamar sobre os custos das perdas de capital privado ou sobre as ajudas emergenciais do governo com relação aos importadores mergulhados em dívidas. Uma união monetária simplesmente não funciona quando a grande parte de seus membros contribui tão pouco com a demanda geral.

Os sociais democratas começaram agora a se dar conta de seus erros do passado. Já na época do Deutschland-Plan de 2009, quando a “campeã de exportações” ainda estava sendo celebrada, sabia-se que o “calcanhar de Aquiles da força externa alemã é a sua fraca economia doméstica... Precisamos encontrar um melhor equilíbrio para fortalecer nossa economia doméstica. Para isso, necessitamos salários mais condizentes e uma melhor distribuição de renda, bem como um investimento público estável”. Mesmo assim, esse reconhecimento chegou um pouco tarde, já que os sociais democratas não estão mais no poder. E o governo conservador liberal de Merkel não parece concordar com esse novo pensamento do SPD, agora muito debatido no partido.

A mentalidade ultrapassada do governo Merkel pode ser resumida por esta passagem contada pelo ministro da Economia, Wolfgang Schäuble: “Sou um torcedor do Bayern de Munique. Durante a fase da Liga dos Campeões, pensei que se o Lyon pudesse jogar só um pouco menos, o Bayern poderia se dar melhor. Mas esse não é o fundamento para se construir um sistema competitivo” (Financial Times, 24 de março de 2010). Depois de todas as guerras comerciais e conflitos políticos pelos quais a Europa passou no século passado, é muito irritante que um ministro alemão, abertamente, pareça sugerir que obter um alto superávit de exportação a níveis medíocres de crescimento e grandes desigualdades de renda seja comparável a uma vitória numa partida de futebol. Ele deveria lembrar a lição de Pirro: mais uma vitória como essa e a zona do euro (juntamente com o modelo de crescimento alemão) pode ser totalmente destruída.

Till van Treeck é economista do Institut für Makroökonomie und Konjunkturforschung (IMK), ligado à Fundação Hans Böckler.

Le Monde Diplomatique Brasil

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