Maurício Horta
As fezes humanas já alimentam boa parte do mundo. E podem
alimentar bem mais. De quebra, elas também são uma alternativa de energia
(hum...) limpa. E se prepare: ainda existe um verdadeiro pré-sal de cocô a ser
explorado!
"Merda de Artista. Contém 30 gramas", dizia o
rótulo das 90 latinhas nas quais o dadaísta Piero Manzoni embalou o próprio
cocô em 1961. Quatro décadas depois, as latas estão expostas em alguns dos mais
importantes museus do mundo - da Tate Modern, de Londres, ao Centro Georges
Pompidou, em Paris - e são disputada nos leilões da Sothesby’s por lances de
até 124 mil euros - R$ 10 mil o grama. Mas não precisa ser de artista para o
cocô humano valer dinheiro.
De toda a comida do mundo, 10% são produzidos pelos 200 milhões de camponeses
que usam esgoto cru para irrigar e fertilizar suas plantações, principalmente
na Ásia, segundo estudo do Instituto Internacional de Gerenciamento de Água
(IWMI, na sigla em inglês).
Não fosse pelo esgoto, o preço de vegetais em países pobres aumentaria
tremendamente. Cada tonelada de fezes humanas tem até 6 quilos de nitrogênio,
2,5 quilos de fósforo e 4,2 quilos de potássio, e cada 1 000 litros de urina,
até 70 quilos de nitrogênio, 9 quilos de potássio e 400 gramas de fósforo.
"Com essa constituição, fica claro o valor fertilizante dos dejetos
humanos tanto para uso em pequena como em grande escala", diz o engenheiro
agrícola Antonio Teixeira de Matos, da Universidade Federal de Viçosa.
Claro que nem ele nem ninguém defende que comer um legume cultivado nas fezes
de desconhecidos é uma boa ideia. Um grama de cocô é uma bomba com 10 milhões
de vírus, 1 milhão de bactérias, 1 000 cistos de parasitas e 100 ovos de
vermes. É a água contaminada por esses organismos que causa 80% das doenças
relacionadas à diarreia, que matam uma criança a cada 15 segundos. Ou seja:
comer desses cultivos é quase tão perigoso quanto não comer nada.
O potencial de verdade, então, está no esgoto tratado contra micro-organismos
nocivos. "A tecnologia para limpá-lo [como tanques de estabilização de
dejetos e outras técnicas de baixo custo] já é bem pesquisada e documentada. A
questão é apenas aplicá-la onde for necessário", diz a engenheira
ambiental Liqa Raschid, do IWMI.
Os países desenvolvidos já fazem isso, inclusive. Eles processam grande parte
dos dejetos, produzindo de um lado água potável e, de outro, o lodo de esgoto -
tratado contra bactérias e parasitas. E esse lodo é a base de muitos cultivos.
No Reino Unido, por exemplo, 70% do lodo vai para a agricultura, e, nos EUA, só
a empresa Synagro fatura US$ 320 milhões coletando lodo de esgoto para vender a
fazendeiros do país todo. Só não dá para substituir todo o fertilizante
artificial por cocô porque não o produzimos o suficiente.
O tratamento é fundamental para usar esgoto como adubo, mas não é tão
necessário se os dejetos forem aplicados em culturas não comestíveis, como
fibras, madeira e combustíveis, segundo Matos. "Se a aplicação for feita
em doses adequadas, para não contaminar o solo nem as águas subterrâneas, o
risco é mínimo. E o aproveitamento deve ser incentivado", conclui.
Resultado: o produto interno bruto do seu inyestino vai direto para o do país!
Você estará contribuindo para o crescimento econômico cada vez que sentar no
trono. Mas isso é só o começo.
Problema de gases
Outro fim economicamente interessante pode ser dado ao cocô: produzir energia.
Afinal, as fezes têm gás combustível de montão. Some a criação de animais
domesticados do mundo - 1,34 bilhão de vacas, 1,8 bilhão de cabras e ovelhas,
941 milhões de porcos e 18 bilhões de galinhas. Se você pegar só a metade do
que essa bicharada solta em um ano, poderá produzir em gás o equivalente a 2,28
bilhões de barris de petróleo por ano, ou 8% do que o mundo consome. Juntando
isso à produção intestinal dos 6,9 bilhões de seres humanos... bem, as chances
energéticas parecem ilimitadas.
Ainda assim, a produção de gás de origem biológica (o biogás) está
engatinhando. É que um biodigestor comum precisa de em média 30 litros de
matéria orgânica por dia para se tornar viável, enquanto uma pessoa faz cerca
de 250 gramas de cocô e 1 litro de urina nesse período. Não dá grande coisa em
biogás. Para manter acesa uma única lâmpada de 100 W, por exemplo, só com a
produção diária de 10 pessoas.
Mas com uma forcinha dos animais a coisa funciona. Uma vaca produz 30 quilos de
estrume por dia. Juntando isso com a porção humana, já dá para conversar. Tanto
que, hoje, 15 milhões de lares na China rural conectam suas privadas a um
biodigestor - e, poucas horas depois de terem dado a descarga, podem acender o
fogão e cozinhar o almoço. Com 1,6 bilhão de pessoas, o país conseguiu então
estampar mais um título autoatribuído de grandeza: o de país que aproveita mais
energia do cocô. Num vilarejo-modelo na província de Shaanxi, todo cocô, humano
ou animal, é aproveitado para produzir energia. A Índia segue o mesmo caminho,
com seus 283 milhões de vacas. Mas é o Nepal o país com mais biodigestores per
capita. Com 83% da população no campo e constante falta de combustível, 4% dos
nepaleses usam o biodigestor a cocô de vaca. O Brasil vai devagar, mas São
Paulo e Mato Grosso já têm fazendas com biodigestores de fezes de porcos.
Esse tipo de iniciativa pode fazer toda a diferença para o bolso dos criadores
de animais. E para o seu. Por exemplo: se todas as criações de frango
aproveitassem a quantidade mastodôntica de titica que produzem, a carne poderia
ficar 4% mais barata no supermercado, segundo um estudo de Julio César
Palhares, pesquisador da Embrapa. Isso corresponde ao custo do aquecimento
elétrico, uma necessidade dos criadouros. E a energia da titica, sozinha, daria
conta de eliminá-lo.
Mas nem sempre é necessário criar animais para que os biodigestores sejam
viáveis. Em lugares de população grande e concentrada o sistema pode vingar.
Foi o que aconteceu nas prisões Ruanda. O genocídio de 1994 inflou a população
carcerária do país, bombando tanto os gastos com lenha para cozinha quanto a
produção de fezes, que acabava nos rios. O cocô dos presos tinha virado um
problema nacional! A solução? Cozinhar a comida deles com biogás feito de suas
próprias fezes. Pronto. Desde então, esse combustível humano permite uma
economia de 60% nos gastos com lenha - gastos que chegariam a US$ 1 milhão por
ano.
Os europeus também já podem entrar no banheiro e sair com a consciência
ambiental mais limpa. A Alemanha transforma 60% de suas fezes em energia, e a
Inglaterra deve fechar 2010 passando a marca de 75%. Na Suécia já há carros
funcionando, indiretamente, à base de cocô. A cidade de Linköping transforma
todo o esgoto de seus habitantes (e mais o cocô de porcos e bois) no biogás
usado nos 64 ônibus do lugar e no primeiro trem movido a cocô do mundo, que tem
autonomia para percorrer 600 quilômetros. Enquanto isso, 12 postos abastecem os
carros locais, economizando 5,5 milhões de litros de gasolina. Com isso, 9
toneladas de CO2 deixam de ser lançadas no ar por ano.
Mesmo assim, ainda existe um pré-sal de cocô a ser explorado. Simplesmente
porque quase todo ano ele é desperdiçado por falta de saneamento básico. No
mundo, 2,5 bilhões de pessoas não contam com esse luxo. Não é que não tenham
acesso ao esgoto. Eles não possuem sequer uma fossa: vão para campos abertos de
defecação, linhas de trem, florestas... E em algumas favelas, partem para o
toalete-helicóptero: fazem num saquinho e jogam no telhado do vizinho.
Inspirador, não? Bom, para o empresário sueco Andrés Wihelmson foi. Primeiro
ele viu saquinhos de cocô voando em favelas do Quênia. Depois, constatou que
esses lugares tinham bastante espaço livre que poderia ser usado para plantar.
Aí ele juntou as duas coisas numa ideia só: fazer saquinhos-privada biodegradáveis
e com produtos químicos que matam os germes do cocô. Depois de se aliviar, você
enterra a caca e ela vira adubo. Andrés já testou a coisa na África e deve
começar a produção neste ano. A intenção não é fazer caridade, mas vender os
saquinhos pelo equivalente a R$ 0,05. Com lucro. Pois é: com cocô não se
brinca.
Mercado de m...
Nem só de adubo e de bioenergia vive a indústria do cocô
CAFÉ
O luwak, um tipo de sagúi asiático, é tão fresco que só come os melhores grãos
de café arábica da Indonésia. Depois de sair de seu ânus, os grãos produzem o
mais caro do mundo - até US$ 100 a xícara. Seleção natural!
PAPEL
Um elefante descarrega pelo intestino fibra suficiente para produzir 115 folhas
de papel por dia. Uma agenda de cocô de elefante tailandês sai por US$ 15. Já
um par de cartões de visita de cocô de panda sai por US$ 8.
INCENSO
Na Índia tudo o que vem dos 250 milhões de vacas é sagrado - inclusive o 1,25
milhão de toneladas de cocô que fazem por dia. Ele é usado como incenso. Os
mais devotos usam a fumaça para defumar queijo.
CARVÃO
Nas casas pobres indianas é comum ver no quintal mulheres amassando estrume e
transformando em bolachas - para secar e guardar e usar como combustível para o
fogão. Ou como enfeite nas paredes.
SABONETE
Feito com cocô de vaca hare krishna, o sabonete Angarag (R$ 0,60) é um must.
Ele vem de uma fazenda mantida por monges. Aproveite e leve o Netra Jyotri (15
ml): um colírio à base de urina de vaca, por R$ 0,80.
BATOM
A ideia vem da empresa de tratamento de esgoto de Londres, Thames Water. Rico
em gorduras (4% do cocô são lipídios), o lodo de esgoto pode ser fonte da
matéria-prima para fazer cosméticos.
PRIVADA
É como fechar um ciclo, hehe. A designer Virginia Gardiner criou uma privada
descartável feita 90% de cocô de cavalo. Depois de usar, você pode colocar a
privada inteira num biodigestor para produzir energia.
Para saber mais
Poop Culture, David Praeger, 2007
Editora: Feral House.
The Big Necessity, Rose George, 2008
Editora: Metropolitan Books.
Revista Superinteressante
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