sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Memórias do epicentro


Memórias do epicentro
por Gianni Carta
O último porta-voz de Gorbachev fala dos efeitos da Perestroika

Andrei grachev viu, de uma posição privilegiada, o colapso do bloco comunista no fim dos anos 80. Conselheiro político e último porta-voz de Mi­­khail Gorbachev, Grachev conta, nesta entrevista à CartaCapital, que o presidente francês François Mitterrand e a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher queriam evitar a reunificação da Alemanha, por temerem a força econômica e política da maior economia europeia. “Mitterrand e Thatcher chegaram a lembrar Gorbachev de que ele ainda tinha um contingente importante na RDA”, afirma. “Resumindo, encorajaram Gorbachev a intervir militarmente para evitar a reunificação.”


Autor de Gorbachev’s Last Gamble (Londres, Polity, 2008), Grachev argumenta que a Perestroika provocou a queda do Muro de Berlim e o término da Guerra Fria. Mas, ao buscar o fim do confronto entre a União Soviética e os Estados Unidos e, ao mesmo tempo, realizar reformas democráticas internas, Gorbachev acabou vencido pelas circunstâncias.

CartaCapital: O senhor considera que diferentes eventos marcaram o fim da Guerra Fria. Mas, simbolicamente, con­­corda que a queda do Muro de Berlim oferece as imagens mais fortes?
Andrei Grachev: As imagens da queda do Muro de Berlim são, sem dúvida, as que põem um fim na Guerra Fria. Mas tratou-se de um processo pontuado por uma série de eventos. Não é possível reduzi-lo a uma noite. O rumo à paz começou com a Perestroika. Gorbachev detalhou o programa pela primeira vez na conferência do Partido Comunista, em junho de 1988. O secretário-geral do partido renunciou, então, àquilo que por mais de 70 anos tinha sido a ambição-mor do Estado soviético e da burocracia partidária, a Nomenklatura: a construção de um mundo alternativo. Na ONU, meses depois, ele repetiu tudo que já tinha dito na conferência.

CC: A Perestroika tinha diferentes significados para diferentes líderes políticos e habitantes do bloco comunista. Gorbachev acreditava que reformaria e modernizaria a União Soviética. Por outro lado, habitantes da República Democrática Alemã viram na Perestroika o sinal verde para derrubar o muro.
AG: Líderes comunistas queriam modernizar os sistemas políticos de seus países. E os povos de nações como a Alemanha Oriental, a Hungria e a Tchecoslováquia tinham más lembranças de suas tentativas de se livrar do comunismo. Mesmo assim, muitos no bloco comunista ansiavam por reformas. Havia, claro, líderes como Erich Honecker (Alemanha Oriental), que não aprovavam a Perestroika. Egon Krenz substituiu Honecker, e Gorbachev passou a acreditar na possibilidade de reformas lá. Quando Krenz foi a Moscou conversar com Gorbachev, a Polônia já tinha realizado as primeiras eleições pluralistas no bloco comunista (4 de junho de 1989). A Hungria havia derrubado sua cerca elétrica e de arame farpado com a Áustria. Krenz queria acabar com as matanças de pessoas que tentavam pular o muro para fugir da Alemanha. Aquilo era uma barbárie, uma vergonha para as autoridades soviéticas.

CC: Gorbachev e Krenz falaram sobre a queda do muro?
AG: De forma alguma. Krenz queria facilitar o encontro de famílias separadas pelo muro. Os dois pareciam conscientes, embora não tenham verbalizado essa hipótese, de que o muro desapareceria. Cogitavam uma existência paralela entre as duas Alemanhas. Gorbachev deu sinal verde para Krenz implementar as mudanças.

CC: O significado político da queda do muro não foi rapidamente “digerido”. Parece difícil acreditar...
AG: O colapso do muro foi algo como a explosão de um edifício já em ruínas. Foi tão inesperado que as pessoas continuaram vivendo em mundos paralelos. Claro, sem aquele lamentável muro. É importante sublinhar que o muro foi erguido em 1961, não em 1945. Nem em 1949, quando os dois Estados alemães foram criados. Os berlinenses dos dois lados circulavam livremente antes de 1961. Portanto, para muitos a queda do muro significou, num primeiro momento, uma volta aos tempos anteriores a 1961. Foram necessários os acontecimentos na ex-Tchecoslováquia, Bulgária e Romênia para os alemães entenderem que o mapa político tinha realmente mudado. Ficou claro que a RDA deixara de existir, somente nas eleições de março de 1990 (na RDA e na República Federal da Alemanha), quando o partido conservador de Helmut Kohl – e não, como se esperava os social-democratas (SPD) – triunfou na Alemanha Oriental.

CC: François Mitterrand ficou inquieto com a unificação alemã, não?
AG: Mostrou-se ansioso em conversas com Gorbachev. A Alemanha reunificada viraria a nação mais poderosa da Europa. Deixaria de ser controlada pelos aliados. Poderia construir um arsenal nuclear. Portanto, Mitterrand pediu a Gorbachev para ele lidar com Kohl. Mitterrand e Margaret Thatcher chegaram até a lembrar Gorbachev de que ele ainda tinha um contingente importante na RDA. Encorajaram Gorbachev a intervir militarmente para evitar a reunificação da Alemanha.

CC: Gorbachev esperava um Plano Marshall para a União Soviética. Essa ajuda o teria mantido no cargo?
AG: Prefiro dar a versão de Gorbachev, mais valorosa que a minha. Ele jamais declarou isso publicamente, mas disse para seus conselheiros políticos, e para mim, que os americanos e o Ocidente levantaram com facilidade bilhões de dólares para lutar contra Saddam Hussein (na Guerra do Golfo). Contudo, mostraram-se incapazes de financiar um processo histórico que traria benefícios não somente para os soviéticos, mas para o mundo. Gorbachev nunca culpou o Ocidente por nada. A Perestroika não sobreviveu por motivos internos. Para o povo, as reformas políticas de Gorbachev tinham se transformado numa revolução de promessas – e a economia do país só piorava. Reformas têm seu custo financeiro. E, assim, forças conservadoras puderam agir, organizando um golpe de Estado em agosto de 1991.

CC: Conservadores como Robert Gates (atual ministro da Defesa dos EUA) afirmam que Gorbachev iniciou as reformas para s…alvar a União Soviética da falência. E Gates e outros dizem que ele foi ingênuo.
AG: Foi esse “ingênuo” Gorbachev que acabou com o comunismo e a Guerra Fria, não Reagan ou George Bush. E Bush, que acredita ter “vencido” a Guerra Fria, quis dirigir o mundo. Veja no que deu. Infelizmente para eles – e para o resto do mundo – vimos que não houve “vencedores” nem “perdedores”.

CC: Como é sua relação com Gorbachev?
AG: No início, achei que seria difícil eu, mero conselheiro político, ter uma relação fácil com o político mais importante da União Soviética. Mas, graças a ele, rapidamente me senti à vontade. Gorbachev queria saber minha opinião. Quando eu dizia algo de negativo sobre alguma ação sua, ele me ouvia com igual atenção. Em público, me chama de amigo. Seria pretensioso de minha parte lhe dizer, agora, que ele é meu amigo. Mas fico contente que ele me considere como tal.

Revista Carta Escola

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