O azul da Terra
Apenas 2,7% da água do planeta é própria para consumo. Tire daí o que está congelado nos pólos e sobra menos de 1%. Moral da história: ou cuidamos da água ou ficamos sem ela
por Afonso Capelas Júnior
“A Terra é azul”, constatou Yuri Gagarin, o primeiro e privilegiado astronauta que a avistou lá de cima. E é azul porque tem 1,5 bilhão de quilômetros cúbicos de água. Tomando apenas sua extensão de superfície, temos 70% mais água do que terra firme no planeta. O ciclo é perfeito e interminável: o Sol aquece o solo, os rios e os mares; então, o vapor sobe, agrega-se formando nuvens, daí cai em chuva, alimentando rios, lagos, represas e lençóis subterrâneos. É assim desde que o mundo é mundo, o que nos leva a pensar que água é um recurso natural abundante e inesgotável. Não é.
Apenas 2,7% desse 1,5 bilhão de quilômetros cúbicos é de água doce, própria para consumo. Mais: dessa já pequena porcentagem, grande parte está congelada nas regiões polares. Somente 0,7% está escondida no subsolo e mísero 0,007% está na forma de rios e de lagos. Se pegarmos uma garrafa com 1,5 litro de água e a dividirmos proporcionalmente, como a encontramos no planeta, a quantidade de água doce disponível seria equivalente a uma única e insignificante gota. Para complicar as coisas, esse pouco que temos está cada vez mais poluído, especialmente nos grandes aglomerados urbanos. Cerca de dez milhões de pessoas morrem todo ano por causa do consumo de água contaminada.
Há 150 anos a possibilidade de escassez era coisa de malucos. Só que, no século 20, a população mundial triplicou. Mais gente quer dizer mais fábricas, mais desperdício e, principalmente, mais irrigação nas lavouras. Resultado: o consumo de água nesse período acabou aumentando seis vezes! De acordo com o Banco Mundial, cerca de 80 países, hoje, enfrentam problemas de abastecimento. “Mais de um bilhão de pessoas não têm acesso a fontes de água de qualidade”, acrescenta Kofi Annan, secretário geral das Nações Unidas (ONU).
Nos países desenvolvidos, ocorre contaminação das águas por resíduos industriais e, principalmente, por nitratos de sódio, cálcio e potássio encontrados nos fertilizantes usados na agricultura. Esses nitratos, altamente cancerígenos, infiltram-se na terra e, com a ajuda da chuva, são carregados para rios, lagos e lençóis freáticos. Nos países menos desenvolvidos, a questão da água doce e limpa está relacionada ao desperdício, mas principalmente ao esgoto. “Cerca de dois e meio bilhões de pessoas no mundo vivem sem saneamento básico”, garante Annan, da ONU. Ou seja, pouco menos da metade dos seres humanos continua jogando seus dejetos na água – ou na terra, que, no fim, leva à água. Na Ásia, 850 bilhões de litros de esgoto são despejados nos cursos d’água anualmente. Levando em conta que cada litro de sujeira inutiliza 10 litros de água, a idéia de escassez não é, definitivamente, coisa de malucos.
No Brasil, com exceção da região Norte e parte do Centro-Oeste, onde estão as terras alagadiças do Pantanal, a situação dos recursos hídricos começa a ficar preocupante. Falta água na maioria das bacias do Nordeste, na Grande São Paulo, em regiões de Minas Gerais, Bahia e em algumas áreas do Rio Grande do Sul. “O Brasil dispõe de 16% da água doce do planeta, mas sua distribuição é muito irregular”, diz Paulo Paim, coordenador do Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas. Cerca de 68% de nossos recursos hídricos estão no Norte, onde tem menos gente. Apenas 3% estão no Nordeste e 6% no Sudeste, onde, ao contrário, sobra gente.
O que pode ser feito
Para evitar a crise da água, serão necessárias doses de bom senso e muito dinheiro. Teremos de evitar o desperdício, interromper os processos poluidores e criar novas maneiras de captação, controle e distribuição. Em alguns países desenvolvidos, a água do esgoto é tratada e depois reaproveitada. No município americano de Orange County, onde fica a Disneylândia, a população bebe água de esgoto reciclada há mais de 20 anos. O mesmo acontece no Estado do Arizona, onde 80% do esgoto vai para as torneiras. De acordo com dados do Departamento de Recursos Hídricos da Agência Nacional da Terra, o Japão reutiliza cerca de 80% de toda a água destinada à indústria. No noroeste da Índia, lençóis freáticos foram salvos com uma idéia barata – e pra lá de óbvia: poços no quintal para recolher água da chuva!
Na maioria dos países já existe consenso a respeito da cobrança pelo uso da água bruta – aquela que é captada sem tratamento, diretamente de rios, lagos ou represas. Há anos a França implantou essa política, cobrando a água bruta usada em irrigação, uso doméstico e industrial e, assim, tem minimizado seus problemas. O Japão cobra caro por toda a água tirada de seus reservatórios, tornando o reaproveitamento quase uma obrigação. Vale lembrar que na maioria dos países, inclusive no Brasil, paga-se pelo serviço de fornecimento da água, não pela água em si. Os críticos do esquema de cobrança, porém, alegam que os mais pobres são prejudicados com essa medida. Ou seja, podem até acontecer revisões nesse capítulo, mas, em países onde a falta de água potável é crítica, a cobrança está se tornando fundamental.
Em Israel, além do pagamento por toda a água consumida, estão em voga multas pesadíssimas para quem polui e desperdiça. “Buscamos um programa de manejo que permita diminuir perdas e punir o desperdício”, comenta o consultor internacional de Israel, Baruch Gornat. O país também investe em novas técnicas de irrigação – 70% da agricultura recebe água residual, ou seja, já utilizada e devidamente tratada – e em dessalinização da água do mar – um processo caro, mas que, no futuro, pode se popularizar e custar menos.
A idéia da cobrança já circula por aqui. O Fórum Nacional de Comitês de Bacias, que reuniu a população, instituições governamentais e não-governamentais, concluiu que está na hora de pensar na cobrança da água, de fiscalizar mais e punir com rigor os poluidores. Ficou estabelecido também que o dinheiro arrecadado com cobranças e multas deverá ser revertido em favor das bacias hidrográficas, focando investimentos na despoluição e na instalação de redes de esgotos. Por sua vez, a Agência Nacional da Água (ANA), criada pelo governo federal para gerenciar a quantidade e a qualidade da água, está destinando, este ano, 107 milhões de reais a empresas que implantarem e operarem estações de esgotos sanitários nas bacias.
Se, guardadas as diferenças e necessidades de cada país e região, essas medidas forem levadas adiante, em um futuro próximo poderemos ter mais água limpa e mais rios salvos da morte. Há exemplos como o do Rio Tâmisa, na Inglaterra, recuperado à custa de dinheiro e de boa vontade . E há também idéias insólitas, como a do Paquistão, que pensa em derreter as geleiras acumuladas em suas altas montanhas, entre elas as do Himalaia. “Não terminamos nosso estudo ainda, mas achamos que podemos acelerar o derretimento da neve aspergindo carbono preto”, disse, numa entrevista, o diretor geral do escritório de meteorologia do Paquistão, Qamar-Uz-Zaman Chaudhry.
No dia-a-dia, cada um de seu jeito, podemos ajudar de alguma forma. Estamos acostumados a escovar os dentes com a torneira aberta, passamos muito mais tempo do que o necessário no chuveiro e, em geral, não falamos nada quando o vizinho lava o carro e deixa a mangueira derramando na calçada. Um estudo recente da Agência Nacional da Água revela que cada brasileiro usa, todo dia, pelo menos 200 litros do – temos de convir – precioso líquido. Será que precisamos mesmo de tanto?
Tâmisa: este rio é a maior limpeza
Mark Lloyd, diretor da organização Thames21, explica como um dos rios mais poluídos do mundo ficou bom até para nadar e pescar
O Rio Tâmisa, cartão postal de Londres, já foi tão poluído que chegou a ser dado como “morto”. Hoje está de novo limpo e vivo, a ponto de se poder nadar ou pescar nele. Mark Lloyd, diretor da Thames21, dá algumas pistas de como isso foi possível.
Quando começou a despoluição do Tâmisa?
O Tâmisa já estava bem poluído em 1856, quando enormes canos de esgoto foram construídos para levar os resíduos até perto do mar. Na época, o cheiro do rio era insuportável. Houve, então, uma breve melhora, mas, por volta de 1900, piorou de novo, continuando assim até sua “morte” em 1950. Os investimentos para salvá-lo começaram em 1960, mas o salmão só voltou nos anos 70. Hoje, dá para dizer que o Tâmisa é um dos mais limpos estuários metropolitanos do mundo.
O que foi feito para resolver o problema?
Tratamento de águas pluviais e de esgotos, com endurecimento das normas impostas às indústrias poluidoras. A poluição das águas vinha de muitas fontes. Fábricas, residências, plantações, jardins, carros, depósitos de lixo e ferro-velho, aterros, poluição atmosférica, águas pluviais, deflorestamento, tudo isso ia parar no rio. Hoje não é mais assim. E existe uma empresa privada responsável pelo fornecimento de água e tratamento de esgotos, que cumpre normas estritas de qualidade. Há várias estações de tratamento e a água que sai delas é sempre testada para que se verifique se está no padrão. O governo fiscaliza, fica em cima.
Só isso basta?
Não, claro que não. A coisa mais importante, na minha opinião, é a população trabalhando junto. A poluição da água é um problema enorme, complexo e tem causas bem diferentes. Portanto, é essencial que envolva o governo, as empresas e, principalmente, a comunidade, de maneira que todos sintam que estão fazendo as coisas juntos. Porque, a rigor, o trabalho de despoluição não acaba nunca. Muitas pessoas, em Londres, acreditam que o rio ainda está poluído e continuam jogando lixo nele. Temos de remover cerca de 1 000 toneladas de porcarias do Tâmisa todo ano!
É necessário investir um bom dinheiro nisso ou apenas boas idéias e boa vontade?
Investimentos são essenciais. Quanto mais dinheiro é investido no tratamento da água, mais limpa ela vai ficar.
Hoje é possível nadar e pescar no Tâmisa?
Temos 118 espécies de peixes vivendo no estuário, incluindo cardumes de aproveitamento comercial, como o salmão. Recebemos também visitas de golfinhos, baleias e tartarugas. As pessoas algumas vezes nadam no rio, mas isso precisa ser mais estimulado.
Você tem idéias para o Rio Tietê, em São Paulo?
Conheci o Tietê no ano passado e acho que os esforços que vêm acontecendo indicam um bom começo. Mas vai exigir um monte de dinheiro e o governo terá de pôr a mão no bolso. As pessoas também precisam acreditar que alguma coisa pode ser feita, e aí talvez ela será feita.
Quanto tempo demoraria para recuperar o Tietê?
Acredito que dez ou 20 anos, que é algo maior do que os ciclos políticos. Mas ações de efeito rápido precisam ser colocadas em prática, para estimular as pessoas de que alguma coisa está sendo feita. A questão é não confundir essas ações emergenciais com ações de efeitos cosméticos, como tem sido comum. Por exemplo, as favelas às margens do Tietê precisam ter esgotos para colher a água já utilizada e esse esgoto depois deve ser tratado. Uma campanha pública para que as pessoas usem as lixeiras, assegurando que elas são recolhidas com regularidade, pode ajudar muito. Mas, veja: isso ainda é um problema em Londres!
Tietê e Pinheiros: custo nas estrelas
Para limpar os rios que agonizam na metrópole paulista, será preciso gastar os tubos e depois zelar para que ninguém saia da linha
O governo do Estado tem um programa de despoluição do Rio Tietê em curso desde 1990. Mais de mil indústrias se adequaram às novas regras e pelo menos cem implantaram estações de tratamento, reduzindo a um terço a carga de metais e outros materiais inorgânicos despejados no rio.
A segunda etapa, orçada em 400 milhões de dólares, está começando agora e deve durar quatro anos. A meta é ampliar a coleta e o tratamento de esgotos na Grande São Paulo – o cronograma de obras está bem atrasado – e incluir outras 300 indústrias no programa. Ao final, as águas do Tietê terão um ganho significativo de qualidade, mas sem resultados visíveis para a população. A terceira etapa está planejada para depois de 2005. Missão: zerar os problemas com esgotos da metrópole paulista. O custo dessa empreitada não está definido, mas deve atingir as estrelas. Será necessária uma gestão integrada dos setores ligados à habitação e meio ambiente para fiscalizar e acompanhar o crescimento e a movimentação dos núcleos urbanos e evitar o surgimento de esgotos clandestinos. Caso contrário, nada feito.
O Rio Pinheiros, além dos benefícios absorvidos da ação saneadora no Tietê – com o qual se compõe em torno da cidade de São Paulo – está sendo socorrido com o método de flotação. Em linhas gerais, mangueiras de ar comprimido são colocadas no leito do rio, promovendo a formação de bolhas. Com o uso de produtos químicos, essas bolhas acabam envolvendo a sujeira pesada e o lodo, fazendo-os subir até a superfície. Finalmente, os dejetos podem ser retirados com razoável facilidade (leia mais na reportagem sobre o Rio de Janeiro. Após a separação do que é orgânico e do que não é, será possível submeter o resultado da peneiragem a usinas de compostagem, que geram adubo, ou aproveitá-lo como insumo em usinas de biomassa, que queimam o material produzindo calor e, daí, energia.
Esgotos demais no Capibaribe e no Beberibe
Os rios de Recife e Olinda recebem mais esgotos domésticos do que industriais
Recife e Olinda, que partilham do bom e do mal dos rios Capibaribe e Beberibe, não têm mais do que 25% de seus esgotos saneados com redes coletoras. Pior: nas áreas onde existem, elas não funcionam satisfatoriamente. O esgoto doméstico é quatro vezes maior que o industrial.
O Rio Beberibe nasce em Camaragibe, interior de Pernambuco, e atravessa Olinda e Recife, marcando a divisa entre as duas cidades – 70% da sua bacia está comprometida. Os maiores problemas são a poluição de esgotos domésticos e o acúmulo de lixo em seu leito. Há um programa, tocado em conjunto pelas prefeituras de Olinda e Recife e pelo governo do Estado, para a implantação de mais redes de esgoto. Mas tudo está em fase de projeto, com recursos ainda em negociação com o Banco Mundial.
O Rio Capiberibe, por sua vez, nasce no Agreste e sua situação no Recife é crítica, mais uma vez por conta dos esgotos domésticos, incluindo aí os dejetos inorgânicos despejados pelos moradores das palafitas. Há iniciativas do governo, com recursos do Ministério da Saúde, para implantação de redes coletoras em vários municípios banhados pela Bacia do Capibaribe.
Ricardo Braga, biólogo e professor de ecologia da Universidade Federal de Pernambuco, acredita que, mesmo com saneamento básico em Recife e Olinda, os problemas do Capiberibe e do Beberibe não estarão totalmente solucionados, uma vez que os programas não cobrem toda a extensão das bacias. Mas as condições devem melhorar em 40%. Até lá, e apesar da sujeira, esses rios continuarão sendo utilizados para o abastecimento.
Boas chances para o Guaíba
O rio que banha Porto Alegre, Canoas e Guaíba tem chances de ficar 100% limpo em pouco tempo
O problema no Guaíba não está apenas em suas águas, mas também em sua identidade geográfica. Segundo Paulo Paim, coordenador do Fórum Nacional de Comitês de Bacias Hidrográficas, o Guaíba é um lago, um estuário – não um rio. De qualquer forma, existe um programa de gerenciamento para cuidar dele, com 12 comitês em pleno funcionamento, envolvendo Porto Alegre, Canoas e Guaíba, as três principais cidades banhadas pela bacia.
São elas também as responsáveis pela poluição, causada apenas por esgotos domésticos. A única indústria potencialmente poluidora era a Riocell, fabricante de papel e celulose, mas que já faz tratamento total de seus resíduos químicos e possui até ISO 14000 – o certificado que atesta o compromisso e a conduta das empresas em relação ao meio ambiente.
Porto Alegre, a maior das três cidades, tem alcançado grande progresso na melhoria da balneabilidade do Guaíba. A Zona Sul da capital conta com uma satisfatória rede coletora de esgotos, mas a região central, densamente povoada, ainda preocupa. Os córregos urbanos continuam funcionando como esgotos a céu aberto. O programa Pró-Guaíba, hoje, aguarda recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para iniciar licitações e regularizar o problema. Mas não há prazo estabelecido para que tudo saia do papel.
Daqui pra frente...
CENÁRIO NEGATIVO
Resíduos domésticos, industriais e agrícolas nas bacias crescendo proporcionalmente ao aumento da população e dos centros urbanos. Falta de informação gerando desperdício e mau uso dos recursos hídricos. A água será rara e valiosa, inacessível aos mais pobres.
CENÁRIO POSITIVO
Medidas reguladoras do consumo, como a cobrança da água encanada e bruta, reduzindo o consumo. Saneamento básico e usinas de tratamento consagrando-se em países menos desenvolvidos, ajudando na despoluição de bacias, rios e lagos e determinando o fim do fantasma da escassez. (junho/2001)
Revista Super Interessante
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