Como uma cidade do tamanho de João Pessoa pode se manter no centro dos assuntos mais relevantes do planeta por 4 mil anos? Para judeus, cristãos e árabes, a resposta passa tanto pela história quanto pelos mitos
Eduardo Szklarz
O grito de guerra ecoou nas pedras crispadas pelo sol naquele setembro de 1187: Alá-hu akbar! (“Deus é grande!”). Sob o comando do sultão Saladino, o exército muçulmano celebrava sucessivas conquistas na Galiléia e agora marchava rumo ao objetivo máximo: Jerusalém. A missão era recuperar a cidade santa após 88 anos de domínio dos cruzados. Saladino montou acampamento no monte das Oliveiras e avistou a enorme cruz no topo da Cúpula do Rochedo, um dos tantos santuários islâmicos profanados pelos infiéis. As tropas inimigas logo se renderam, e no dia 2 de outubro Saladino entrou triunfante na cidade murada. Ele tolerou a permanência dos cristãos, permitiu a volta dos judeus que haviam sido expulsos e purificou o solo de Jerusalém segundo os preceitos do islã.
Em julho de 2000, uma multidão se reuniu nas ruas de Gaza gritando vivas ao “novo Saladino”: um velhinho de voz trêmula e corpo arqueado. Tratava-se do palestino Yasser Arafat, que voltava da conferência de paz de Camp David, nos EUA. Lá ele havia rejeitado a proposta de divisão de Jerusalém oferecida pelo primeiro-ministro israelense Ehud Barak e pelo presidente americano Bill Clinton. Agora, fazendo o V da vitória, Arafat era glorificado nas ruas como a reencarnação do herói que tomou a cidade dos cruzados em 1187.
Histórias como essas ajudam a explicar por que Jerusalém se mantém por tanto tempo no centro do mundo. Em nenhum outro lugar o passado reverbera no presente de maneira tão profunda. Sempre escutamos que a cidade é sagrada para cristãos, judeus e muçulmanos, mas essa é apenas uma parte da história. Segundo vários pesquisadores, Jerusalém só alcançou importância global porque seu caráter sagrado vem sendo utilizado como propaganda política. Templos, batalhas e personagens (reais ou imaginários) podem ficar esquecidos durante milênios... e, de repente, ressurgir com força total para legitimar uma nova ideologia, um carro-bomba ou um míssil teleguiado.
Arafat não foi o único a evocar a simbologia de Jerusalém para atrair adeptos. Osama bin Laden, líder da Al Qaeda, e Hassan Nasrallah, chefe do Hezbollah, também usam a figura de Saladino ao pregar a jihad contra o Ocidente. O ex-premiê israelense Ariel Sharon gostava de aludir à memória dos guerreiros macabeus, símbolos da resistência judaica contra o império selêucida, em 167 a.C. O ex-presidente iraquiano Saddam Hussein se proclamou sucessor de Nabucodonosor, rei da Babilônia, que destruiu o Templo de Salomão em 586 a.C. e mandou os judeus para o exílio. O presidente americano George W. Bush seguiu a mesma receita quando usou a palavra “cruzada” para lançar a guerra contra o terrorismo.
Não é à toa que a Cidade Dourada – que hoje tem uma população aproximada de 700 mil habitantes, equivalente à de João Pessoa (PB), Campo Grande (MS) ou Santo André (SP) – tem sido a mais disputada da história. “Nos últimos 4 mil anos, houve pelo menos 118 conflitos por Jerusalém. Ela foi 2 vezes destruída, 23 vezes sitiada, 52 vezes atacada e 44 vezes capturada e recapturada, por tribos ou exércitos de impérios”, diz o historiador Eric Cline, autor de Jerusalem Besieged (“Jerusalém Sitiada”, sem tradução no Brasil). Nesta reportagem, vamos reconstruir a história da cidade para tentar entender por que o passado, o presente e o futuro da humanidade passam por ali.
Os primórdios
Na hora de defender seus direitos sobre Jerusalém, os líderes de hoje usam dois argumentos principais: seus antepassados chegaram lá primeiro e sua ligação com a cidade é a mais autêntica. E, claro, negam as versões dos outros. Os palestinos não aceitam as evidências arqueológicas do reino judaico fundado por Davi há 3 mil anos. Os israelenses acham absurda a história de que Maomé subiu ao céu a partir de lá – motivo da devoção islâmica à cidade. Há controvérsia até entre os pesquisadores, pois a fonte de muito do que se afirma sobre Jerusalém são textos sagrados, não documentos históricos.
“Para muita gente, certas histórias sobre Jerusalém não passam de mitos. Mas não devemos descartá-las por isso. A questão de Jerusalém é explosiva exatamente porque a cidade adquiriu status mitológico”, diz a historiadora britânica Karen Armstrong, autora de Jerusalém: Uma Cidade, Três Religiões. Aí é que mora o problema: se você acredita que Deus lhe deu uma terra, vai ser difícil dividi-la. “É quase impossível falar da cidade de maneira racional”, diz o jornalista americano Richard Zimler, especialista em religiões comparadas.
Afinal, quem chegou primeiro à cidade? Ninguém sabe. Cerâmicas encontradas em tumbas do monte Ofel, ao sul das atuais muralhas da Cidade Velha, sugerem que o local já era habitado em 3200 a.C. Nessa época, teriam surgido as primeiras cidades em Canaã (região que hoje englobaria Israel, Gaza, Cisjordânia e partes da Jordânia, da Síria e do Líbano). Como ficava sobre um platô de difícil acesso, distante dos portos do Mediterrâneo, Jerusalém foi durante muito tempo uma ilustre desconhecida. No século 19 a.C., porém, ela chamou a atenção dos faraós do Egito – sabemos disso graças aos Textos de Execração, em que os egípcios listavam as cidades e governantes inimigos.
Jerusalém teria se tornado um núcleo urbano um século mais tarde, quando provavelmente estava nas mãos dos cananeus. Em algum momento depois disso (não se sabe ao certo quando), a cidade foi conquistada pela tribo dos jebusitas.
No século 13 a.C, outro povo entrou em cena: os israelitas, descendentes de Abraão. Segundo a Bíblia, Abraão nasceu na Mesopotâmia e emigrou para Canaã atendendo a um chamado divino – daí ser conhecido como o primeiro hebreu (“o que vem do outro lado”). Os israelitas haviam sido escravizados no Egito. Liderados por Moisés, escaparam e viveram como nômades na península do Sinai até alcançar Canaã, que lhes havia sido prometida por Deus.
Os israelitas formaram dois reinos em Canaã: um ao norte (Israel) e outro ao sul (Judá, nome de uma das 12 tribos israelitas). Por volta do ano 1000 a.C., o rei Davi unificou os reinos e, para agradar a ambos, escolheu governar de uma cidade neutra: Jerusalém. Só faltava conquistá-la.
Assim, depois de várias tentativas, Davi tomou a fortaleza jebusita. Seu exército entrou pelo norte da cidade, mais vulnerável, já que os outros lados eram protegidos naturalmente por barrancos. “Como a topografia não mudou muito nos séculos seguintes, a mesma tática seria usada por conquistadores babilônios, gregos, romanos, cruzados, otomanos, ingleses, árabes e israelenses”, diz Eric Cline.
Segundo a tradição judaica, Davi levou para Jerusalém a Arca da Aliança, onde estavam guardadas as tábuas dos Dez Mandamentos. Seu filho, o rei Salomão, completou a empreitada construindo um templo para Javé, Deus de Israel, no topo do monte Sião. Jerusalém saía da periferia para se tornar o centro do judaísmo. Mais do que isso, ela passou a simbolizar o lugar de Deus na Terra – um único Deus, tal como dizia o patriarca Abraão.
Três mil anos se passaram, mas essas histórias continuam fundamentais para entender as disputas pela soberania de Jerusalém. Os israelenses todo ano festejam a conquista de Davi como o marco zero da fundação da cidade – embora ela já existisse muito antes. Os palestinos não fazem por menos. Em outubro de 1999, Faisal Husseini, ex-ministro da Autoridade Palestina e homem de confiança de Arafat, declarou que era descendente dos jebusitas, que chegaram a Jerusalém antes de Davi. Esse tipo de argumento também não tem base histórica, já que os palestinos modernos fazem parte do povo árabe, e os árabes chegaram a Jerusalém no século 7 depois de Cristo – e 16 depois de Davi. Porém, ele é extremamente eficiente na hora de conseguir adeptos nas ruas.
Da Babilônia a Roma
A cidade dos israelitas foi chamada Ierushalaim – hebraico para “cidade da paz”. Mas paz é o que ela menos tem visto. Com a morte de Salomão, o reino foi sacudido por conflitos internos até se tornar uma mera zona de separação entre a Mesopotâmia e o Egito. No fim do século 7 a.C., virou alvo da disputa entre egípcios e assírios. Mas quem levou a melhor foram os babilônios: em 586 a.C., o rei Nabucodonosor destruiu o templo e mandou milhares de judeus ao exílio na Babilônia.
Em 538 a.C, houve uma nova reviravolta. O rei persa Ciro derrotou os babilônios e uniu a maior parte do Oriente Médio num só Estado, que ia da Índia ao Mediterrâneo. Ele transformou Judá numa província persa (que passou a ser conhecida como Judéia) e permitiu que os israelitas voltassem a Jerusalém. Agora eles já eram chamados de judeus, mesmo que não pertencessem à tribo de Judá.
Aqueles fatos ainda repercutem. Nos anos 1980, o governo iraquiano promoveu o festival cultural De Nabucodonosor a Saddam Hussein, no qual o presidente anunciou as façanhas do rei babilônio como modelo para sua estratégia no Oriente Médio. Saddam inclusive distribuiu uma foto sua ao lado de uma réplica da carroça usada por Nabucodonosor.
Com a conquista de Jerusalém pelos persas, em 538 a.C., os judeus reconstruíram o templo e retomaram seus cultos. A vida tranqüila só chegou ao fim 200 anos depois, com a derrota dos persas para o macedônio Alexandre, o Grande, que colocou a Judéia em contato com a cultura grega. Após a sua morte, Jerusalém caiu na disputa de duas dinastias gregas rivais: os selêucidas e os ptolomeus.
Em 200 a.C., Antíoco, rei dos selêucidas, finalmente pôs os ptolomeus para correr e mudou o nome da cidade para Antioquia da Judéia. Ele desfigurou o templo e o dedicou ao deus grego Zeus. “Antíoco proibiu a prática do judaísmo. Foi a primeira perseguição religiosa da história”, diz Karen Armstrong. A reação foi arquitetada pelo sacerdote Matatias, da seita judaica dos asmoneus. Conhecidos como macabeus, os revoltosos combateram os conquistadores por 16 anos. Em 141 a.C., eles destruíram a fortaleza selêucida e instalaram um reino independente – o último Estado judeu que existiria por lá até a recriação de Israel, em 1948.
Por isso, a revolta dos macabeus teve uma profunda repercussão no mundo moderno. Ela inspirou a criação do movimento sionista, no século 19, que pregava a volta dos judeus a Sion (Jerusalém) para restaurar ali o seu lar nacional. No livro O Estado Judeu, de 1896, o líder sionista Theodor Herzl dizia: “Uma maravilhosa geração de judeus vai surgir. Os macabeus vão se erguer outra vez”.
Por ironia, o governo dos asmoneus abriu ainda mais espaço à cultura grega e enfezou outras facções judaicas, principalmente os fariseus e os essênios. A luta entre esses grupos atraiu a atenção de Roma, os EUA da época. Em 63 a.C., o general romano Pompeu tomou Jerusalém e, para variar, profanou o templo. “Seus soldados cortaram a garganta dos que estavam no altar”, escreveu o historiador Flavio Josefo, contemporâneo desses fatos, no livro Antiguidades Judaicas.
A idéia inicial dos romanos era resolver a disputa de poder na Judéia. Mas eles resolveram ficar e exercer o governo, sem perceber o lodaçal em que estavam afundando. Havia movimentos de revolta contra o invasor, disputas entre as facções judaicas, outros invasores aproveitando o pandemônio e – não menos importante – as brigas internas na sede do império (nesse ínterim, Júlio César tomou o poder de Pompeu, foi traído pelos senadores e assassinado). A Judéia vivia o caos, e o poder em Jerusalém trocava de mãos com freqüência extraordinária. Até que Herodes, filho de um líder local apoiado por setores romanos, fugiu para Roma e convenceu os senadores de que era o sujeito certo para governar a província. Em 40 a.C., obteve deles o título de “rei dos judeus” e voltou para a Judéia no ano seguinte.
No ano 37 a.C., Herodes conquistou Jerusalém. Seu governo sanguinário deixou pelo menos uma benfeitoria: a restauração do templo dos judeus, que na época já tinha 500 anos. Esse ficou conhecido como o Segundo Templo – embora, na prática, fosse o terceiro.
A revolução de Jesus
Poucos anos depois, o santuário sofreu nova ameaça. Comandada por um homem montado num jumento, uma pequena procissão desceu o monte das Oliveiras, atravessou o vale do Cedron e entrou em Jerusalém aos brados de “Salva-nos, filho de Davi!” O homem era Jesus, um profeta judeu da Galiléia. Ele rumou para o templo e usou um tipo de chicote para espantar os cambistas e vendedores de pombos.
“Jesus não protestava contra o comércio no espaço sagrado. Essa gente era essencial para as atividades de qualquer templo antigo”, diz Karen. Segundo a historiadora, o episódio poder ter sido a demonstração física de uma profecia: não iria sobrar pedra sobre pedra naquela sociedade submissa aos emissários de Roma. Qualquer que fosse sua intenção, a performance no templo foi uma clara afronta à autoridade, do tipo que não passaria impune.
Segundo a Bíblia, o procurador romano Pôncio Pilatos condenou Jesus à morte e o obrigou a carregar uma cruz pelas ruas de Jerusalém até o monte Gólgota, ou lugar da Caveira (Calvarius, em latim), onde foi crucificado. Aquele devia ser o final da história, mas logo surgiram rumores de que Jesus ressuscitara. Seus discípulos seguiram rezando no templo como judeus, mas alguns deles entraram em choque com o sistema religioso e se refugiaram em Antioquia (atual Turquia). Foi lá que receberam pela primeira vez o nome de cristãos, porque diziam em grego que seu mestre era Christos, o Ungido, o Messias.
No ano 66, a luta entre facções judaicas havia descambado para a guerra civil. Para complicar, o procurador romano Floro não teve idéia melhor que surrupiar tesouros do templo. Foi a gota d’água para uma nova revolta judaica, liderada pela seita dos zelotes. Nesse clima tenso, entrou em ação um grupo judaico ainda mais radical, o dos sicários. Seu nome vem do latim sicae, uma adaga curva que eles usavam para matar os romanos e simpatizantes.
Para reprimir os revoltosos, Roma destacou Vespasiano, seu melhor general. Ele reuniu cerca de 60 mil soldados e planejou um ataque decisivo a Jerusalém, mas precisou voltar a Roma para suceder o imperador Nero. A tarefa coube então a seu filho Tito, que sitiou a cidade em agosto do ano 70. Como em outras vezes, o templo foi palco das lutas mais sangrentas.
Resultado: a revolta foi massacrada e o templo novamente destruído. Da estrutura original sobrou só o Muro das Lamentações, um trecho da muralha externa – hoje o local mais sagrado do judaísmo. Antigo centro espiritual, Jerusalém era pouco mais que uma base longínqua do império. Os judeus expulsos iniciaram uma grande diáspora pelo mundo. Os que ficaram foram tomados por uma nova surpresa no ano 130, quando o imperador Aélio Adriano visitou a cidade e anunciou que a transformaria num centro de adoração dos deuses pagãos. Se levado a cabo, o projeto jogaria uma pá de cal na ligação judaica com Jerusalém.
Assim, entre 132 e 135, os judeus voltaram à guerrilha – e sofreram reveses ainda piores. Foram queimadas as 50 fortalezas e as 985 vilas judaicas. Centenas de milhares de judeus morreram e os outros tantos foram desterrados. Sobre as ruínas de Jerusalém, Adriano construiu a cidade romana de Aélia Capitolina e ergueu um santuário a Júpiter no local do antigo templo. Para apagar qualquer ligação dos judeus com aquela terra, os romanos mudaram o nome da Judéia para Síria Palestina, em alusão aos filisteus – povo que habitou a costa mediterrânea na Idade do Ferro e que, àquela altura, já desaparecera.
De Bizâncio ao islã
Os cristãos viveram como uma seita perseguida durante os primeiros anos da Aélia Capitolina. “Mas tudo mudou no século 4, quando o imperador Constantino se converteu ao cristianismo e o transformou na religião oficial de Roma”, diz o pesquisador americano Michael Hart. Constantino também transferiu a capital do império para Bizâncio e a chamou de Constantinopla (atual Istambul). Esse novo império seria conhecido como Bizantino.
Com a ascensão do cristianismo, o bispo Macário pediu ao imperador para demolir o templo de Vênus, construído 200 anos antes por Adriano, e expor a tumba de Cristo – que, segundo ele, estaria embaixo do santuário. “Constantino gostou da idéia. Seu império cristão precisava de símbolos e monumentos que lhe conferissem ressonância histórica”, diz Karen. “Sob o templo, achou-se um túmulo que foi logo identificado como o Santo Sepulcro.”
Anos depois, sob a supervisão da rainha Helena, mãe de Constantino, os operários também descobriram aquela que foi identificada como a pedra do Gólgota. O imperador mandou construir várias igrejas nesse novo complexo sagrado, que ganhou o nome de Nova Jerusalém. “Tão logo foi descoberto o túmulo de Jesus e construída a Basílica do Santo Sepulcro, os cristãos desenvolveram sua própria mitologia a respeito do lugar, situando-o no centro de sua espiritualidade”, diz a historiadora. Graças às novas imigrações, os cristãos passaram a ser maioria em Jerusalém. Os pontos de peregrinação também mudaram: em lugar do monte do Templo e das ruínas da cidade de Davi, as novas atrações eram o Gólgota e o Santo Sepulcro.
O cristianismo floresceu em Jerusalém até 614, quando o Exército persa chegou aos muros da cidade. Testemunha dos acontecimentos, o monge Antíoco Strategos relatou que os invasores irromperam como “javalis ferozes, rugindo e matando quem quer que avistassem, inclusive mulheres e crianças”. Segundo Strategos, 60 mil cristãos foram mortos. Os persas destruíram todas as igrejas e confiaram Jerusalém aos aliados judeus, mas por pouco tempo: em 629, o imperador Heráclito retomou a ofensiva e ocupou a cidade.
No início, Heráclito perdoou quem tinha colaborado com os persas. Porém, para apaziguar os cristãos, ele baniu novamente os judeus da cidade e depois ordenou que todos eles recebessem o batismo. De novo um soberano cristão desagradava os súditos judeus, cujo apoio seria irrecuperável 3 anos depois – quando os bizantinos enfrentariam um novo perigo mortal.
De fato, quando a Pérsia e Bizâncio estavam exaustos de lutar entre si, Jerusalém caiu na mira de uma nova potência: o islã. “Seus conquistadores partiram da Arábia e avançaram sobre o Oriente Médio, África, Europa, Índia e China ao mesmo tempo, aliando a vanguarda da ciência ao maior poderio militar da Terra”, diz o historiador Bernard Lewis, da Universidade Princeton. As tropas marchavam sob o comando dos califas, sucessores do profeta Maomé.
Quando entrou em Jerusalém, o califa Omar liderou a conquista mais pacífica até então. Os cristãos se renderam e não houve matança, queima de símbolos religiosos ou expulsão. Omar conferiu aos cristãos e aos judeus o status de minorias protegidas. Ou seja, eles poderiam seguir sua fé desde que pagassem impostos.
Como os ocupantes anteriores, os muçulmanos deixaram suas marcas na cidade. A mais impressionante é a Cúpula do Rochedo (ou Domo da Rocha), construída no monte do Templo no século 7 pelo califa Abd Al Malik. Ela atuou como divisor de águas porque alçou a cidade ao centro do islã. Muito da doutrina muçulmana vem da herança judaica, incluindo a devoção aos sítios sagrados de Jerusalém. Soma-se a isso a fé exclusivamente islâmica num episódio: a viagem que Maomé teria feito de Meca a Jerusalém sobre um animal alado – e na companhia do arcanjo Gabriel – e sua posterior ascensão ao céu desde a rocha sobre a qual seria erguido o domo. Agora chamada de Al Quds (“A Santa”), Jerusalém passou a ser a 3ª cidade mais sagrada do islã, atrás de Meca (onde Maomé nasceu) e de Medina (local da primeira comunidade islâmica).
O contra-ataque da cristandade começou em 1096, quando milhares de soldados rumaram a Jerusalém, seguidos de hordas de camponeses e peregrinos – todos motivados pela promessa papal de que a cruzada anularia seus pecados. Foi um banho de sangue. “Cabeças, mãos e pés se amontoavam nas ruas”, escreveu na época o cronista Raimundo de Aguilers, testemunha da matança. O novo líder local, Godofredo de Bulhão, fez da mesquita al-Aqsa sua residência oficial e converteu a Cúpula do Rochedo numa igreja.
Entretanto, muitos soldados voltaram para casa após a conquista, fazendo o exército cristão minguar. Os cruzados também não tinham um plano de governo definido, o que gerou disputas internas. Enquanto isso, o império islâmico se reorganizou em torno do sultão curdo Salah al-Din Yusuf Ibn Ayyub, ou Saladino. Em 1187, ele entrou em Jerusalém disposto a vingar o massacre, mas aceitou a rendição pacífica. Retirou as cruzes das mesquitas e entregou a custódia do Santo Sepulcro aos gregos ortodoxos. Com a morte de Saladino, em 1194, o império muçulmano ruiu com as lutas entre os herdeiros. Al Quds passou então para o império dos mamelucos, um povo islamizado da Ásia Central. Foi nessa época que ela começou a se parecer mais com a Jerusalém Velha de hoje, com bairros para muçulmanos, judeus, cristãos e armênios (veja os mapas na pág. 48).
Em 1453, os turcos otomanos derrubaram o Império Bizantino. Não tardou até conquistarem Jerusalém, dando início a um domínio de 4 séculos marcado pela restauração da cidade e pela boa convivência entre os moradores. Foi o sultão otomano Solimão, o Magnífico, que mandou reerguer as muralhas da cidade – as mesmas que podem ser vistas até hoje.
O presente
Os turcos dominaram Jerusalém por 400 anos, mas foi apenas no final desse período que ela assumiu as feições atuais. A antiga cidade nas colinas da Judéia se expandia além dos muros. Sua população saltou de 11 mil habitantes em 1830 para quase 22 mil em 1870 – metade deles judeus e a outra metade árabes (muçulmanos e cristãos). Em 1880, chegaram as primeiras levas de imigrantes judeus, que realizavam o refrão entoado em 1 000 anos de diáspora: “Ano que vem, em Jerusalém”.
O problema estava só começando. O Império Otomano cambaleava nas batalhas contra os exércitos europeus e enfrentava o crescente nacionalismo árabe em seu território. Em 1918, quando o Império Otomano caiu, franceses e britânicos lotearam as terras da região em fronteiras totalmente novas, que só respeitavam os seus próprios interesses. O Reino Unido, que passou a administrar a Palestina, logo percebeu o abacaxi que tinha nas mãos: judeus e árabes reivindicavam aquela terra.
Até então, Jerusalém era secundária nessa questão. Os primeiros sionistas eram laicos – fizeram o primeiro escritório da Organização Sionista na Palestina em Jaffa, perto de Tel-Aviv. Aos poucos, porém, Jerusalém passou a representar a essência do projeto nacional judaico. Entre os árabes, a luta política também assumiu caráter religioso. Muhamad Amin Al-Hussaini, o grão-mufti de Jerusalém – responsável pelos lugares santos muçulmanos –, utilizou a mitologia para incentivar o nacionalismo de seu povo. “Ele transformou o monte do Templo em símbolo da identidade palestina”, diz o historiador e ex-chanceler israelense Shlomo Ben Ami no livro Cicatrizes de Guerra, Feridas de Paz.
Não foi por acaso que o primeiro grande conflito entre judeus e árabes explodiu em 1929, ao pé do monte do Templo. A partir desse ano, a festa que comemorava a ascensão de Maomé ao céu (Al Isra) foi chamada de “Dia da Palestina”. A tensão cresceu em 1936, quando os palestinos se revoltaram contra a permissão dos ingleses à imigração judaica. À medida que a violência aumentava, com ataques de radicais de ambos os lados, a comunidade internacional cogitou a divisão da Palestina. Os ingleses propuseram isso em 1937, mas Al-Hussaini recusou a idéia.
Após um atentado com 91 mortos, perpetrado por radicais judeus em seu QG, os ingleses passaram o pepino para as Nações Unidas. Em 1947, a ONU aprovou a divisão da Palestina em dois Estados – um judeu e outro árabe –, com Jerusalém sob administração internacional. Os judeus aceitaram, mas não a Liga Árabe. Resultado: Israel declarou sua independência em 1948, ano em que eclodia a primeira das 6 guerras com os países vizinhos. No armistício de 1949, a parte oriental de Jerusalém (de maioria árabe) passou para a Jordânia. A ocidental (de maioria judaica) ficou com os israelenses.
Na Guerra dos 6 Dias, em 1967, Israel conquistou a parte oriental – e a Cidade Velha. “Retornamos ao nosso lugar mais sagrado. Nunca o deixaremos”, disse o general israelense Moshé Dayan, que redesenhou a cidade. “Muitos israelenses hoje se perguntam: esses devem ser realmente os limites da cidade?”, diz Aaron Klein, correspondente da revista Time em Jerusalém. “Existem áreas ali que são 100% palestinas. Não fosse o traçado de Moshé Dayan, elas seriam hoje parte da Autoridade Palestina.”
Se Jerusalém não vai à Palestina, a Palestina vai a Jerusalém. Quando Dayan reunificou Jerusalém, 74% dos habitantes eram judeus e 26% árabes. Como os árabes têm mais filhos e a radicalização de ambos os lados afugenta os judeus laicos, hoje há 66% de judeus e 34% de árabes.
Tem solução?
A questão atual de Jerusalém envolve dois elementos: a) a soberania sobre a cidade, reivindicada por israelenses e palestinos; e b) o status dos lugares sagrados, reclamado por judeus, cristãos e muçulmanos.
Não que identificar esses elementos facilite a coisa. “Nacionalismo e religião estão mais entrelaçados em Jerusalém do que em qualquer outro lugar”, diz Bernard Wasserstein, autor de Divided Jerusalem (“Jerusalém Dividida”, sem tradução no Brasil). A cidade é como uma boneca russa: sempre há uma boneca menor dentro dela. Ela está no coração da disputa entre palestinos e israelenses – apesar da pouca importância estratégica e econômica, Jerusalém tem um valor simbólico imensurável. Esse conflito, por sua vez, está dentro da contenda entre Israel e os países árabes ou – como alguns querem – entre o Ocidente e o islã. Essas disputas escondem bonecas menores, como a briga entre Hamas e Fatah e entre judeus laicos e religiosos. O cristianismo não fica de fora, pois Jerusalém está na origem do antagonismo entre católicos e ortodoxos.
É por isso que Jerusalém permanece no centro do mundo, enquanto cidades como Roma ficaram no passado. Desde que Davi tomou a fortaleza jebusita, a cidade foi continuamente destruída e reconstruída. Onde antes voavam lanças de bronze hoje explodem terroristas suicidas – mas as tensões continuam as mesmas.
Felizmente, as esperanças também. “As sociedades que permaneceram por mais tempo em Jerusalém foram as que permitiram algum tipo de tolerância e convivência”, diz Karen Armstrong. Essa pode ser a lição para que Jerusalém realmente seja um dia a cidade da paz.
Uma cidade em camadas
Em Jerusalém, o que é velho esconde jóias arqueológicas ainda mais antigas
JERUSALÉM HOJE
O acesso à cidade murada de Jerusalém é feito pelas antigas portas (a mais nova – chamada, veja só!, Porta Nova, foi construída em 1887). O centro é dividido em 4 setores: judeu, cristão, muçulmano e armênio. Com exceção do setor judeu – em que a população judia predomina –, os muçulmanos são maioria em todo o casco histórico.
PERÍODO OTOMANO (até o séc. 20)
Os limites da cidade histórica se mantêm desde o domínio dos otomanos. A Via Dolorosa, que aparece no mapa, representa as estações do suplício de Jesus. Não há evidência histórica de que esse tenha sido o caminho da crucifixão – é provável que o trajeto tenha sido recriado pela tradição cristã.
A CIDADE DOS CRUZADOS (sécs. 11 e 12)
Os cruzados deixaram sua marca na arquitetura de Jerusalém ao tomar a cidade no século 11. Além de transformar várias mesquitas e outras edificações muçulmanas (até o Domo da Rocha) em igrejas, eles construíram seus próprios templos – como a igreja Santa Maria Latina, que no século 19 seria tranformada em igreja luterana.
ROMANOS E BIZANTINOS
No início da era cristã, os romanos destruíram a cidade e construíram outra, batizada Aélia Capitolina. Sobre as ruínas do templo judeu, fizeram estátuas de seus imperadores, além de um santuário dedicado aos deus Júpiter. Mais tarde, os bizantinos descobriram sítios como o Santo Sepulcro e inauguraram a era das peregrinações cristãs. Eles foram sucedidos pela ocupação muçulmana.
TERRA DE DAVI E SALOMÃO (séc. 10 a.c.)
Nos primórdios do reino de Israel, esta era a área ocupada pela cidade. Davi foi o primeiro rei hebreu, e seu filho Salomão foi o responsável pela construção do Templo de Jerusalém. Mas os hebreus não foram os primeiros ocupantes do terreno: eles o tomaram dos jebusitas, que sucederam os cananeus...
O TEMPLO DE HERODES (séc. 1 a.c.)
Era assim a Jerusalém por onde andou Jesus Cristo: o rei Herodes, um judeu testa-de-ferro dos romanos, havia restaurado o templo, onde eram feitos os sacrifícios rituais judeus (após a destruição do local, eles baniram a prática). A capital da Judéia tinha um território bem maior que o delimitado pela muralha atual.
A pedra da discórdia
Um monte de terra árida, distante de portos e rotas comerciais. Falando assim, nem dá para imaginar que se trata do pedaço mais disputado do planeta: o monte do Templo. Sobre esse monte jaz uma grande rocha que é fundamental para entender as disputas por Jerusalém.
Há 2 mil anos, essa rocha ficava no Templo de Herodes, cujo único vestígio atual é o Muro das Lamentações. “Segundo a tradição judaica, essa é a rocha sobre a qual Abraão ofereceu seu filho Isaac em sacrifício a Deus e Davi depositou a Arca Sagrada”, diz o arqueólogo americano Eric Cline. Os muçulmanos, porém dizem que o filho que o patriarca ofereceu em holocausto era Ismael, de quem eles descenderiam.
O monte também é o ponto de onde Maomé teria ascendido ao céu. Sem falar que ele é sagrado para os cristãos, pois está ligado à passagem de Jesus pelo templo. Para as 3 religiões, portanto, ali é o centro do mundo.
Muitos crêem que a rocha esteve no Templo de Salomão, erguido há 3 mil anos. Na verdade, ninguém sabe o local exato do templo. Não importa: essa combinação de pedras e idéias tornou Jerusalém a cidade mais importante da história.
Hoje a segurança do monte do Templo está a cargo de Israel, enquanto a administração é feita por um conselho religioso islâmico chamado waqf. Os não-muçulmanos podem visitar o monte, mas só em grupos reduzidos, em dias restritos e sem objetos religiosos. Em setembro de 2000, o então primeiro-ministro Ariel Sharon esteve lá: isso causou a fúria dos palestinos, que usaram o episódio como pretexto para a 2ª intifada.
Atualmente, as atenções estão voltadas para um complexo subterrâneo conhecido como Estábulos de Salomão. Em 1996, os waqf transformaram o local na maior mesquita de Israel. No ano seguinte, iniciaram uma obra que retirou 12 mil toneladas de terra – o que Israel classificou como “um crime arqueológico sem precedentes”. Com tantas mexidas no subsolo, os arqueólogos temem que as peregrinações às mesquitas façam o complexo desmoronar.
O que cada grupo quer para a cidade
Governo israelense:
A posição oficial é que Jerusalém é a capital eterna e indivisível de Israel. Recentemente, porém, setores do governo afirmaram que o país estaria disposto novamente a entregar bairros de maioria árabe à Autoridade Palestina.
População israelense:
59% é contra a divisão da cidade, segundo pesquisa da Universidade de Tel-Aviv e do Centro Tami Steinmetz de Pesquisas pela Paz.
Judeus ultra-ortodoxos:
Opõem-se a qualquer concessão de partes de Jerusalém.
Autoridade Palestina:
Reivindica Jerusalém Oriental como capital do futuro Estado palestino. Isso inclui lugares sagrados como o monte do Templo. Porém, na conferência de Annapolis, realizada em dezembro passado, o líder Mahmoud Abbas se comprometeu a negociar.
Árabes de Jerusalém:
Apesar do apoio à Palestina, a maioria se opõe à divisão da cidade, pois perderia o trabalho nos bairros judaicos, além do bem-estar social garantido pela cidadania israelense. Também temem que a cidade seja governada pelo Hamas.
Hamas:
Não reconhece a existência do Estado de Israel e boicota as negociações de paz. Seu projeto é fundar um regime teocrático na Palestina, com Jerusalém como capital.
Vaticano:
Defendeu a internacionalização da cidade quando a ONU votou pela partilha da Palestina, em 1947. Ultimamente vem apoiando a internacionalização apenas dos lugares santos.
Evangélicos de Jerusalém:
São contra qualquer divisão da cidade, pois isso contraria a promessa bíblica da Terra Santa ao povo judeu.
Para saber mais
Jerusalém: Uma Cidade, Três Religiões
Karen Armstrong, Companhia das Letras, 2000.
Jerusalem Besieged
Eric Cline, University of Michigan Press, 2005.
Divided Jerusalem
Bernard Wasserstein, Yale University Press, 2002.
Revista Super Interessante
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