De lugar para refúgio de escravos fugitivos a movimento social. Qual a realidade hoje das comunidades rurais negras?
por Cathia Abreu
por Cathia Abreu
Quilombolas no lançamento da Agenda Social Quilombola e do Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial, no Palácio do Planalto em Brasília
Conceituá-lo não é tarefa fácil, e difícil também é dissociá-lo da brasilidade. Sua história se confunde com a formação do próprio país. Kilombo, Ochilombo, Quilombo. A raiz é africana e o nome remete a lugares que abrigavam aqueles que discordavam do sistema político no Brasil Colônia. Era para esses lugares - verdadeiros esconderijos na mata fechada, de difícil acesso, caminhos pelos quais poucos sabiam andar, também conhecidos por mocambos - que os escravos se refugiavam. Mas a caminhada levava a um reino idealizado, o Quilombo, lar dos homens com anseios de liberdade!
No Brasil escravista, os quilombos ganharam sentido de comunidade autônoma, e escondiam fugitivos, tomando dimensões que colocavam em risco a economia do país, sustentada pelo trabalho escravo. Localizados em torno das grandes concentrações urbanas; nesses refúgios, existia trabalho, moradia e meios para viver e idealizar a liberdade. No maior deles, o Quilombo dos Palmares, na região da Serra da Barriga, em Alagoas, a comunidade tentava reproduzir a tradição africana e a organização social da África mãe, com suas lideranças: reis, rainhas e príncipes.
Zumbi é símbolo da causa pela democracia racial, motivo pelo qual é lembrado em 20 de novembro, data de sua morte, e Dia da Consciência Negra no Brasil
Zumbi, diz a história, foi da realeza de Palmares, nasceu no Quilombo. Depois, foi seqüestrado, viveu na cidade, mas voltou a suas raízes e se tornou líder da causa pela liberdade. Hoje, ele é símbolo da luta pela democracia racial, motivo pelo qual é lembrado no dia 20 de novembro, dia de sua morte, data que também simboliza o Dia da Consciência Negra no Brasil (veja quadro Consciência Negra).
O Quilombo dos Palmares do tempo colonial pereceu no início do século XVIII, mas renasceu mais tarde como União dos Palmares, cidade histórica, criada no final do século XIX. A região guarda a história de luta do lugar. A Serra da Barriga, no entanto, palco dos acontecimentos protagonizados por quilombolas, permaneceu adormecida por algum tempo, mas sua história foi perpetuada, pois o lugar foi tombado como patrimônio e reconhecido como Monumento Nacional. No ano de 2007, União de Palmares ganha novo fôlego, com o nascimento do Parque Memorial Quilombo dos Palmares, que imortaliza o local como símbolo da luta pela liberdade e referência de uma História de resistência, de organização social e política.
ORGANIZAÇÃO social que hoje se difunde pelos milhares de quilombos espalhados pelo Brasil, que preservam sua cultura, seus fazeres e lutam por direitos. Direitos esses que foram assegurados pelo Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, por exemplo, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. O artigo 2° da resolução considera "remanescentes das comunidades dos quilombos, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida".
Os quilombos, hoje, são conhecidos não só por abrigarem histórias.
Com suas várias designações: mocambos, terra de preto, comunidades negras rurais, comunidades de terreiro, entre outras expressões que, para os leigos, generalizam esses grupos sociais, descendentes dos primeiros africanos no Brasil, os "remanescentes", os "quilombolas" resistem e afirmam-se, quando propõem um novo modelo de sociedade. Com essa bandeira, manifestam- se e reafirmam sua cultura, lutam por seus direitos. Eles continuam cultivando a terra de seus ancestrais e, de um jeito próprio, preparam o futuro de seus descendentes.
Quilombo significa um processo de trabalho autônomo das comunidades negras,
livre da submissão dos grandes proprietários
Porém, para alguns especialistas, o conceito de quilombo não pode ser apenas territorial, circunscrito a uma região específica. Quilombo significa um processo de trabalho autônomo das comunidades negras, livre da submissão dos grandes proprietários.
Desde 1988, com a Constituição, criou-se uma série de novas ações que atingem a questão da preservação do patrimônio cultural, como a que atua na conservação da memória de um dos "grupos formadores" de nossa nacionalidade - a população afro-descendente -, o que se daria por meio da valorização e proteção da história das comunidades que resistiram à opressão da escravidão.
Para Leandro Rosa, Assessor de Cultura para Gêneros e Etnias da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, existe uma relação dos quilombos enquanto fenômeno histórico e também enquanto um verdadeiro movimento social, que esteve presente na história brasileira com a chegada do primeiro escravizado. Foi o que defendeu em sua tese de mestrado em Sociologia: Os quilombos do Vale do Ribeira e o Movimento Social: O Movimento dos Ameaçados por Barragens do Vale do Ribeira (MOAB), em 2007, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras de Universidade Estadual Paulista, a UNESP.
O SOCIÓLOGO fez uma pequena contextualização do que vem a ser quilombo na historiografia. Com isso, constatou que, fora o exemplo do Quilombo dos Palmares, que é o maior, tanto com relação ao tamanho quanto em heterogeneidade da população e o mais documentado devido a sua longa duração, a grande maioria dos fenômenos quilombolas foram menores, heterogêneos, e apresentavam quase sempre uma relação muito próxima com os centros onde se localizavam. "Pude constatar que a idéia de quilombo estava muito estereotipada, vi que não são acontecimentos estáticos, isolados, formados apenas por fugas. Apresentaram ao longo da história uma dinâmica muito próxima dos movimentos sociais que temos hoje, tinham um protagonismo muito presente. Sua continuidade no que chamamos hoje de "remanescentes" de quilombo acaba por mostrar essa dinâmica e dizer: 'ainda somos centros de resistência e ainda interagimos com a sociedade que nos cerca'", conta ele.
Segundo Leandro Rosa, a Constituição de 1988 cita os remanescentes e mais: faz com que as terras destes possam passar por titulação.
No caso do Vale do Ribeira, objeto de sua tese, como em outros lugares, essa proteção da terra acaba por aglutinar outras bandeiras como a da luta contra as barragens, ou seja, a partir da Constituição, passa a ser um movimento social de fato.
A CRIAÇÃO DO Movimento dos Ameaçados por Barragens do Vale do Ribeira, o MOAB - que é uma central de movimentos sociais capitaneada pela Igreja Católica, mas que tem nos quilombos da região sua força - apresenta grande importância na compreensão das comunidades quilombolas como organização social. "O MOAB passa a ajudar na organização política das comunidades quilombolas e aglutinar bandeiras, discutindo questões como etnicidade, gênero, titulação das terras, saneamento, meio-ambiente, entre outras. No meu contato com as comunidades, pude perceber e desmontar muitas idéias pré-conceituais de quem mora fora dos quilombos. Ver que ali, para além de um foco de resistência histórica, temos pessoas, homens, mulheres e crianças, uma comunidade que faz parte da nossa dinâmica social. Não estão "tribalizados", são consumidores de direitos e deveres e estão muito mais perto do que imaginamos", confirma o sociólogo Leandro Rosa.
Por meio desse entendimento, essas comunidades saem do ponto de vista de grupos passivos, isolados, formados somente para preservar a tradição de seus antepassados, e passam a ser atores principais de sua história, com organização social e política, de defesa e de solidariedade, que se desdobram na criação de ações públicas em benefício dos quilombos. Ações como a criação de entidades governamentais, a exemplo da Fundação Cultural Palmares (FCP), uma instituição pública, vinculada ao Ministério da Cultura, do Governo Federal. A instituição possui, entre seus atributos, a promoção e preservação dos valores culturais, sociais e econômicos da influência negra na formação da sociedade brasileira. Com essas atribuições, formula e implanta políticas públicas que têm como objetivo potencializar a participação da população negra brasileira no processo de desenvolvimento, a partir de sua história e cultura. O reconhecimento de algumas comunidades remanescentes de quilombos está no quadro de suas iniciativas. Hoje, mais de 1700 comunidades foram certificadas pela FCP. Com isso, a terra foi assegurada para essas comunidades, que também podem solicitar ações e serviços do Governo Federal, como a implantação de medidas em educação e saúde.
COM DIREITOS assegurados, os "quilombos" hoje são notados porque persistem com uma nova proposta de organização social. É o que pensa o sociólogo Dagoberto José Fonseca, do Departamento de Antropologia, Política e Filosofia da Faculdade de Ciências e Letras, da UNESP, localizada em Araraquara, São Paulo, onde coordena o Centro de Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN). À frente também do Laboratório de Estudos Africanos, Afro- Brasileiros e da Diversidade (LEAD), do alto de sua experiência no assunto, para ele, os quilombos surgem como uma proposta alternativa notável no sistema, relevante desde o período colonial até hoje. Com uma proposta de outra sociedade - em que a terra possa ser de todos e que possa se estabelecer enquanto bem e valor comunitário, essas organizações sociais trazem a noção de subsistência segundo a qual o grupo produz excedentes que não firam a Terra. "Hoje, os quilombos são ainda comunidades símbolo de resistência, mas também se revelam enquanto dado da tradição. O quilombo não estabeleceu a ruptura com a África. Em relação à nossa sociedade, ele apareceu como resistência cultural - para a população da cidade enquanto espaço político. Para o negro urbano, o quilombo é um lugar de tradição. Mas é muito mais, é um espaço político e não só exótico", explica o sociólogo.
As comunidades remanescentes saem do ponto de vista de grupos passivos
formados somente para preservar seus antepassados
Já quando o assunto é exclusão social, Dagoberto José Fonseca traz à tona a história da formação dos quilombos, como Palmares, e revela que desde a sua formação já existiam negros, brancos e índios vivendo nesses refúgios, e diz que a constituição dessas comunidades, de certa forma, tem ligação com a segregação. "Tem sim uma relação discriminatória da época em que foram formados, como refúgio, com outra proposta que não aquela escravista. No presente, porém, ainda há discriminação em relação aos quilombos. Em alguns lugares ainda não existe, por exemplo, a presença contumaz do Estado, alguns quilombos continuam isolados. Se antes foi uma estratégia de fuga, as leis de 1988 resgataram o processo africano; e os negros trouxeram uma nova proposta de sociedade que inclui elementos outros, índios e brancos", afirma.
Portanto, para Dagoberto José Fonseca, a causa do negro no Brasil não é um projeto isolado, mas hegemônico de sociedade, que diz respeito a uma grande parcela da população, cerca de 90 milhões de brasileiros.
A PROPOSTA quilombola é, no entanto, a de uma democracia racial, feita a partir da luta de todos os interessados em uma sociedade igualitária. Ampliar o foco do que seja possível fazer e estabelecer outras bases para aliar ações afirmativas pode ser um dos caminhos a seguir para atingir objetivos nesse sentido. "Andamos ainda de maneira incipiente, no entanto, é necessário avançar para trazer novas ações, investimentos sociais e políticas de qualidade para todos", diz o sociólogo. E o que hoje se faz para mudar esse quadro? A Agenda Social Quilombola é uma das estratégias criadas pelo Governo Federal, coordenada por sua Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Desenvolvida em parceria com governos estaduais e municipais, a iniciativa privada e a sociedade civil, para superar as desigualdades raciais e sociais no país, ela traz uma série de projetos e ações voltadas para as comunidades quilombolas, que estão em pauta para serem desenvolvidas no período de 2008 a 2010. O projeto pretende atingir 22 estados, 330 municípios e 128 territórios rurais, e beneficiar cerca de 50% da população de comunidades quilombolas.
ESTRUTURADA em quatro eixos, a Agenda Quilombola tende a viabilizar: o acesso à terra, a saúde, a educação, a construção de moradias, entre outras necessidades. A meta é atingir as comunidades quilombolas espalhadas por várias regiões do Brasil e melhorar a vida de milhões de brasileiros que vivem nessas organizações sociais. Um dos eixos - talvez o mais expressivo - é o que diz respeito à educação, pois um projeto de divulgação de conteúdos relacionados à história, à cultura africana e afro-brasileira, como determina a Lei 10.639/03, deve ser posto em prática nessas comunidades. Para isso, milhares de professores da rede pública do ensino fundamental serão preparados para lecionarem nessas regiões.
No caminho contra a segregação racial, desde 1998, tramita no Congresso Nacional o Estatuto da Igualdade Racial, do Senador Paulo Paim. Um projeto de lei que estabelece critérios para o combate à discriminação racial de cidadãos afro-brasileiros e aborda o acesso à Justiça, a criação de ouvidorias, o funcionamento dos meios de comunicação, do sistema de cotas raciais, dos mercados de trabalho, dos direitos da mulher afro-brasileira, de incentivos financeiros, religião, cultura, esporte e lazer, além dos diretos dos quilombolas. Uma proposta que causa polêmica e vem merecendo a atenção de vários segmentos da sociedade, que ainda aguarda aprovação. As comunidades negras rurais, conhecidas pelo senso comum por "quilombos", assumem um novo significado e têm muitos olhares atentos em sua direção, uma mira que foi aguçada pela Constituição de 1988, e fundamentada pela organização de movimentos sociais, de entidades governamentais e civis. Assim, as organizações sociais que resultam da compra das terras por negros libertos, da posse pacífica de terras abandonadas adotadas por exescravos ou por outras situações que indiquem a ocupação e garantam as terras para suas futuras gerações, mostram- se com seu caráter sociológico. São milhares espalhadas por todo o Brasil, comunidades que lutam pela garantia social, econômica e cultural. Por sua identidade e brasilidade.
Revista Sociologia
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