sábado, 16 de maio de 2009

Lembranças do Líbano

A guerra do Líbano chamou a atenção sobre este país que tenta sobreviver em meio a crises políticas antigas e recentes no conturbado Oriente Médio

Texto: Stepan Norair Chahinian

A população libanesa é constituída de cristãos e muçulmanos. Entre os cristãos, a maior comunidade é de maronitas (ramo do catolicismo), mas há também gregos ortodoxos, gregos católicos e armênios. Entre os muçulmanos, existem sunitas, xiitas e uma pequena comunidade drusa. Há ainda um número reduzido de judeus. O arquiteto brasileiro Stepan Norair Chahinian conta a seguir a história do país que se confunde com a de sua família

Beirute, a capital: vista da montanha onde se encontra a estátua de Notre Dame du Liban


Minha relação com o Líbano começou antes de eu nascer. Sou descendente de imigrantes armênios, que, em razão do genocídio cometido pelos turcos em 1915, abandonaram suas terras em caravanas pelos desertos do Oriente Médio em busca de um lugar que os acolhessem. Na minha infância, costumava ouvir contar com muita gratidão as histórias do Líbano e da Síria – dois países que acolheram meus avós e milhares de famílias armênias que perambulavam pela região. Embora tenha nascido no Brasil, laços familiares me levaram ao Líbano há dois anos para visitar o irmão mais velho de minha avó paterna. Hrant Der Bedrossian, hoje com 82 anos, nasceu em Alepo, na Síria, e se mudou para Beirute.

Hrant viu vários Líbanos. Talvez, o melhor e mais harmonioso tenha sido aquele dos fins dos anos 50, quando estabeleceu sua residência em Beirute, então um paraíso no Mediterrâneo. A capital libanesa era referência de glamour, férias, praias lindas e construções imponentes, de uma arquitetura com personalidade e ponto de encontro de artistas e empresários vindos do mundo todo. O país orgulhava-se de sua herança histórica, que remonta há 2 mil anos, quando abrigou a civilização fenícia. Até hoje, o Líbano mantém monumentos de grande valor arqueológico construídos pelos povos que lá viveram. Um dos mais importantes é Baalbek, onde estão as maiores colunas romanas conhecidas e um templo encantador dedicado ao deus Baco, localizado no vale do Beka, no sul do país.

Hrant fez carreira em uma multinacional alemã, teve uma vida confortável e usufruiu da paz e das belezas do país que o acolheu. Entre 1971 e 1974, veio diversas vezes ao Brasil, pois a parte de cá da família insistia para que ele se mudasse para São Paulo. Mas Hrant adorava Beirute, assim como muitos imigrantes. Voltou para lá em 1974 e nunca mais saiu do país que adotara. A guerra civil do Líbano explodiu no ano seguinte.

Triste ironia: país que acolhera tantos povos diferentes, o Líbano acabou sendo uma vítima de sua diversidade étnica e religiosa. Na época, mais de 300 mil refugiados palestinos das guerras contra Israel se concentraram em seu território. Foi o bastante para romper a aparente harmonia entre os diversos povos e religiões locais. Em abril de 1975, a guerra civil opôs uma coalizão muçulmana, aliada dos palestinos, aos grupos maronitas cristãos com apoio de Israel. Foram quinze anos de conflito que deixaram o Líbano em ruínas.

Terminada a guerra, Beirute era a imagem do caos e da intolerância entre os vizinhos. A cidade mantém até hoje a divisão por bairros, conforme a religião e o grau de fanatismo de seus adeptos. Muçulmanos xiitas, sunitas, cristão maronitas, católicos, ortodoxos cultuam a desconfiança mútua. Hrant sobreviveu. Por sorte, o bairro em que morava não era um alvo prioritário para as diversas milícias armadas, cristãs e muçulmanas. Mas lembro do sofrimento da minha família. Era difícil conseguir notícias dele. As comunicações eram péssimas.

Em 1994, o então primeiro-ministro, Rafik Hariri, tornou-se o homem da grande reconstrução. Para isso, reuniu investimentos maciços com o apoio de capital estrangeiro e de grandes empresários árabes. O porto e o aeroporto de Beirute, escolas, hospitais e estradas, tudo começou a ser refeito. Uma década depois, o Líbano havia retornado a sua tradição de destino turístico, com exceção de algumas regiões do sul que serviam de base para grupos terroristas como o Hezbollah, que continuava a combater o Exército israelense com respaldo sírio.

Foi em 2004 que decidi conhecer a região que povoava as histórias de família que ouvia desde criança. Conheci Beirute, cujo centro histórico havia sido totalmente reconstruído – um pouco como cenário de Hollywood é verdade. Mas o país respirava paz, as pessoas circulavam tranqüilamente nas ruas. Os grupos religiosos e etnias ainda se dividiam em bairros diferentes, o que não impedia o trânsito entre as igrejas, mesquitas, cafés e restaurantes. Havia até uma certa euforia. Edifícios de aço e vidro conviviam com construções antigas, do tempo em que a região era protetorado francês. Da Place d’Étoile, no centro da cidade, saíam avenidas com lojas de grife. Agências de viagem anunciavam as belezas de Baalbek, Biblos, Trípoli e outras cidades que guardavam a rica memória dos antigos fenícios, gregos, persas e romanos.

Explosão em Maarjyou



Em fevereiro de 2005, uma tragédia deu um fim a esse tempo de paz. Hariri, polêmico como todo líder que ousa reconstruir um país, foi acusado por adversários de representar interesses estrangeiros, e foi morto em atentado nas ruas de Beirute. No mesmo lugar em que, meses antes, eu havia passeado com meu tio Hrant que me contava histórias da sangrenta guerra civil.

O atentado, atribuído aos sírios, foi o estopim de um novo estado de tensão. Manifestações arrastaram multidões às ruas, terroristas tiraram proveito da instabilidade para piorar o quadro político. O eterno conflito entre palestinos e israelenses assumiu novas proporções com repercussões no sul do Líbano, dominado pelo Hezbollah. Em 12 de julho, o Exército israelense atravessou a fronteira entre os dois territórios.


Foram 33 dias de guerra (um cessar-fogo foi estabelecido em 14 de agosto), que acompanhei pela televisão e internet. Novamente, ligávamos para Hrant em Beirute – muitas vezes sem conseguir linha – para ouvir notícias de bombas que explodiam perto de seu prédio. Ele dizia que não podia sair de casa, havia luz apenas algumas horas do dia, as pessoas faziam estoque de alimentos e remédios. As escolas haviam suspendido as aulas – Elisa, minha prima de 18 anos, não pôde completar o semestre da faculdade. Restaurantes, lojas, hotéis estavam fechados. O medo, desta vez, era mais intenso, pois o poder de destruição das armas de Israel era maior do que nos tempos da guerra civil.

O grosso dos ataques ocorria no vale do Beka e no sul do país, onde se concentrava a milícia do Hezbollah, mas os israelenses bombardearam os bairros muçulmanos de Beirute. Acabaram com pontes, estradas e a infra-estrutura que havia sido reconstruída com tanto esforço. O porto ficou sitiado e o aeroporto arrasado. A capital libanesa mais uma vez foi destruída.

Hrant sobreviveu a mais essa guerra, assim como milhares de cidadãos libaneses – muitos com famílias no Brasil. Apesar do cessar-fogo, não se sabe o que reserva o futuro do país. Mas a história do Líbano é bem maior, na verdade se confunde com a história da humanidade. A esperança é que, novamente, o país encontre uma saída. Se já enfrentou o domínio e as disputas de fenícios, hititas, romanos, gregos, persas, europeus e turcos, supõe-se que esta seja uma região fadada a sobreviver aos desatinos dos seres humanos nessa complicada e explosiva mistura de interesses étnicos, religiosos, políticos e econômicos do Oriente Médio e do mundo.


Natureza, vítima do conflito


Efeitos da guerra têm longo alcance: derramamento de óleo deve prejudicar o ambiente e a vida marinha no Mediterrâneo

Mais de 15 mil toneladas de combustível foram derramados no mar Mediterrâneo em 14 de julho de 2006, quando aviões israelenses atingiram a usina elétrica de Jiyeh, a 20 quilômetros de Beirute. Novos mísseis atingiram o local no dia seguinte. Seis tanques de combustível foram destruídos, gerando explosões que derrubaram o dique construído para conter vazamentos. O óleo contaminou até 30 quilômetros do litoral libanês e afetou praias e portos, atingindo também a Síria. Segundo a ONU, a limpeza do vazamento poderá durar até um ano e custar US$ 64 milhões. Esse foi mais um resultado da guerra, que matou 1.200 pessoas (a maioria civis libaneses) e destruiu cidades inteiras. “O fundo do mar está cheio de combustível – entre as rochas e os vales”, disse Mohammed El Sarji, chefe dos mergulhadores libaneses que gravaram imagens da mancha de óleo. “Tudo está coberto de piche.” Segundo grupos ambientalistas, o vazamento deve prejudicar espécies como atum e tartarugas que vivem na região.

Revista Horizonte Geográfico

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