segunda-feira, 4 de maio de 2009

A Irlanda vai manter a paz


30/04/2009
Gianni Carta

O ex-primeiro-ministro da Irlanda do Norte e Nobel da Paz de 1998 William David Trimble acredita que seu país já pode se considerar pacificado. Com isto, não quer dizer que a paz seja uma obrigatoriedade entre as facções que dividem o poder na Irlanda do Norte. No mês de março, um atentado deixou mortos dois soldados britânicos e um policial. Lorde Trimble, que aderiu ao Partido Conservador em 2006, acredita, contudo, que a ocorrência não renderá frutos políticos aos pequenos grupos responsáveis por ela. A sociedade, como ele a vê, rejeitou a violência.

Lorde Trimble integra o II Fórum Internacional de Comunicação e Sustentabilidade a ser realizado entre 6 e 7 de maio em São Paulo no Palácio das Convenções no Anhembi, em São Paulo. Ao evento apoiado por CartaCapital comparecerá, entre outros expoentes, o Nobel de Economia de 2006, Edmund Phelps.

Ele falará no dia 7 durante a mesa-redonda intitulada Democracia, Não Violência e Paz. O encontro quer promover a troca de informações entre governo, instituições privadas e sociedade sobre o papel educativo da comunicação para a compreensão do conceito de sustentabilidade. O evento é gratuito para professores e estudantes cadastrados no site www.comunicacaoesustentabilidade.com.

CartaCapital: Os assassinatos de dois soldados britânicos e um policial, perpetrados em março por grupos republicanos, alterará a maneira como o senhor apresentará o processo de paz na Irlanda do Norte no fórum de São Paulo?
William David Trimble: Não mudarei minha apresentação, porque apenas pequenos grupos de dissidentes republicanos e unionistas são contrários ao acordo de paz assinado em 1998. Os eventos de março ocorreram porque alguns ativistas do Exército Republicano Irlandês (IRA) voltaram à luta armada. Não há, contudo, apoio decrescente ao processo de paz no seio do movimento republicano. A classe política norte-irlandesa reagiu de maneira firme contra essas mortes, e a polícia indiciou um número significativo de suspeitos por elas. A autoria das mortes deve ser estabelecida.

CC: Em que regiões do mundo o modelo do processo de paz na Irlanda do Norte poderia ser aplicado?
WDT: Reluto bastante em apontar na experiência irlandesa um modelo. Critico, na verdade, quem a vê como um. O processo de paz ocorrido na Irlanda do Norte, do qual me orgulho, talvez suscite sugestões para outras localidades, mas fazer esta adaptação pura e simplesmente em uma outra região é algo temerário. Em qualquer parte onde haja conflitos semelhantes ao da Irlanda do Norte é preciso priorizar circunstâncias da comunidade e da sociedade afetadas.
Quando um acordo se delineava para a Irlanda do Norte em 1996, participei de conferências na África do Sul. Queria entender como o país lidava com divergências políticas antes de chegar à mesa de negociações. Na Irlanda do Norte, utilizamos apenas um conceito sul-africano, o sufficient consensus (consenso suficiente), um mecanismo importante em nosso processo de paz. Mas é freqüente que aquilo que não funciona em uma região seja a melhor lição para o contexto no qual você opera.

CC: Aparentemente, as palavras-chave na sua apresentação em São Paulo serão “educação’’ e “comunicação’’.
WDT: Comunicação é de extrema importância. Qualquer processo precisa se basear em consentimento popular. O povo tem de acreditar em seu projeto. É preciso abrir o diálogo e evitar surpresas. Devem-se tirar do caminho contextos nos quais as pessoas se sintam enganadas. Houve tentativas de processos de paz na Irlanda do Norte anos atrás nos quais líderes políticos usaram subterfúgios para satisfazer suas ambições. Ou seja, não explicaram a seus seguidores o que acontecia. Esses processos de paz não engrenaram.

CC: Como o senhor abordará o tema educação em zonas de conflito?
WDT: Ao comunicar algo, educa-se. Tardamos em parte a obter uma resolução porque o povo não estava em sintonia com as realidades da Irlanda do Norte. Durante muito tempo, importantes segmentos dos dois lados (unionistas, que pregam a adesão ao Reino Unido, e nacionalistas) acreditavam em se sobrepor ao oponente. Ninguém admitia qualquer forma de acomodação. Acomodação significa compromisso. Cada lado precisa reconhecer a existência do outro e entender seus interesses como legítimos.

CC: Que problemas a Irlanda do Norte enfrenta para adotar um sistema educacional misto?
WDT: O governo tentou encorajar um sistema misto de educação, mas um sistema integrado não pode ser imposto. As pessoas têm o direito de escolher como escolarizar seus filhos. Contudo, solicitamos que todas as escolas, incluindo as segregadas, adotassem o Programme for Education for Mutual Understanding. Este programa educa difererentes comunidades a compreender o outro. A despeito da considerável segregação nas escolas e nas cidades da Irlanda do Norte, existe um nível significativo de integração na vida social. Refiro-me às áreas de entretenimento e trabalho.

O sistema universitário é integrado. O mercado de trabalho também. Claro, há áreas segregadas, mas esta não é a regra. Uma vez terminado o curso secundário, há integração entre as duas comunidades norte-irlandesas. Não se deve criar uma situação em que pessoas sintam sua identidade de grupo desafiada. Se desejamos eliminar a sociedade segregada, é fundamental haver consenso. Nos próximos anos teremos avanços consideráveis na integração comunitária. O acordo de 1998 cria uma estrutura política para que as comunidades cooperem entre si. Isto diminui as tensões e repercute positivamente em vários aspectos da vida social.

CC: Segregação ainda é um tema constante na mídia britânica.
WDT: Normalmente a mídia se apropria de duas estatísticas e não as coloca no contexto. A imprensa acha que algo precisa ser feito já e crê em uma cura rápida. Mas não há curas rápidas. Elas são lentas. O motivo? As pessoas têm de se sentir confortáveis durante as mudanças.

CC: O sr. crê que a mídia cobre corretamente os eventos na Irlanda do Norte?
WDT: Comecemos com a mídia na Irlanda do Norte. Ela tem a maior responsabilidade de todas. E faz o possível para que suas reportagens não exacerbem situações. Isto pode acontecer, às vezes. Jornalistas buscam, como em qualquer parte do mundo, manchetes. Mas há um senso de responsabilidade. Minha crítica é que eles têm uma agenda pouco ampla ao delinear eventos na Irlanda do Norte. E essa agenda é limitada devido àquilo que a imprensa reconhece como importante a ser noticiado. O que os jornalistas tendem a focar são os anos de violência e os processos de paz imperfeitos. Fora da Irlanda do Norte, a cobertura da mídia depende, e isso é compreensível, dos eventos. Não a critico por isso. Eu sempre digo: estou à espera do dia em que as notícias oriundas da Irlanda do Norte se tornem um tédio (risos).

CC: Terroristas não precisam do apoio popular para atacar. Como avaliar o perigo do punhado de dissidentes que pode ameaçar o processo de paz?
WDT: É verdade que um grupelho pode representar um grande problema. Contudo, para sustentar uma campanha, é preciso de algum tipo de apoio popular. Sem esse apoio eles não podem manter sua campanha. Em agosto de 1998, a tragédia de Omagh resultou em 29 mortos, mas os dissidentes não conseguiram levar adiante sua campanha. Tentaram isso, mas foi em vão.

Nos últimos anos, o ingresso de republicanos na polícia revelou-se algo desejável e crucial para o processo de paz. A polícia não pode contar apenas com unionistas, tem de incluir republicanos. Houve tentativas de assassinar policiais católicos para embaraçar a nova liderança republicana. Mataram efetivos em março, mas não embaraçaram a liderança republicana. O fato de haver republicanos na polícia outrora protestante e o apoio à presença deles na corporação é positivo. Igualmente positivo é o fato de líderes republicanos terem se manifestado contra os ataques de dissidentes. Suspeitos de grupos dissidentes republicanos agora estão sendo inspecionados pela polícia, outro dado positivo.

CC: Esta seria uma pergunta para o vice-premiê Martin McGuinness. Mas como o senhor o conhece bem, não acha delicada sua posição, como ex-membro do IRA, de pedir aos republicanos para transmitir informações sobre pessoas envolvidas nos recentes atentados? WDT: Recentemente, a polícia lhe disse que republicanos dissidentes são uma ameaça para ele. Isto era esperado. Para que o processo de paz desse certo, ele e seus colegas tiveram de apoiar mudanças na polícia. Tiveram de aceitar mais republicanos na instituição, com o objetivo de refletir fielmente a sociedade norte-irlandesa. McGuinness chamou de “traidores dos irlandeses” os assassinos de março. Ele pode usar essa linguagem porque o acordo de 1998 foi aprovado em referendos na Irlanda do Norte. Ou seja, a Constituição e o povo apoiam o discurso contra a violência de Martin McGuinness.

CC: Gerry Adams, líder do Sinn Fein, braço político do IRA, e McGuinness são favoráveis a uma ilha irlandesa unida por meios democráticos. O senhor discorda dessa posição. Como membro do Partido Conservador da Câmara dos Lordes, terá mais poderes para lidar com o tema do que teria como líder do UUP (Ulster Unionist Party, o partido unionista da Irlanda do Norte), cargo ao qual renunciou em 1995?
WDT: Os procedimentos mudaram. Agora, mudanças somente acontecem se uma maioria democrática concorda com elas. O consenso geral é que ninguém antecipa uma mudança constitucional geral em um futuro próximo. Até agora, ou você é um unionista que deseja integrar o Reino Unido ou um nacionalista que quer um Estado da Irlanda do Norte (e unido com a República da Irlanda). Se queremos obter a paz, esta não deve mais ser a equação.

Quando me filiei ao Partido Conservador do Reino Unido, em 2006, eu o fiz com isto em mente. Se continuarmos a fazer parte do Reino Unido, devemos nos concentrar em temas sociais e econômicos. E, claro, teremos, num contexto democrático, de lidar com as aspirações dos nacionalistas republicanos e dos outros partidos. Quero ressaltar que meu velho partido, o UUP, e o meu novo partido, o Partido Conservador, lutamos juntos em eleições europeias e lutaremos em eleições britânicas. Não creio que a natureza do quadro político do Reino Unido mude da noite para o dia. Mas é um começo.

CC: O senhor acredita em mudanças para obter resultados. Mas muita gente se indaga o que o fez aceitar lidar com os republicanos nos anos 90 para selar um processo de paz.
WDT: Quando eu ingressei o Partido Unionista do Ulster (UUP) no começo dos anos 70, o partido estava organicamente ligado ao Partido Conservador. Em 1975, na convenção constitucionalista, apoiei formar uma coalizão com outros partidos. Mas, dois anos após 1998, não tinha certeza de que os republicanos apoiavam um processo de paz. Pouco a pouco me dei conta que os republicanos estavam respeitando o acordo – claramente, tinham realizado a transição do terrorismo para a democracia – e fiquei satisfeito. Não tive dificuldades em lidar com pessoas que duas décadas atrás estavam envolvidos em violência, mas que, por terem eliminado esse passado, tornaram-se pessoas com as quais eu poderia negociar. Quando vejo os que me apóiam, não tenho certeza se todos têm as mãos limpas. Chegamos a um consenso.

CC: O senhor acha importante ter o apoio do presidente americano Barack Obama para que o processo de paz na Irlanda do Norte renda frutos?
WDT: Não é um tema com o qual ele tenha de lidar. Isto, simplesmente, porque o assunto foi resolvido. Se algo em relação ao nosso processo pudesse ser beneficiado pela administração de Obama, a atual Secretaria de Estado faria o possível para resolver o problema.

CC: O senhor diz isso porque Hillary Clinton e seu marido estiveram envolvidos no processo de paz na Irlanda do Norte?
WDT: (Risos). Ela esteve em Belfast. Ela sabe algo.

CC: O senhor se vê como forte candidato a ministro em um governo do conservador David Cameron?
WDT: Duvido que David Cameron saiba quem serão seus ministros. Quando ele for premiê, e tenho certeza de que será, algumas pessoas se tornarão automaticamente seus ministros, como William Hague. Mas, quanto aos outros, não há previsões.

Revista Carta Capital

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