Texto: Sérgio Adeodato
Pôr-do-sol na baía mostra a beleza da região que é cercada de manguezais e Mata Atlântica. Criação de unidade de conservação é esperança de pescadores
Ao pé de montanhas cobertas de Mata Atlântica, no litoral norte de Santa Catarina, o pescador João Gonçalves Batista, o Jango, de 57 anos, aponta para o mar à sua frente e diz: “É preciso fazer alguma coisa, porque tudo aqui está se acabando.” Jango lembra do tempo em que capturava robalos-flechas e parabijus gigantes na Baía da Babitonga, com suas 24 ilhas e vastos manguezais. Hoje a área está prestes a se tornar a primeira Reserva de Fauna do Brasil. Esse tipo de área de proteção ecológica alia o uso econômico à conservação das espécies marinhas que mantêm o sustento dos pescadores e suas famílias. Será um alento para Jango e outros pescadores da Vila da Glória, município de São Francisco do Sul. A produção de camarão caiu 30% em uma década. “Em vez de caranhas de 40 quilos, hoje encontramos garrafas plásticas e até sofás velhos boiando no mar”, lamenta o pescador.
Bisneto de açorianos que imigraram do arquipélago na costa da África no século 19, Jango lembra que as florestas que ainda emolduram a Baía da Babitonga foram quase dizimadas pelo corte ilegal de palmito e madeira. Mas depois, em função de um maior controle, se recuperaram. “Hoje, até tucanos freqüentam o quintal de casa”, conta. Para ele, salvação igual poderia ocorrer no ambiente marinho, atualmente castigado pela poluição e por alterações causadas pelas indústrias.
O temor das restrições
Alunos da Escola Familiar do Mar aprendem a criar ostras
Apesar das palavras do pescador, a aprovação da nova reserva é motivo de polêmica. “Envolve conflitos e diferentes interesses”, afirma Ana Maria Torres, do Centro de Pesquisa e Gestão de Recursos Pesqueiros do Litoral Sudeste e Sul, órgão do Ibama em Santa Catarina. De um lado estão aqueles que temem prejuízos econômicos com as restrições de uso. De outro, situam-se os órgãos ambientais e os defensores de maior rigor para proteger a fauna. Após as audiências públicas, realizadas em 2006 e 2007 nos seis municípios do entorno da baía, o projeto está para ser assinado pelo presidente da República.
Segundo Ana Maria, a criação da reserva é uma medida urgente, porque a baía está secando. A degradação é antiga. Começou na década de 30, quando foi aterrado o Canal do Linguado, principal via de escoamento de águas para a Babitonga. A obra teve o objetivo de permitir o transporte ferroviário de mercadorias entre o litoral e o continente, mas alterou drasticamente o ambiente costeiro. Somado a isso, o crescimento urbano de Joinville, maior cidade e pólo industrial da região, hoje com 600 mil habitantes, espalhou poluição. Hoje apenas 13% dos esgotos das residências são tratados. Os dejetos industriais também são levados pelos rios até a baía. Há locais onde a contaminação por arsênio e outros metais pesados supera em 50% o limite aceitável.
“Apesar da maior preocupação das indústrias, há muitas falhas de controle”, critica a bióloga Marta Cremer, da Universidade da Região de Joinville (Univille). A poluição é apenas uma parte do problema. A dragagem para explorar areia no fundo da baía remove larvas de organismos marinhos e interfere no equilíbrio ecológico. “Para completar, peixes e crustáceos são capturados em quantidades exageradas, o que é agravado pelo aumento de turistas que praticam a pesca amadora”, diz a pesquisadora.
Golfinhos surdos
Desde os tempos da colonização, quando era utilizada para a exportação de madeira, ouro e erva-mate, a Baía de Babitonga é considerada uma das principais zonas portuárias do País. Além do antigo porto de São Francisco do Sul, situado próximo à saída para o oceano, novas instalações portuárias foram projetadas para o local. O porto de Itapoá, destinado à exportação de contêineres, aguarda licença ambiental para entrar em operação em 2008. Para Marta Cremer, “a criação da reserva de fauna vai ajudar a disciplinar as atividades”.
Piscinas naturais se formam na praia do Forte, uma das muitas de Babitonga, tendo ao fundo a Ilha da Paz
Caso contrário, os riscos aumentam. O intenso tráfego marítimo suja as águas da baía com o lastro dos navios e traz organismos invasores que competem por alimento e abrigo com as espécies nativas. O ruído das embarcações afasta os animais marinhos de maior porte. Golfinhos, que antes pulavam à vista de todos, já não chegam tão perto da costa. “Muitos estão ficando surdos”, revela a bióloga, que orienta pesquisas sobre a audição desses animais na universidade.
Ao abrigar 75% dos manguezais catarinenses, a Baía da Babitonga é um criadouro natural de organismos marinhos, responsável pela maior parte da produção pesqueira do Estado. Existem ali mais de 100 espécies de peixes, que são a base da alimentação de dezenas de aves aquáticas, entre as quais nove migratórias – como a águia-pescadora e a batuíra-de-bando – vindas periodicamente do Hemisfério Norte para se alimentar. Esse cenário é refúgio de caranguejos-uçás, ameaçados pela captura descontrolada. E também das toninhas, antes comuns naquela paisagem, e hoje restritas a apenas 26 dos 160 quilômetros quadrados da baía. Nas zonas mais afastadas, próximas às ilhas oceânicas, ainda há meros – o maior peixe brasileiro e um sobrevivente dos arpões dos mergulhadores.
Com menos peixes no mar, criar mariscos em cativeiro passou a ser uma alternativa. “Precisamos de água limpa para manter o negócio”, afirma o maricultor Helias Correia, dono de viveiros onde produz mais de 100 mil ostras por ano, parte delas consumida no restaurante da sua mulher.
“Antes batíamos a palha de coqueiro na beira do mar e os camarões pulavam fora da água”, diz o pescador Sandro Vieira. “Boa parte dos peixes é retirada por pessoas que não precisam deles para sobreviver. Estamos preservando a baía para o proveito de quem?”
Baía histórica
Na Praia Bonita, ruínas do século 19 lembram a missão francesa que tentou desenvolver a homeopatia na região com espécies da Mata Atlântica
Na Praia Bonita, bem próximo à casa de Sandro, ruínas de uma construção de pedra são vestígios do chamado Falanstério do Saí – missão francesa instalada em 1842 pelo médico Benoit Jules Mure, com o objetivo de aplicar os preceitos da homeopatia com remédios a base de plantas da Mata Atlântica. A comunidade não prosperou, pois seus moradores não se adaptaram à vida dura na floresta.
Matas e restingas do entorno da baía preservam sambaquis, sítios arqueológicos que reúnem ferramentas líticas e restos de conchas e alimentos de grupos primitivos que ali viveram há mais de 3 mil anos. Nos séculos 15 e 16, os índios carijós passaram a ocupar a região, foco de constantes incursões francesas. Conta-se que longas trilhas, parte delas ainda hoje existentes, eram percorridas pelos indígenas, sob o comando dos jesuítas, para transportar prata entre os Andes e o Atlântico.
A vida ao redor da Babitonga sempre foi ligada ao mar. “É preciso valorizar seus recursos para preservá-los”, explica Leonel Pavanello, professor da Escola Familiar do Mar, um modelo pedagógico francês, aplicado em dezenas de países. Após uma semana de aulas na escola, o aluno permanece 15 dias em casa e no trabalho para colocar em prática o que aprendeu. “Alguns trabalham na atracação de navios no porto, outros guiam turistas na pesca amadora ou ganham a vida nas oficinas de motores náuticos”, conta Pavanello.
O pescador Jango prepara a rede para o trabalho: hoje é mais difícil
Instalado no Centro Histórico de São Francisco do Sul, o Museu do Mar conta a história da navegação, mostra o modo de vida dos caiçaras e reúne um rico acervo de embarcações. O espaço é freqüentado por turistas e jovens das escolas públicas da cidade. Em um dos galpões do museu, o carpinteiro Raul Geraldo da Rocha, de 80 anos, não sente o cansaço da idade. Ele confeccionava canoas de tapiruvu, madeira nobre da Mata Atlântica. Conta que já fez mais de 500 delas, no tempo em que a pesca e a madeira eram fartas e podia se cortar árvores para esse fim. Hoje, Raul restaura barcos antigos para manter vivo o ofício que aprendeu quando criança. “É a forma que tenho de continuar sonhando”, conta.
A beleza de uma cidade
São Francisco do Sul, na Baía de Babitonga, é a terceira cidade mais antiga do Brasil, atrás apenas da baiana Porto Seguro e da paulista São Vicente. Foi pólo econômico e cultural importante no século 19. Sobrados, igrejas e armazéns portuários que testemunham o esplendor da época (foto) foram restaurados pelo Programa Monumenta, mantido pelo governo federal com verba do Banco Interamericano de Desenvolvimento. As obras incluíram o centenário Clube 24 de Janeiro, inaugurado em 1892, palco de bailes e reuniões políticas da época. A orla, pontilhada de casarios, foi urbanizada e iluminada, e trouxe vida nova à cidade. Restaurada, São Chico, como ficou conhecida, recebe mais visitantes, o que abriu alternativas econômicas para quem dependia da pesca. Manter o ambiente marinho saudável passou a ser indispensável para essa nova fonte de renda.
O senhor das pedras
Conhecido como “senhor das pedras”, o mero é uma espécie da família da garoupa e do badejo, que pode viver mais de 40 anos, pesar 400 quilos e medir mais de 2 metros. Dócil e pouco ágil, o animal é vítima da captura irracional, apesar de proibida, e está na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), entre as espécies criticamente em perigo de extinção. Para conhecer os seus hábitos reprodutivos, a equipe do Projeto Meros do Brasil aproveitou o final de 2007 para mergulhar na Babitonga (foto), um dos principais refúgios do peixe em águas brasileiras. Nesse período do ano, os meros se agrupam para acasalar e se tornam alvos fáceis de caçadores.
Revista Horzonte Geográfico
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