quarta-feira, 23 de abril de 2014

Unasul - O sonho da integração

 
  Claudio Egler / Foto: Carlos Juliano Barros

CARLOS JULIANO BARROS


“Geoeconomista”. É assim que o carioca Claudio Antonio Gonçalves Egler, 62 anos, nascido e criado no tradicional bairro carioca de São Cristóvão, se define. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Egler concluiu a graduação e o mestrado em geografia nessa mesma instituição, mas fez seu doutorado na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Em seguida, partiu para uma temporada de um ano em Buenos Aires, na Argentina, onde fez seu pós-doutorado.
Egler recebeu a reportagem de Problemas Brasileiros em seu apartamento, a poucas quadras da famosa praia de Copacabana, na zona sul da capital fluminense. Amante do mar, da fotografia e de ícones do jazz norte-americano, como Miles Davis e John Coltrane, que embalam seus exercícios físicos das horas vagas, ele conta que dedicou boa parte de sua vida acadêmica a pesquisas sobre a integração da América do Sul e a questões energéticas, assuntos desta entrevista exclusiva. “A América do Sul é um continente ainda em construção”, ele sentencia, fazendo referência a uma de suas principais influências, o falecido economista paraibano Celso Furtado.

Problemas Brasileiros – O senhor é um estudioso do continente sul-americano principalmente no tocante à questão energética. Como o senhor avalia a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), entidade que está com cinco anos de vida?
Claudio Egler – A Unasul é um marco político para a América do Sul. Ela é diferente do Mercosul e da Comunidade Andina, que têm um caráter mais econômico. De certo modo, a Unasul procurou organizar as relações entre esses dois blocos econômicos. A proposta da entidade tem alguns aspectos bem positivos. Por exemplo, ela substitui a OEA (Organização dos Estados Americanos) como foro de negociação, de tomada de posição no que diz respeito à América do Sul.

PB – Então, a Unasul confere maior autonomia política à América do Sul?
Egler – Ela é parte da construção dessa autonomia política. Não vou dizer que ela já exista completamente. Porém, alguns exemplos mostram que a Unasul vem desempenhando um papel importante. É o caso da suspensão do Paraguai do Mercosul, por conta da destituição do ex-presidente Fernando Lugo. A Unasul adotou uma posição de crítica à forma como foi feito o afastamento de Lugo. Mais recentemente, a Unasul se manifestou sobre o caso de Evo Morales, presidente da Bolívia, que vinha de Moscou e cujo avião foi impedido de descer na França. A Unasul funciona como um porta-voz político dos países da América do Sul. E, evidentemente, quem tem poder de mobilizar e exercer liderança na Unasul é o Brasil. A Unasul é parte da construção de um projeto em que o Brasil tem papel de destaque na integração sul-americana.

PB – A Unasul prevê o fortalecimento dos laços entre os países da América do Sul por meio de obras grandiosas como gasodutos, rodovias, hidrelétricas. Qual deveria ser a prioridade no continente em termos de infraestrutura?
Egler – A integração física é um aspecto bastante importante. Ela tem efeitos que vão além da mera circulação de pessoas e mercadorias. Também aproxima estruturas econômicas e facilita a coordenação produtiva. Na América do Sul, temos um atraso histórico no desenvolvimento desse tipo de infraes­trutura. No passado, todos os esforços tinham como objetivo dificultar ao máximo a circulação de mercadorias entre os países. Agora, o esforço está no sentido contrário, embora ainda existam outras dificuldades. Vamos citar o caso do gasoduto Brasil-Bolívia. Enquanto a relação dólar estava favorável ao real, era melhor importar gás da Bolívia. Mas, agora, com a súbita elevação da cotação da moeda americana, passa a ser oneroso. Um dos principais problemas é que não existe um marco regulatório capaz de dar estabilidade a essas relações. Resolver esse gargalo talvez seja uma missão importante que a Unasul ainda venha a desempenhar.

PB – Quais são os principais desafios para a integração da América do Sul?
Egler – Basicamente, são dois: um marco regulatório e um sistema financeiro capaz de alavancar grandes empreendimentos. Atualmente, o principal órgão financiador da infraestrutura da América do Sul é o brasileiro Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Ele financiou estrada na Bolívia e hidrelétrica no Equador. O BNDES está se transformando em um banco de fomento em escala sul-americana. Ainda não está claro, entretanto, quem vai desempenhar esse papel [de financiamento]. É fundamental que haja algum mecanismo financeiro mais robusto para fazer isso. Na questão da energia, a integração está avançando porque há uma necessidade de complementaridade entre os países. O Brasil sabe muito bem que a compra do gás da Bolívia é fundamental para o funcionamento da economia daquele país. Cerca de 75% do gás da Bolívia vem para o Brasil. E isso significa quase 80% das exportações bolivianas.

PB – Com o aumento da cotação do dólar, essa relação comercial com a Bolívia sofre algum abalo?
Egler – Sofre um abalo. Mas há outros problemas. No Brasil, fizemos uma opção de estímulo ao transporte individual. Faz parte da política incentivar o consumo para ativar a economia e gerar empregos. Mas qual é o efeito? Isso significou o aumento das importações de gasolina porque nossa estrutura de refino [de petróleo] não tem condições de atender a demanda. Além disso, toda a logística das exportações brasileiras funciona em cima de caminhão. Não houve grandes investimentos para transferir parte dessa logística para a ferrovia ou para a hidrovia. Isso sobrecarrega o transporte rodoviário e aumenta o consumo de diesel. Hoje, estamos importando gasolina e diesel e dificultando as coisas para os lados da Petrobras. Então, o problema não é só o gás da Bolívia. Temos que estabelecer prioridades na tomada de decisões que afetam a economia e cujos resultados precisam ser avaliados a longo prazo. Recentemente, a Petrobras resolveu que voltará a investir no país de Evo Morales. Isso vai estimular o intercâmbio entre os dois países, com um efeito maior a longo prazo. Esse processo de integração é inexorável. As economias tendem a buscar acordos que facilitem a circulação de mercadorias e de capitais. Nesse sentido, a proposta dos Estados Unidos de uma grande zona de livre comércio no Pacífico tem efeitos muito poderosos, inclusive na América do Sul, particularmente no Peru e no Chile, que já estão se integrando a essa iniciativa.

PB – A chamada Aliança do Pacífico [bloco composto por Chile, Colômbia, Peru e México para livre comércio entre os países envolvidos e acordos bilaterais] pode dificultar a consolidação da Unasul e da integração da América do Sul?
Egler – São forças que não contribuem para o envolvimento das nações sul-americanas. Vamos usar a ideia do [economista] Celso Furtado: a América do Sul é um continente ainda em construção. O desafio da integração é grande e envolve capacidade técnica e de inovação.

PB – Quando assumiu a presidência do Paraguai, um dos principais pleitos do ex-presidente Fernando Lugo era a revisão do acordo feito com o Brasil a respeito do preço da energia elétrica gerada pela usina de Itaipu. O presidente da Bolívia, Evo Morales, também renegociou o preço do gás natural exportado para cá. Qual é sua avaliação sobre a relação que o Brasil construiu com seus vizinhos para o abastecimento de energia do país?
Egler – Sou daqueles que creem que [as negociações] são decisões acertadas. Já outros dizem que é frágil a posição do Brasil no que diz respeito à sua política externa. O fato é que muitos desses acordos foram feitos em situações muito desfavoráveis para os países vizinhos, em momentos políticos delicados. Se o Brasil quer assumir o papel de liderança na América do Sul, precisa rever alguns desses acordos. No caso de Itaipu, por exemplo, haverá uma nova discussão porque o Paraguai construiu uma nova linha de alta tensão para abastecer a região próxima a Assunção [capital federal], onde se concentra a maior parte da população do país. Isso vai baratear a oferta de energia dentro do Paraguai e pode fazer até com que empresas brasileiras procurem se instalar lá. A energia elétrica no Brasil tem um custo muito alto. Ela já foi subsidiada para grandes consumidores, mas hoje em dia está cada vez mais cara. E isso não é um atrativo. Tanto é assim que uma das políticas recentes do governo foi tentar reduzir o custo da energia. Mas ainda existe a necessidade de grandes investimentos no setor. Nesse aspecto, poderíamos até explorar recursos que estão nos nossos vizinhos, inclusive poupando alguns dos impactos provocados pela construção de grandes hidrelétricas, sobretudo na Amazônia.

PB – Por que a energia elétrica no Brasil é tão cara?
Egler – Uma das principais explicações é que o país não tem uma estrutura de financiamento montada para bancar novos investimentos. Energia tem um custo financeiro alto porque requer investimentos pesados que só podem ser amortizados a longo prazo. No Brasil, existe uma diferença fundamental entre o preço da energia de instalações mais antigas, que são mais baratas porque já estão amortizadas, e das novas, que estão sendo construídas agora, cujo prazo de amortização é grande. É necessário que, na área financeira, se desenvolvam mecanismos que facilitem investimentos de longo prazo. Além disso, há longas distâncias a serem percorridas entre as áreas geradoras e os centros consumidores. O Brasil é um país continental e isso implica custos adicionais. Sem falar no desperdício, nas perdas ao longo da transmissão. Agora é que estamos começando a trabalhar com malhas inteligentes, que não são operadas da maneira tradicional. A possibilidade de construir sistemas inteligentes de distribuição de energia pode melhorar bastante esse quadro.

PB – A América do Sul possui vastas reservas de petróleo, localizadas sobretudo na Venezuela, no Brasil, na Colômbia e no Equador. Estima-se que o volume descoberto para exploração tenha quadruplicado nas últimas quatro décadas. Já a Argentina tem grandes reservas do gás de xisto, nova febre mundial. Como a América do Sul pode aproveitar esse potencial?
Egler – Os exemplos mencionados: Colômbia e Equador ainda operam da maneira tradicional, explorando as chamadas fontes convencionais de petróleo. A Venezuela afirma ter reservas maiores do que a Arábia Saudita, o Brasil está apostando pesado no pré-sal, e a Argentina tem o gás de xisto em Vaca Muerta, na Patagônia – têm um desafio em comum pela frente. Trata-se de fontes não convencionais e isso requer uma tecnologia avançada, com riscos ambientais desconhecidos. Aqui no Brasil ainda não sabemos ao certo como será explorar petróleo a 300 quilômetros da costa, com poços a sete mil metros de profundidade, e, ainda por cima, tendo de encarar as dificuldades relativas à perfuração da camada de sal espessa.

PB – No caso do gás de xisto, os questionamentos ambientais são ainda mais preocupantes.
Egler – Pelo que se sabe até o momento, no caso de Vaca Muerta, não será necessário fazer o que se faz nos Estados Unidos, que é perfurar [a rocha] na vertical e depois, horizontalmente, injetar água com produtos químicos para fraturar a rocha e retirar o gás. Isso faz com que o metano corra por vários lugares, e ele pode inclusive entrar em lençóis freáticos. Os problemas do gás de xisto são muito controversos. Alguns países proibiram, outros estão apostando pesado. Pelo que se conhece hoje, as maiores reservas de gás de xisto estão nos Estados Unidos, na China e na Argentina. Estados Unidos e China vão investir maciçamente. Na Argentina, quem vai explorar o gás é a americana Chevron, que detém a tecnologia. Para os argentinos, isso pode ter um custo alto, mas eles precisam do gás. A maior parte da matriz energética argentina, mais de 50%, é baseada no gás (eles utilizam esse combustível há muito mais tempo do que o Brasil). O primeiro gasoduto dos nossos vizinhos data dos anos 1940 e há muitos deles cortando toda a Argentina, da Patagônia ao norte do país. A saída do gás de xisto é custosa, é arriscada, mas é uma decisão política.

PB – E qual é o desafio da Venezuela no campo do petróleo?
Egler – O que faz da Venezuela a detentora das maiores reservas mundiais é o petróleo ultrapesado da bacia do rio Orinoco. Mas ele é parafínico, ou seja, a dificuldade para extraí-lo é imensa: é como uma artéria com colesterol. Depois, vem o problema do refino. O petróleo pesado não dá todas as frações [subprodutos] rendidas pelo petróleo leve. É necessário desenvolver tecnologia para isso. E o custo para explorar esse petróleo não é trivial.

PB – O senhor afirma em seus artigos que os países da América do Sul, depois de fazerem um “ajuste passivo à globalização” a partir da década de 1980, através da privatização das empresas de energia, mudaram completamente a orientação com o advento do século 21. Agora, os governos nacionais parecem querer usar os recursos obtidos principalmente com o petróleo para saldar o grave passivo social do subcontinente. Como se deu essa mudança de paradigma?
Egler – Houve uma mudança na orientação política desses países. E isso afetou principalmente o setor energético. A rea­lidade é que os lucros com os minerais sempre tiveram um peso muito grande na América do Sul. Porém, independente das orientações dos governos militares no Chile, ninguém privatizou o cobre porque boa parte das rendas do país e inclusive boa parte do financiamento das mudanças na agricultura chilena se fizeram às custas deste metal.

PB – O cobre no Chile ainda é controlado pelo Estado?
Egler – Sim e tem supervisão das forças armadas. Ele é estratégico. Quer ver outro assunto que vai entrar em discussão num futuro próximo? O lítio. A Bolívia tem as maiores reservas de lítio do mundo, que é matéria-prima para bateria de celulares e de outros aparelhos eletrônicos. O resto está no norte da Argentina, onde há reservas grandes também. Isso vai ser objeto de muita discussão, de como essas rendas serão apropriadas.

PB – Críticos afirmam que o Mercosul naufragou, que os países do bloco têm preferido negociar acordos comerciais com nações de outros continentes. Essa análise procede?
Egler – Os países da América do Sul estão cada vez mais dependentes das vendas ao mercado externo. Cada um está procurando uma maneira diferente de encontrar divisas. A busca por moeda forte faz com que as trocas internas no continente não tenham muito sentido. Os países do continente sul-americano se transformaram em grandes vendedores de commodities para a China. O Brasil exporta minério de ferro, carnes e outros produtos para lá e tenta fazer os vizinhos latinos comprarem seus manufaturados. Onde isso está funcionando? No setor automotivo, por exemplo, mediante os acordos firmados entre Brasil e Argentina. Nós compramos carros montados lá com peças feitas por indústrias brasileiras e vice-versa. Esse arranjo pode até vir a funcionar por um tempo. Mas isso é novo, está sendo construído agora. Antes não era assim. E há outros problemas para resolver. Um que está na mesa agora é o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, emperrado por causa da crise na Europa. E também por conta de um protecionismo muito forte deles, principalmente para produtos agrícolas.

PB – Qual é a saída para a América do Sul?
Egler – Em primeiro lugar, é possível pensar em um mercado doméstico de manufaturados de abrangência sul-americana. O Mercosul talvez seja o principal instrumento para isso, porque já tem uma estrutura montada. Por outro lado, a integração produtiva ainda é muito incipiente e teria que ser estimulada por novos mecanismos financeiros. Por enquanto, os financiamentos do BNDES ainda são muito tímidos. Nos últimos anos, a economia brasileira se manteve com quase pleno emprego graças ao estímulo ao consumo interno. Se houver condições de ampliar esse consumo para uma escala um pouco mais ampla, em termos sul-americanos, vamos acabar fortalecendo a economia e gerando empregos.
Revista Problemas Brasileiros

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