domingo, 24 de outubro de 2010

Muito mais que aviões de carreira

Guarulhos, vizinha da capital, transformou-se em importante polo logístico e industrial

ALBERTO MAWAKDIYE
Acesso rodoviário: localização privilegiada
Foto: Célia Thomé

Mais conhecido dos brasileiros por abrigar o principal aeroporto internacional do país, o município de Guarulhos parece ter entrado no século 21 disposto a não apenas modificar essa imagem – estabelecida nos anos 1960 e 70, quando era, de fato, pouco mais que uma das gigantescas periferias da região leste da Grande São Paulo, com a injusta fama de apinhada e pobre cidade-dormitório, gravitando em torno de algumas grandes fábricas e armazéns – como também a se afirmar como um dos mais importantes polos industriais e de logística do Brasil.

Pelo menos o segundo objetivo a cidade está muito próxima de alcançar – se é que já não fez isso. De umas três décadas para cá, o número de indústrias implantadas em Guarulhos se multiplicou de maneira espantosa. São raríssimos os municípios brasileiros que podem se gabar de ter hoje dentro de seu território mais de 2,5 mil empresas industriais, dos mais diferentes setores, do metalúrgico ao químico e farmacêutico, do alimentício ao têxtil, do de borrachas e plásticos ao de bens de capital, do de autopeças ao gráfico-editorial e ao de eletroeletrônicos.

Em termos estritamente quantitativos, a cidade detém hoje o segundo maior parque industrial do estado de São Paulo – mais que a desenvolvida Campinas e até que São Bernardo do Campo, no ABC, berço da poderosa indústria automobilística brasileira e tida ainda como a simbólica capital industrial do país. No ranking nacional, Guarulhos já defende um surpreendente oitavo lugar.

Das 2,5 mil indústrias que abriga, cerca de 2 mil são de pequeno e médio porte, o que explica a diversificação. Dentre as 500 de grande porte, porém, estão verdadeiros ícones do setor secundário brasileiro e mundial, de enorme poderio econômico, a maioria delas com faturamento superior a R$ 100 milhões por ano.

A lista impressiona: na área de peças e equipamentos automotivos, lá estão Cummins, Yamaha, Visteon, Borlen, Maggion, Randon e Valeo; na de bens de capital, Bardella; na farmacêutica, Pfizer e Aché; na têxtil, Rosset (dona da Valisère) e TriFil; na de alimentos, Bauducco, Panco, Aurora e General Brands. Aço-tubo e SEW-Eurodrive, gigante da área de automação, são ainda outras delas.

Várias estão ali há décadas, como a Randon, a Pfizer e a Bauducco (cuja primeira fábrica “não artesanal” foi implantada em Guarulhos em 1962). Outras, como a Valeo e as editoras Saraiva e FTD, instalaram-se mais recentemente.

Há também aquelas que foram distribuindo unidades no município ao longo do tempo. É o caso da Cummins, empresa de origem americana que construiu uma fábrica de motores diesel, a Cummins Brasil, em 1974. A ela se seguiriam uma indústria de filtros e outra de equipamentos para controle de emissões, além de uma unidade de geradores que foi implantada na mesma área da Cummins Brasil. “Essa proximidade nos permite uma maior sinergia e facilita nossos fluxos operacionais e administrativos”, diz Luis Afonso Pasquotto, diretor geral da Unidade de Negócios de Motores da Cummins América Latina.

O segmento complementar de transporte e logística também se destaca na cidade. Guarulhos vem sendo cada vez mais procurada por empresas transportadoras e grupos industriais e varejistas de todos os tipos, desejosos de montar ali centros de distribuição, por causa da posição geográfica do município.

De fato, a cidade está não só colada em São Paulo como localizada às margens de três das mais estratégicas rodovias brasileiras, a Via Dutra, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro, a Fernão Dias, que leva a Minas Gerais, e a Ayrton Senna, que vai da capital paulista até o vale do Paraíba. Além disso, deve contar em breve com os trechos leste e norte do Rodoanel Metropolitano, a arrojada via de contorno que o governo paulista está construindo para ligar as rodovias que cruzam a Grande São Paulo, encurtando significativamente o tempo de trajeto entre o município e os portos de Santos e São Sebastião. Tudo isso sem falar, claro, que a cidade também é a sede do Aeroporto Internacional de Guarulhos, o mais movimentado do Brasil, por onde hoje passam cerca de 20% dos passageiros e um terço da carga aerotransportada do país.

Atualmente, Guarulhos abriga mais de mil empresas de transporte e armazenagem, além de vários portos secos e entrepostos aduaneiros. A megatransportadora Rapidão Cometa montou ali, por exemplo, um centro de distribuição para atender exclusivamente o sudeste e o sul do país, enquanto a Atlas, também gigante do setor, implantou no final de 2008 um terminal de 10 mil metros quadrados de área construída – o maior dentre as 40 filiais que a companhia paulistana mantém no Brasil –, no qual investiu R$ 7 milhões.

O chamado “centro de consolidação” da Atlas fica ao lado da Via Dutra e próximo das rodovias Fernão Dias e Ayrton Senna, e se localizará a apenas 5 quilômetros do Rodoanel. “O objetivo é fazer com que cerca de 70% do volume de nossas cargas fracionadas passe pelo terminal”, diz Francisco Megale, presidente da empresa.

As “joias da coroa” nesse segmento, porém, são os centros de logística instalados nos últimos anos por redes afamadas como Telhanorte, Dicico e C&C, da área de construção, Riachuelo, do setor têxtil, e Ponto Frio, que ali montou um centro de distribuição de eletroeletrônicos, a exemplo da fabricante coreana LG. A histórica Bauducco também ergueu um grande entreposto na cidade.

Terrenos

Diga-se que não foram apenas a posição geográfica e a vizinhança de grandes estradas os fatores que levaram Guarulhos ao ponto a que chegou. Com um território relativamente amplo – 318 quilômetros quadrados – e uma remota origem hortifrutigranjeira (Guarulhos foi fundada em 1560, e completa em 2010 exatos 450 anos, portanto), a cidade também pôde contar no seu processo de industrialização com o inestimável diferencial de extensos terrenos disponíveis, e relativamente baratos, nas proximidades das rodovias.

Assim, na década de 1980, quando várias indústrias paulistanas começaram a migrar para cidades próximas, de modo a fugir da elevação dos preços dos terrenos – que dificultava projetos de ampliação – e do custo de mão de obra e logística, a espaçosa e vizinha Guarulhos surgiu quase como uma opção natural.

A prefeitura fez sua parte. Reservou uma imensa área na região de Cumbica, às margens da Via Dutra, para atrair empresas para a cidade, acenando com infraestrutura praticamente gratuita e generosos benefícios fiscais. O apelo funcionou tão bem que a chamada Cidade Satélite de Cumbica se tornou um autêntico cluster de empresas de transporte, vindas em boa parte do vizinho bairro paulistano de Vila Maria. Logo o movimento seria imitado pelas indústrias.

“Pode-se dizer que Guarulhos estava no lugar certo na hora certa”, resume Antonio Carlos de Almeida, secretário de Desenvolvimento Econômico do município. “Desde então, a cidade nunca mais parou de atrair fábricas, já que podia oferecer a elas espaço de sobra, tanto em Cumbica como em bairros como Itapegica e Bonsucesso, que depois se tornariam também sólidos distritos industriais. Em Bonsucesso, inclusive, existem ainda enormes áreas disponíveis.”

De acordo com Almeida, Cumbica continua a ser a região industrial de Guarulhos por excelência, abrigando pouco mais de mil indústrias e quantidade ainda maior de transportadoras e estabelecimentos comerciais diversos. Perto de 60% do Produto Interno Bruto (PIB) provém da Cidade Satélite, assim como parte significativa das receitas de vendas externas – o município ocupa a quinta posição entre os maiores exportadores do estado e está entre os 20 principais do Brasil.

“A expansão do lugar foi realmente impressionante”, diz Antonio Roberto Marchiori, presidente da Associação dos Empresários de Cumbica (Asec). “Hoje, Cumbica está mais consolidada, os terrenos ficaram naturalmente mais caros por conta da estrutura melhor, mas sem dúvida a região ainda é atrativa e permanecerá como a locomotiva de Guarulhos por bastante tempo.”

Para a cidade, a atração de indústrias implicou mudanças em todos os níveis e que, aparentemente, os brasileiros em geral ainda não descobriram. O PIB do município simplesmente disparou – somou R$ 33,8 bilhões em 2008, montante que colocou Guarulhos como a detentora do oitavo maior PIB dentre os municípios brasileiros, e segundo maior do estado.

A população e o decorrente mercado de consumo também cresceram exponencialmente. Guarulhos tem hoje 1,3 milhão de habitantes, a segunda maior população do estado, embora a densidade populacional seja só pouco mais da metade da verificada em São Paulo, por causa de seu vasto território.

Os empreendimentos comerciais e de prestação de serviços se multiplicaram, fazendo com que o município esteja hoje otimamente servido nessa área, com mais de 50 mil empresas de pequeno e médio porte. A cidade conta ainda com estabelecimentos referenciais na região, como o Internacional Shopping e o Shopping Bonsucesso, ambos localizados ao longo da Via Dutra.

Esses centros de compras atraem uma clientela cada vez mais afluente. Uma classe média formada principalmente por trabalhadores industriais de nível médio ou gerencial, milhares deles nascidos em outras localidades, especialmente em São Paulo e no ABC, se consolidou, elevando o poder aquisitivo na cidade. Segundo o Índice de Potencial de Consumo, calculado pela empresa Target Marketing, que compara os gastos feitos em cada município, Guarulhos ocupa hoje a terceira posição no estado e a 13ª no país.

“Esse poder de consumo, porém, não é empregado em Guarulhos como o comércio gostaria”, observa Wilson Lourenço, presidente da Associação Comercial e Empresarial de Guarulhos (ACE). “Isso é prova de certa falta de identificação dos guarulhenses com sua cidade. Muitos preferem comprar em lojas paulistanas, apesar de saber que encontrarão o mesmo produto aqui, e quase sempre a preços mais baixos.”

De acordo com Lourenço, a ACE está tentando reverter esse cenário, de resto comum a todas as cidades da Grande São Paulo, devido à proximidade com a capital e à ausência de “fronteiras físicas” mais bem definidas – e também ao fato óbvio de que muitos guarulhenses trabalham em São Paulo –, por meio da campanha “Eu compro em Guarulhos. E você?”

Serviços

De qualquer forma, a identificação dos guarulhenses com a capital, em termos de consumo, tem ajudado a impulsionar os negócios na própria cidade. De modo algum está sendo malsucedido o esforço dos empresários locais de oferecer aos munícipes não só os bens, mas também todos os serviços disponíveis na poderosa metrópole vizinha.

Além das lojas, várias delas de alto nível, foram implantados bons restaurantes – concentrados na bem cuidada Avenida Paulo Faccini –, várias universidades e cursos de línguas, clínicas e academias de ginástica, boa parte delas pelas mãos de paulistanos ou de multinacionais atraídos pela rápida ascensão econômica da cidade. Nenhum desses estabelecimentos vive exatamente às moscas.

“Realmente, nunca tivemos problemas de falta de público”, revela Luiz Fernando Onofre Jr., gerente e responsável técnico da sofisticada academia Vinte Metros, localizada em um confortável e arborizado bairro residencial de Guarulhos. Segundo Onofre – que é carioca, mas vive há anos na zona norte de São Paulo –, os equipamentos e as atividades desenvolvidas na academia são os mesmos de qualquer congênere de nível similar localizada na capital paulista.

De uns tempos para cá, até mesmo os arredios executivos que chegam a São Paulo para participar de feiras e convenções, e que passam necessariamente pelo Aeroporto de Guarulhos, estão voltando os olhos para a cidade. Uma rede composta de 23 hotéis do tipo executivo, com quase 2 mil quartos no total e distribuída pelas imediações do aeroporto ou pelas áreas centrais mais nobres do município, foi montada por instituições referenciais do setor, como Accor, Meliá, Marriott e Caesar, ou por empresários do próprio lugar. Esses hotéis têm atraído, sem muita dificuldade, milhares de estrangeiros e brasileiros em trânsito.

“É tradicional os executivos preferirem pernoitar perto dos aeroportos. Hoje, o município tem como atender essa demanda”, explica Marco Iannoni, presidente do Guarulhos Convention & Visitors Bureau. Segundo ele, os hotéis locais já estão recebendo mensalmente cerca de 60 mil hóspedes, com uma taxa de ocupação de 65%.

Para atrair ainda mais esses executivos para a cidade, os empresários lotados em Guarulhos se valem principalmente da existência de bons restaurantes e do comércio variado e acessível, assim como das raríssimas – mas amplas e relativamente bem cuidadas – áreas verdes e de lazer de que Guarulhos dispõe, como o Bosque Maia e o Lago de Vila Galvão.

Há um empenho inegável em montar uma espécie de “leque de atrações” para os turistas. Afinal, Guarulhos – o que é reconhecido com bom humor pelos próprios habitantes – não teria por si só apelo algum fora do mundo do trabalho e dos negócios. Em seu conjunto, trata-se ainda de uma cidade de um urbanismo agressivo e quase caótico, desprovida de paisagens ou de sítios históricos conhecidos, e que as pessoas não fazem muita questão de visitar.

Essa é uma particularidade que, na visão de muitos guarulhenses, tende inclusive a se agravar, com a crescente verticalização urbana. Uma consequência da consolidação de uma classe média relativamente endinheirada e consumista – e da decisão de muitos empresários e altos executivos de se mudar para Guarulhos, de modo a morar mais perto do trabalho – é o interesse cada vez maior demonstrado por construtoras e incorporadoras paulistanas, como a Cyrela e a Rossi, em erguer edifícios destinados a essa camada da população.

De fato, de uns anos para cá, Guarulhos se tornou um verdadeiro paraíso para as incorporadoras, que vêm erguendo torres residenciais de 20 ou 30 andares com a velocidade de cogumelos crescendo na chuva. Em 2008, a cidade registrou o maior número de lançamentos imobiliários na região metropolitana de São Paulo, com 5.476 unidades, ou mais de 15% do total. O resultado foi 58,4% superior ao de 2007. Como acontece na capital do estado e no resto do Brasil, esses prédios têm sido erguidos sem levar muito em conta aspectos urbanísticos, com a ênfase recaindo quase sempre na arquitetura e na decoração.

“Os edifícios estão sendo construídos sem considerar a capacidade viária das regiões e do entorno”, alerta Pedro Fabri, presidente da entidade preservacionista Viva Guarulhos. “Por isso, o trânsito da cidade, que nunca foi muito bom por não haver uma malha viária de robustez suficiente, hoje está se aproximando da paralisia.”

Tão grave como a concentração desmedida dos prédios residenciais é o fato de que o boom imobiliário de Guarulhos estaria ao mesmo tempo reduzindo a pó a já escassa memória patrimonial da cidade. Há amargas queixas dos conservacionistas devido à derrubada de velhas fábricas e edificações históricas em bairros centrais e originalmente industriais, como Vila Augusta e Vila Endres, para a construção de espigões para a classe média, processo que tem se acelerado nos últimos anos.

“Prédios fabris de imenso valor afetivo e cultural para a cidade, como o da Fracalanza, da Tecelagem Carbonell, do Moinho Reisa e da Rayovac, já foram para o chão ou estão em vias de ser substituídos por edifícios residenciais”, protesta Elmi El Hage Omar, diretor geral da Associação Amigos do Patrimônio e Arquivo Histórico. “Até os dois reconhecidamente valiosos casarões da família Carbonell, na Vila Augusta, já foram derrubados para dar lugar a espigões.”

No entender dos preservacionistas, o dano seria também social. A concentração de projetos imobiliários nas regiões mais nobres e centrais estaria, ainda, implicando a lenta expulsão de antigos moradores para locais distantes e mal atendidos pelo poder público, ou para alguma das dezenas de favelas que existem no município, inclusive ao longo de certas avenidas do distrito industrial de Cumbica. Ao mesmo tempo, o processo tende virtualmente a impedir que as inevitáveis novas levas de migrantes tenham, daqui para a frente, outro lugar para se acomodar senão as já abarrotadas periferias.

Seria uma cruel ironia. Guarulhos ainda mantém diante do Brasil uma injusta fama de cidade-dormitório por causa de seu histórico de pobreza e de escassez de oferta de serviços básicos, e com todo o direito quer mudar essa imagem. Só que, como consequência do rápido enriquecimento, corre o risco de piorá-la justamente porque pode tornar a pobreza mais concentrada, visível e borbulhante nas periferias que sempre ostentou envergonhadamente como sua marca distintiva.

Revista Problemas Brasileiros

Nenhum comentário:

Geografia e a Arte

Geografia e a Arte
Currais Novos