domingo, 24 de outubro de 2010

As fábricas vivas de medicamentos

Cresce o uso de animais transgênicos para produção de remédios

EVANILDO DA SILVEIRA


Arte PB

Em 2008, chegou às prateleiras das farmácias da Europa o primeiro medicamento produzido graças à utilização de animais transgênicos. Trata-se do ATryn, nome comercial da nova droga, indicada para tratar o tromboembolismo (ou trombose), doença provocada pela formação de coágulos no interior dos vasos sanguíneos. O antitrombótico é fabricado pela empresa americana Genzyme Transgenics Corporation (GTC) e distribuído pela dinamarquesa LEO Pharma para toda a Europa e o Canadá. É o resultado pioneiro de uma nova tecnologia – no caso, uma biotecnologia –, a transgenia, que começa a se consolidar no mundo todo, inclusive no Brasil. Pelo menos dez grupos de pesquisa no país estão criando cabras, vacas, galinhas, camundongos e até peixes transgênicos para a produção de medicamentos, o desenvolvimento de doenças humanas em animais para pesquisas ou o melhoramento genético de espécies de interesse econômico.

Transgenia nada mais é do que a inserção no genoma de um organismo, por meio de técnicas de engenharia genética, de um ou mais genes de outro indivíduo, que pode ser da mesma ou de espécie diferente da do receptor. Com essa tecnologia é possível, por exemplo, introduzir genes de porcos em seres humanos ou de vírus ou bactérias em plantas. Aquele que recebe o gene adquire características que antes não tinha. O uso dessa tecnologia começou em 1982, quando pesquisadores americanos das universidades de Washington, Pensilvânia e Califórnia produziram um camundongo (Mus musculus) que tinha o gene do hormônio de crescimento de um rato (Rattus rattus), que é uma espécie diferente. Como resultado o camundongo cresceu mais que o normal.

Hoje, já existem várias drogas de origem transgênica no mercado. Nenhuma delas, porém, é produzida por meio de animais – com exceção do ATryn – e sim de microrganismos. O exemplo mais antigo é o da insulina sintetizada por bactérias, que começou a ser comercializada em 1982. Apesar desses sucessos, atualmente a técnica ainda está mais desenvolvida na agricultura, na qual é empregada para criar alimentos resistentes a herbicidas, pragas e clima adverso, bem como torná-los mais nutritivos. Aos poucos, entretanto, começa também a ser usada no reino animal.

O ATryn, por exemplo, foi desenvolvido a partir de uma substância extraída do leite de cabras transgênicas. Para isso, foi introduzido no genoma desses animais um gene humano, construído artificialmente, responsável pela produção da antitrombina humana III (AIII), proteína que é o princípio ativo do novo medicamento. Por meio de uma técnica conhecida como DNA recombinante, os cientistas da empresa americana colocaram o gene no embrião das cabras nos primeiros momentos de sua formação. Posteriormente, a AIII é “fabricada” nas células mamárias do animal adulto. Cada cabra fornece, durante o período de amamentação, 3 litros de leite por dia, o que equivale à produção de cerca de 3 quilos de antitrombina humana III, já purificada, por ano.

Biorreatores

Espécies transgênicas como as cabras da GTC são conhecidas como biorreatores, verdadeiras fábricas de substâncias que podem virar medicamentos. Segundo o químico João Bosco Pesquero, diretor do Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais para Medicina e Biologia (Cedeme) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), são normalmente animais domésticos de médio e grande porte, utilizados para a sintetização de proteínas humanas de ampla importância biológica e comercial, como enzimas, hormônios e fatores de crescimento. “Em geral a proteína de interesse é expressa no leite do animal, o que faz sua produção mais barata e eficiente”, explica. “Em 1997, o primeiro bovino transgênico, a vaca Rosie, desenvolvida nos Estados Unidos, dava leite enriquecido com a proteína humana lactoalbumina, que o tornava mais nutritivo que o produto natural. Há também pesquisas em curso voltadas para a produção de leite com proteínas necessárias ao tratamento de doenças como fenilcetonúria, enfisema hereditário e fibrose cística.”

A transgenia não serve, no entanto, apenas para a produção de medicamentos. Essa tecnologia tem várias outras aplicações. Ainda na área da medicina, ela pode ser empregada para a geração de animais capazes de desenvolver doenças humanas. “Essa é uma aplicação extremamente importante, pois para criar novas drogas necessitamos testá-las primeiro in vitro em células, depois em animais e finalmente em humanos”, explica Pesquero. “Para tanto, podemos fazer modelos animais transgênicos específicos para esses testes. Por exemplo, se sabemos que tal gene está relacionado ao aparecimento de determinada moléstia, podemos apagar o gene em questão ou aumentar o número de cópias, estudar o efeito na doença e testar as novas drogas para combatê-la.”

Esse tipo de pesquisa traz ainda como consequência positiva o uso racional de animais de laboratório em todo o mundo. “O surgimento de modelos transgênicos provocou uma redução do número de cobaias de forma geral, além de tornar possível a substituição de espécies mais próximas do homem, como primatas, por animais menores geneticamente modificados para ter as características específicas que se desejam estudar”, diz Pesquero. “No futuro, essa tendência de redução na quantidade de animais empregados deverá se acentuar em razão da maior especificidade dos modelos transgênicos desenvolvidos.”

O melhoramento genético de espécies de interesse econômico é outra das aplicações da transgenia. “Utilizando o bovino como exemplo, com o emprego das técnicas de manipulação gênica torna-se possível gerar animais com taxa de crescimento muito superior e de forma muito mais rápida que mediante o uso do melhoramento genético clássico”, explica Paulo Varoni Cavalcanti, da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP). “Isso pode ser alcançado com a introdução de múltiplas cópias do gene do hormônio de crescimento no genoma de embriões bovinos. Esses animais teriam uma alta concentração desse hormônio durante o período de seu desenvolvimento, causando desenvolvimento corporal muito superior ao de qualquer outro indivíduo.”

Camundongos nocautes

Pesquero e Cavalcanti sabem do que falam. Ambos trabalham na produção de animais transgênicos. O primeiro começou as pesquisas durante seu estágio de pós-doutorado na Alemanha, entre 1992 e 1996. Desde então, não parou mais. Ele já publicou, até hoje, cerca de 140 trabalhos científicos, muitos deles utilizando os modelos animais gerados na Alemanha ou no Brasil. Entre os resultados mais importantes estão os obtidos com camundongos nocautes (indivíduos dos quais se apagou ou deletou um gene) para o receptor B1 das cininas, substâncias associadas a processos inflamatórios e hipertensivos e à obesidade. O trabalho pode levar a melhor entendimento dessas doenças e a possíveis novos tratamentos.

Pesquero retirou o gene do receptor B1 do genoma dos primeiros animais transgênicos que desenvolveu. “Com isso, eles se tornaram resistentes à obesidade induzida por dieta”, conta o pesquisador. “Podemos alimentá-los com dieta rica em gordura que não engordam.” Essa pesquisa teve início em 2000, e os resultados mais importantes foram publicados em 2008, em uma revista internacional. Depois desse trabalho pioneiro, Pesquero e seu grupo na Unifesp criaram o camundongo Vítor, nascido no dia 24 de dezembro de 2001. O roedor foi produzido com a duplicação do receptor B2 das mesmas cininas.

Hoje a equipe de Pesquero desenvolve camundongos para pesquisadores da própria Unifesp e de outras instituições, como o Instituto do Coração, da USP, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e a Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, de Brasília, unidade da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Até hoje, já foram gerados mais de 20 desses animais para cientistas de vários laboratórios do Brasil. Uma das vantagens dos transgênicos produzidos pelo grupo da Unifesp é seu preço. Pesquero não revela o valor cobrado pelos animais, mas diz que é muito inferior ao que é pago a laboratórios do exterior.

Um dos trabalhos mais promissores feitos sob encomenda pela equipe da Unifesp foi a criação para a Embrapa de uma fêmea de camundongo transgênico que produz no leite o fator IX humano, uma proteína responsável pela coagulação do sangue ausente nos hemofílicos. Em 2005, a ideia era produzir a proteína no camundongo e, se tudo corresse bem, usar a mesma tecnologia para gerar vacas clonadas transgênicas, que expressassem o gene humano para esse fator no leite.

Agora, é isso o que vêm tentando fazer a pesquisadora Sharon Lisauskas Ferraz de Campos e colegas da Embrapa. “Estamos desenvolvendo linhagens de células-tronco bovinas a fim de manipulá-las geneticamente e gerar vacas transgênicas que tenham em seu leite a molécula do fator IX”, conta ela. “Dessa forma, como as vacas produzem em torno de 25 quilos de leite por dia, poderemos recolher todo esse produto especial para que a indústria farmacêutica o purifique. Com isso, no futuro o Brasil poderá se tornar autossuficiente em fator IX humano, deixando de importar e, assim, economizando recursos.”

No caso de Cavalcanti, da USP, as pesquisas são com peixes, mais especificamente com o jundiá (Rhamdia quelen), uma espécie de bagre. “Comecei em 2004, quando realizei minha primeira iniciação científica no Centro de Biotecnologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel)”, conta. “O objetivo era introduzir no jundiá genes marcadores [genes de fácil identificação] para criar um modelo biológico geneticamente modificado. Ou seja, estávamos desenvolvendo nossos protocolos científicos para a geração de peixes transgênicos.” Seu orientador na época, Heden Luiz Marques Moreira, da UFPel, explica que o objetivo em si não era a produção de uma proteína específica, mas a obtenção de um método rápido e eficiente de gerar novos animais geneticamente modificados.

Segundo Moreira, isso significa que eles queriam que após criar uma linha transgênica fosse possível alterar as proteínas de interesse utilizando a mesma linhagem. “A ideia era que, se uma primeira proteína fosse produzida de forma estável e em níveis aceitáveis, uma segunda também poderia ser integrada no mesmo sítio do genoma em substituição à primeira”, explica. “Dessa forma, ao final do processo seria possível ter duas linhas transgênicas, uma derivada da outra. Não é questão de produzir uma única linhagem expressando duas proteínas diferentes (algo que chamam de duplo transgênico), mas de aproveitar um sistema e alterar a proteína produzida.”

Marcador fluorescente

Hoje os objetivos do trabalho foram ampliados, e Moreira está tentando desenvolver jundiás capazes de produzir a albumina sérica humana (HSA, na sigla em inglês), uma proteína que ocorre no plasma do sangue e é amplamente utilizada como estabilizante em produtos biológicos e farmacêuticos, tais como vacinas, e em revestimentos de dispositivos médicos. Além disso, ela é usada para tratamento de hipoalbuminemia (queda de albumina no sangue) e de choque traumático. Como peixes não produzem leite, os pesquisadores optaram por fazer o jundiá expressar a proteína no sêmen.

Cavalcanti participou ainda de uma outra pesquisa, dessa vez para a geração de galinhas transgênicas, sob a coordenação dos professores João Carlos Deschamps e Denise Bongalhardo, ambos da Ufpel. Primeiro, eles diluíram no esperma do galo o gene responsável pela produção de proteína verde fluorescente (GFP, na sigla em inglês), que serve como marcador nesse caso, ou seja, para saber se a transgenia deu certo. Depois o galo inseminou uma fêmea, da qual nasceu um pinto morto, mas que expressou a GFP. Ou seja, ele era transgênico, o que serviu para demonstrar que a técnica funciona. O próximo passo do grupo gaúcho é expressar uma proteína de coagulação sanguínea humana, como o fator IX, em ovos de galinhas.

Na outra ponta do país, mais precisamente em Fortaleza, na Universidade Estadual do Ceará (Uece), uma equipe liderada pelo professor Vicente José Freitas está desenvolvendo caprinos transgênicos, que receberam um gene que os tornou capazes de produzir no leite o fator estimulante de colônia de granulócitos humanos (hG-CSF, na sigla em inglês). “Trata-se de uma proteína encontrada em nosso organismo, responsável pela formação das células de defesa”, explica Freitas. “Por isso, ela é essencial para o bom funcionamento do sistema imunológico do ser humano.” O medicamento que for criado a partir do leite dessas cabras poderá ser usado em casos de imunodeficiência, como Aids, na recuperação de pessoas com câncer que fazem uso de quimioterapia ou das que tiveram infarto do miocárdio ou isquemia cerebral.

As pesquisas da equipe cearense começaram em 1999, quando Freitas foi procurado pelo pesquisador Oleg Serov, na época professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que já tinha criado camundongos transgênicos que sintetizavam o hG-CSF. “Como esses roedores são um bom modelo experimental, mas não têm leite em quantidade suficiente para beneficiamento e produção de medicamento, Serov nos propôs utilizarmos a cabra como modelo animal capaz de incorporar o gene e produzir leite o bastante para a realização de testes (in vitro e in vivo) e posterior desenvolvimento da droga”, conta Freitas.

Vantagens dos caprinos

O trabalho levou tempo. O primeiro caprino transgênico, um macho, só nasceu em 2006, mas morreu 19 dias depois, devido a uma nefrite (infecção nos rins) – ou seja, a morte não foi causada pelo fato de ele ser geneticamente modificado. Em 2008 nasceram mais três transgênicos, dois machos, um dos quais morto, e uma fêmea. “Assim, temos hoje um casal vivo, Camilla e Tinho, e ambos possuem o gene do hG-CSF”, diz Freitas. “A fêmea já teve a lactação induzida e verificamos que ela secreta o hG-CSF em seu leite.” Segundo o pesquisador, as cabras levam vantagem sobre outros animais no papel de biorreatores destinados a produzir grande parte das proteínas de uso médico. “Elas não raro parem três filhotes em cinco meses de gestação, enquanto um bovino tem apenas um filhote numa gestação de nove meses, e raros são os gêmeos”, explica.

O pesquisador Luciano Andrade Moreira, do Centro de Pesquisas René Rachou, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte, resolveu adotar estratégia diferente para o uso de transgênicos. Em vez de produzir medicamentos, ele trabalha diretamente com espécies que causam doenças e as altera geneticamente para que se tornem inofensivas. O primeiro alvo foi o mosquito Aedes fluviatilis, que transmite o parasita Plasmodium gallinaceum, causador da malária em aves. “Nesse trabalho inserimos no genoma do mosquito um gene responsável pela produção de uma proteína no veneno de abelhas (a fosfolipase A2)”, conta Andrade Moreira. “Mostramos que os insetos que tinham esse gene bloqueavam o parasita da malária aviária. Essa proteína deve formar uma barreira no intestino do mosquito que não deixa o plasmódio penetrar na parede intestinal e, após formar um cisto, atingir sua glândula salivar e ser transferido para outra ave no momento da picada.”

Segundo Pesquero, pesquisas como essas e a produção de animais transgênicos são muito importantes para o Brasil. “Se não fizermos isso, em breve teremos de importá-los”, alerta. Ele lembra ainda que as mutações genéticas em animais feitas ao longo das últimas três décadas provocaram uma grande revolução no campo da biologia, permitindo a análise de vários aspectos da função dos genes em animais vivos. “Além disso, as pesquisas biomédicas baseadas nas alterações genéticas em modelos animais oferecem esperança para a cura das principais doenças que afligem a humanidade”, diz. “Portanto, o uso apropriado dos modelos de animais transgênicos propicia as ferramentas necessárias para o desenvolvimento da ciência, com grande potencial para gerar benefícios altamente significativos nos campos médico, biotecnológico e comercial.”

Revista Problemas Brasileiros

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