domingo, 24 de outubro de 2010

Cresce o apetite do dragão predador

Multiplicam-se as queixas das áreas têxtil e de confecções contra a concorrência chinesa

ALBERTO MAWAKDIYE

Foto: Divulgação

Embora tão confiantes na retomada econômica do país como os colegas de outros setores produtivos, os empresários da vasta cadeia têxtil e de confecções do Brasil – somente na área industrial, são 28,8 mil companhias, que empregam cerca de 1,6 milhão de trabalhadores – ainda não veem motivos para comemorar. Eles continuam a queixar-se do que classificam de “concorrência predatória” dos artigos produzidos na China, vista como a principal responsável pela, de fato, assustadora ocupação do mercado doméstico por fabricantes estrangeiros.

Segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), hoje, de cada dez peças vendidas no grande varejo, uma vem de fora. Há dez anos, a relação era de uma peça importada para cada 20 produzidas no Brasil. De 2004 a 2008, as importações nessa área cresceram 170% no país, sendo que naquele último ano o saldo da balança comercial do setor foi negativo em US$ 1,4 bilhão.

Por conta disso, os bons números projetados para 2010 não bastaram para acalmar os empresários do setor. A Abit espera, por exemplo, uma taxa de crescimento bastante razoável na cadeia de produção de tecidos, da ordem de 4%, suficiente para recompor parte das perdas verificadas em 2009, que foram de 6,7%. Na indústria de confecções, a expansão aguardada é de 3,7%, ante uma queda de 8% em 2009. Já no varejo, que também vendeu bem menos que o esperado durante os meses de crise, acredita-se numa taxa de crescimento de 6,5%.

A perspectiva está ligada ao aumento geral de empregos no país, de 2 milhões de novas vagas em todos os setores da economia. Mais pessoas com carteira assinada sempre significam, obviamente, maior consumo de roupas e têxteis em geral. A crescente inclusão de famílias das classes C e D no mercado de consumo deve ser outro impulsionador da recuperação.

Os problemas, porém, começam aí, segundo Fernando Pimentel, diretor superintendente da Abit. Se o crescimento do consumo será bom para a cadeia têxtil brasileira, será ainda melhor para a chinesa – que também vinha vendendo menos no Brasil (o volume total de importações no setor caiu de US$ 3,8 bilhões em 2008 para US$ 3,5 bilhões em 2009).

“A China já responde por 60% das confecções e 35% dos produtos têxteis importados vendidos no Brasil”, informa Pimentel. “Existe um mercado cativo no país e que só tende a crescer com o desenvolvimento do consumo doméstico. As fábricas chinesas vendem por um valor tão baixo, e temos tantos problemas estruturais para a formação de preços, que a concorrência acaba ficando desleal.”

A lista de dificuldades apresentada por Pimentel é clássica: vai da depreciação do dólar – que facilitou ao extremo a vida dos importadores – à excessiva carga tributária, do alto custo dos encargos trabalhistas à taxa de juros e ao ônus decorrente da precariedade da infraestrutura do país. Todos esses fatores teriam esvaziado em parte os efeitos do aumento das alíquotas de importação de confecções de 20% para 35% e de tecidos de 18% para 26%, fruto de antiga reivindicação do setor e adotado no final de 2007.

“É uma barreira insuficiente para deter produtos fabricados por uma indústria que pratica diversas formas de dumping comercial, cambial, social e ecológico”, afirma o dirigente empresarial. E, realmente, o que fazer para conter a voraz e pouco gastadora China? De acordo com estimativa da Abit, o custo da mão de obra brasileira é 367% superior ao da chinesa. Além disso, os gastos com encargos financeiros são 292% maiores e as despesas com depreciação de imóveis e maquinário (tabeladas pelo governo e empregadas para dedução no imposto de renda) são 68% mais elevadas no Brasil.

Somadas ao câmbio artificialmente desvalorizado naquele país, essas vantagens chinesas fazem com que a diferença de preços no mercado brasileiro chegue, por exemplo, a 133% no vestuário de malha, a 56% no tecido de malha, a 93% em calças jeans e a 30% no tecido denim. Enquanto o Brasil importa vestuário da China a US$ 13,63 o quilo, compra de outros países a US$ 19,73. Os chineses vendem, enfim, por um preço 30,91% menor.

“Esses percentuais têm de ser levados em conta”, destaca Pimentel. “Precisamos de melhores condições de trabalho para enfrentar de maneira isonômica todas essas variedades de dumping, que tornam a concorrência estrangeira mais competitiva de maneira injusta.”

Pimentel acrescenta que o “cenário de invasão” se mostra ainda mais grave quando se constata quanto a indústria têxtil brasileira é dependente do mercado interno. De fato, com um imenso e protegido mercado à disposição até os anos 1990, o Brasil, embora situado entre os dez maiores produtores têxteis do mundo, apresenta ainda o insignificante índice de 0,2% do comércio mundial do produto, apesar dos esforços do governo e das entidades do setor para reverter esse quadro.

O Programa Estratégico da Cadeia Têxtil Brasileira (Texbrasil), liderado pela Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil) em parceria com a Abit, está, por exemplo, tentando capacitar uma legião de empresas pequenas e médias dos mais variados nichos a participar do mercado externo – elas são, por enquanto, apenas pouco mais de mil no âmbito do programa. “Estamos focando principalmente mercados que descobrimos apreciarem a moda brasileira, como os de alguns países do Oriente Médio”, diz Maurício Borges, diretor de negócios da Apex. “Certamente conseguiremos cumprir a meta de exportar US$ 572 milhões em 2010.”

Descompasso

Diga-se que há ainda outro fator a complicar a situação da indústria brasileira, reconhecido com preocupação pelos empresários e cuja origem nada tem a ver com a China, já que é genuinamente nacional. Pelo menos desde meados da década de 1990, a produção local de têxteis tem sido insuficiente para atender as necessidades internas de consumo, que cresceram com a estabilização da moeda na esteira do Plano Real – de passagem, isso explica o porquê de o Brasil também exportar tão pouco. No período entre 1995 e 2008, a renda média per capita do brasileiro elevou-se em nada menos que 22,6%, índice maior que o próprio crescimento populacional, que foi de 19,3%.

O descompasso entre produção e consumo abriu caminho para o avanço dos produtos importados – na verdade, uma avenida, que vem se alargando. Segundo o relatório “Brasil Têxtil 2009”, preparado pelo Instituto de Estudos e Marketing Industrial (Iemi), a produção brasileira do setor por habitante, em 1995, foi de 8,3 quilos, e o consumo, de 8,7 quilos – uma defasagem ainda relativamente pequena. Só que, desde então, essa diferença nunca mais parou de crescer. Em 2008, a relação já tinha alcançado 9,6 quilos produzidos para 12,7 quilos consumidos.

Ou seja, enquanto a produção por habitante cresceu 15,7%, o consumo se elevou 46% em pouco mais de uma década. Essa diferença significa não só que parte do consumo foi suprida pelas importações, como também que, sem a presença delas – como acontecia antes da abertura da economia, no começo dos anos 1990, quando a importação se resumia a poucos artigos de luxo e a um ou outro insumo ou matéria-prima –, muitos brasileiros teriam, hoje, de dar um jeito de fazer roupas em casa para se vestir.

“A triste verdade é que a indústria têxtil brasileira perdeu, há tempos, a capacidade de acompanhar o crescimento da demanda”, afirma Sylvio Mandel, presidente da Associação Brasileira do Varejo Têxtil (Abeim). “E isso não apenas no que diz respeito à quantidade global. Há segmentos que hoje mal são atendidos, como os de malharia sintética, de jaquetas de náilon e poliéster e de roupas de inverno em geral.”

Segundo Mandel, os segmentos em que o Brasil continua relativamente competitivo são, por exemplo, o de confeccionados de algodão, como jeans e camisetas –em que predomina a gigante catarinense Hering –, e os de malhas de lã e de tricô cashmere, com grande produção em cidades serranas de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. A indústria nacional responde também por parte significativa das vendas de tecidos de algodão puro e de artigos de cama, mesa e banho (a mineira Coteminas até já comprou empresas no exterior) e pontifica em roupas de verão, como bermudas e assemelhados.

Ou seja, o país ainda vai bem nos segmentos que produzem a partir de fibras naturais, certamente por ser hoje mais do que autossuficiente na produção de denim e de algodão (nesse caso, depois de ter perdido essa posição na virada dos anos 2000) e estar bem situado na produção de lã natural, da qual, aliás, não necessita muito, por razões climáticas. Em contrapartida, patina nos segmentos que utilizam preferencialmente fibras sintéticas, cuja produção pelas indústrias de base é ainda pequena ou mesmo inexistente em algumas modalidades, além de obviamente mais cara que a chinesa, por exemplo.

O Brasil também se tornou razoavelmente competitivo na indústria de grifes, com marcas como Marisol, Poko Pano, Iodice e a própria Hering, dentre outras, competindo com expoentes do setor têxtil mundial em seus próprios e exclusivos territórios.

A ironia nessa história toda é que a indústria têxtil brasileira se preparou como poucas para enfrentar os rigores da globalização. Já prevendo o pior, entre 1990 e 2008 investiu, por exemplo, US$ 13 bilhões apenas na aquisição de máquinas e equipamentos, muitos deles importados de centros produtores de ponta, como França, Itália e Alemanha – o que contribuiu, por tabela, para a estagnação da pequena indústria brasileira que atendia esse setor.

Os sistemas de produção foram atualizados nas empresas dotadas de capital, laboratórios modernos foram implantados em universidades e em institutos de pesquisa – alguns deles capazes de lidar até com nanotecnologia para o desenvolvimento de fios especiais – e novos polos fabris surgiram através do país, de modo a baratear os custos de fabricação e aproximar os produtores do conjunto de consumidores.

Centrado basicamente na fabricação de fios, em que já tinha tradição, mas não volume e tecnologia, o nordeste, por exemplo, responde hoje por 20,6% dos têxteis brasileiros. A maior região produtora continua sendo o sudeste, com 46,1%, seguido pela região sul, com 29,5%.

Um grande esforço também foi despendido na atualização e mesmo na criação de novas tendências em tecidos e vestuário, com ênfase no desenvolvimento de design próprio. Ao mesmo tempo, cursos de todos os tipos se multiplicaram pelo país para atender tanto os setores de engenharia e produção têxtil como o de moda propriamente dito. Apenas o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) de São Paulo mantém 72 cursos ligados à área de moda, nas mais diferentes especializações.

Porém, se todos esses investimentos bastaram para elevar a qualidade média dos artigos têxteis brasileiros, não foram suficientes para aumentar o volume de produção, pelo menos até um nível que permitisse manter a uma distância um pouco mais segura os fabricantes estrangeiros. E a razão é um segredo de polichinelo para o pessoal do setor.

O Brasil é ainda um dos pouquíssimos países do mundo a manter uma cadeia produtiva têxtil rigorosamente completa, que vai do fornecimento de algodão, lã e couro e da fabricação de fios e fibras sintéticas ao processamento em tecelagens, malharias e estamparias, além de incluir um poderoso segmento de moda e varejista – conjunto do qual as nações desenvolvidas abriram mão há décadas. O ramo confeccionista – o mais estratégico de todos depois da indústria de marcas – apresenta, no entanto, uma escala de produção pequena e para lá de fragmentada, devido ao fato de 96% das empresas serem de pequeno e médio porte, com até 99 empregados.

Trata-se de uma herança do passado protecionista e que explica o número assombroso de indústrias têxteis em atividade no Brasil, 28,8 mil. Dessas, nada menos que 24,3 mil pertencem ao setor de confecção. Se essa profusão de empresas fez do país o sexto maior produtor têxtil do planeta, e do segmento confeccionista propriamente dito o segundo maior empregador da indústria de transformação brasileira, responsável por 18,6% do Produto Interno Bruto (PIB), pouco está ajudando o país a se afirmar como realmente competitivo nesse setor, agora que ele precisa desesperadamente disso.

De fato, boa parte das confecções não tem capital para a renovação de maquinário e a contratação de mão de obra qualificada (ou que ao menos seja formal) e vegeta num sistema de produção ainda bastante rudimentar. E constitui, na verdade, o gargalo de demanda para maiores investimentos nos elos anteriores e posteriores da cadeia produtiva, como a produção de fios ou de tecidos e a indústria do design.

Pior: por causa de sua pouca exigência no que tange à qualidade, as confecções se tornaram o sustentáculo da espécie de autofagia que também tomou conta do setor têxtil brasileiro, depois que este decidiu, por meio da mão invisível do mercado, mas com uma boa ajuda de benefícios fiscais, espraiar-se pelo país, quase sempre com poucos investimentos em tecnologia e focando principalmente a redução de custos em troca do aumento da empregabilidade local.

“Como se não bastassem as importações chinesas, temos de lutar internamente com outros estados. São Paulo não pode continuar vendo empregos e riquezas migrarem para outros lugares desse jeito”, esbraveja Ronald Masijah, presidente do Sindicato das Indústrias do Vestuário do Estado de São Paulo (SindiVestuário), segundo o qual o estado já perdeu 20% de participação no mercado nos últimos anos por conta dessa guerra fiscal. Ele quer que o governo paulista pague na mesma moeda, reduzindo também os impostos para o setor – uma medida que, obviamente, só serviria para aprofundar a briga.


Potencial pouco explorado

Para muitos especialistas na área têxtil, a única chance de o Brasil não acabar devorado pela concorrência chinesa e manter mais ou menos intacta sua cadeia produtiva – grande geradora de empregos –, arriscando-se também um pouco mais na exportação, é tentar incorporar a expertise que já conseguiu no segmento de moda e design à indústria propriamente dita.

De fato, o país hoje já é um competitivo peso médio na indústria planetária da moda, do que um evento badalado como a São Paulo Fashion Week, realizada duas vezes por ano, é apenas um exemplo. Na versão Inverno 2010 – que, para efeito de mercado, é promovida no verão –, dezenas de estilistas brasileiros apresentaram suas coleções para um público proveniente de diversas partes do mundo. Festivais de moda similares (embora, naturalmente, bem menos concorridos) já acontecem também no país inteiro.

“O Brasil tem uma forte indústria de estilo, centros de pesquisa, um parque produtivo imenso e relativamente bem distribuído, além de identidades regionais que poderiam ser mais bem exploradas. Se conseguirmos juntar tudo isso, seremos muito mais competitivos”, afirma Giuliano Donini, presidente da catarinense Marisol e um dos principais expoentes do fórum Santa Catarina Moda Contemporânea, cujo objetivo é o desenvolvimento do setor têxtil naquele estado.

Uma vantagem comparativa do Brasil é a enormidade de cursos na área têxtil e de moda que surgiram nos últimos anos, e em praticamente todas as cidades mais importantes. Eles têm formado milhares de especialistas em áreas tão distintas como estilo e design, modelagem, marketing e negócios ou engenharia de produto.

“A formação profissional é fundamental para a profissionalização e para o crescimento do setor, além de ser reflexo do amadurecimento do mercado têxtil e de moda brasileiro”, diz Tatiana Putti, coordenadora de desenvolvimento da área de moda do Senac São Paulo. “Esses cursos serão cada vez mais essenciais para a difusão de conteúdos que atendam a indústria têxtil e de confecção, criando novos horizontes para ela.”

Revista Problemas Brasileiros

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